https://doi.org/10.18593/ejjl.34528

O Juiz de posição elevada e o problema da indiscrição judicial

The high-ranking Judge and the issue of judicial discretion

Rafael Patrus1

Resumo: Como membros dos tribunais de cúpula, os juízes que ocupam as posições mais elevadas na estrutura do sistema de justiça são responsáveis não apenas por uniformizar os entendimentos que orientam a maneira como os demais tribunais e órgãos jurisdicionais devem decidir, mas também por proferir a última palavra da jurisdição na interpretação da Constituição e das leis. À luz disso, a exposição midiática ou política desses juízes, em violação aos seus deveres de comedimento e discrição, tem um impacto comparativamente maior e mais longevo, seja para a atividade da jurisdição, seja para a deliberação política, do que eventuais excessos cometidos por quaisquer outros integrantes do Poder Judiciário. Nesse sentido, a responsabilidade do juiz para com o dever de exercer a judicatura com discrição será tanto maior quanto mais elevada for sua posição na estrutura da jurisdição. Apesar disso, o Supremo Tribunal Federal adota a problemática orientação de que seus integrantes não se subordinam ao controle ético-disciplinar desempenhado pelo Conselho Nacional de Justiça.

Palavras-chave: Poder Judiciário; ética profissional; padrões decisórios vinculantes; diálogos institucionais; Supremo Tribunal Federal.

Abstract: As members of superior courts, judges who occupy the highest positions in the judicial structure are responsible not only for standardizing the understandings that guide the way in which other courts should decide, but also for having the last jurisdictional word in the interpretation of the Constitution and the laws. Considering this, the mediatic or political exposure of these judges, whenever they violate their duties of self-restraint and discretion, has a comparatively greater and longer-lasting impact, whether for the judicial system or for the political deliberation, than any excesses committed by other members of the Judiciary. In this sense, a judge’s duty to act with discretion will be stricter the higher his position in the judicial structure. Despite this, the Brazilian Supreme Court understands that its members are not subordinated to any ethical-disciplinary control carried out by the National Council of Justice.

Keywords: Judicial branch; professional ethics; binding precedents; institutional dialogues; Brazilian Supreme Court.

Recebido em 24 de janeiro de 2024

Avaliado em 31 de maio de 2024 (AVALIADOR A)

Avaliado em 17 de junho de 2024 (AVALIADOR B)

Aceito em 17 de junho de 2024

Introdução

No direito brasileiro, em razão do que estabelecem o inciso III do parágrafo único do art. 95 da Constituição da República e o inciso III do art. 36 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, o pronunciamento público do juiz é proibido nas hipóteses de atividade político-partidária, manifestação sobre processo pendente de julgamento, ou juízo depreciativo acerca de decisão alheia. Ainda, nos termos dos arts. 12 e 15 do Código de Ética da Magistratura, cumpre ao juiz, na sua relação com os meios de comunicação social, comportar-se de forma prudente e equitativa, haja vista que sua integridade de conduta fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional contribui para uma fundada confiança dos cidadãos na judicatura. No entendimento dos órgãos de controle das obrigações funcionais da magistratura, em especial do Conselho Nacional de Justiça, a violação a esses deveres, a que escolhemos dar o nome de indiscrição judicial, constitui hipótese de ativismo judicial e, como tal, implica infração grave às regras que disciplinam o funcionamento do sistema de justiça.

Contra juízes indiscretos o CNJ tem, com incisividade crescente, instaurado procedimentos investigativos e aplicado punições. Apesar disso, a reação do sistema de controle à indiscrição dos juízes que integram os tribunais de cúpula, sobretudo à dos ministros do Supremo Tribunal Federal, é praticamente inexistente. Assim, enquanto os magistrados que atuam na primeira ou na segunda instância jurisdicional se sujeitam a um regime ético-profissional rigoroso, podendo ser duramente penalizados por excessos cometidos em sua interação com a mídia ou em sua atuação nas redes sociais, os membros dos mais altos órgãos da jurisdição – os juízes, portanto, de posição jurisdicional mais elevada –, muitos dos quais mantêm o hábito de opinar publicamente sobre as atividades da justiça e as idas e vindas do mundo político, permanecem quase totalmente imunes a algum tipo de freio ou responsabilização. Como dito, isso é especialmente acentuado quando se tem mente o STF.

Entretanto, são precisamente os juízes de posição elevada os que mais responsabilidade têm perante o funcionamento adequado do sistema de justiça. Sua indiscrição consiste, por essa razão, em uma infração ético-disciplinar particularmente gravosa. Isso é assim, porque, como membros dos tribunais de cúpula, esses juízes são responsáveis não apenas por uniformizar os entendimentos que orientam a maneira como os demais tribunais e órgãos jurisdicionais devem decidir, mas também por proferir a última palavra da jurisdição na interpretação da Constituição e das leis. A despeito disso, o STF adota a problemática orientação de que seus integrantes não se subordinam ao controle desempenhado pelo CNJ.

O objetivo deste trabalho é explicar, a partir de uma revisão da literatura sobre formação e aplicação de padrões decisórios vinculantes oriundos da atividade jurisdicional e sobre legitimidade da jurisdição na democracia, o porquê de a discrição judicial ser uma obrigação tanto mais forte quanto mais elevada é a posição ocupada pelo juiz. Com base nessa explicação, quer-se, ademais, criticar o posicionamento estabelecido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3367 relativamente à impossibilidade de o Conselho Nacional de Justiça controlar a atuação dos ministros do Supremo Tribunal Federal – posicionamento que tem alimentado, de cima para baixo, uma rotina viciosa de politização da atividade judicial.

1 O art. 927 do Código de Processo Civil

O art. 927 do Código de Processo Civil estabelece que os juízes e tribunais do país, ao decidirem os casos submetidos à sua apreciação, observarão as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no exercício de controle de constitucionalidade por via principal;2 os enunciados de súmula vinculante; os acórdãos prolatados em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; e a orientação do plenário ou do órgão especial do tribunal ao qual estiverem vinculados. Essas decisões contêm orientações, diretrizes, nortes interpretativos e maneiras de compreender e aplicar o direito que devem ser consideradas por quaisquer juízes ou tribunais no exercício da jurisdição. Em outras palavras, os padrões decisórios fixados pelo Supremo, pelos tribunais superiores e pelos demais tribunais nacionais precisam ser levados em conta no proferimento posterior de decisões que lidem com questões de fato ou de direito idênticas ou similares.3

O art. 927 do CPC traz uma lista dos padrões decisórios que não podem ser ignorados no dia a dia da justiça. Entretanto, nem todos esses padrões são vinculantes. Ou seja, existem padrões decisórios vinculantes, por expressa previsão na Constituição da República ou no próprio Código de Processo Civil, e existem padrões decisórios que, apesar de serem relevantes do ponto de vista argumentativo, não são vinculantes. Quaisquer desses padrões, vinculantes ou não, projetam uma grande força argumentativa sobre a operação do sistema de justiça, exercendo uma inevitável influência no funcionamento dos órgãos jurisdicionais. Os padrões vinculantes, por sua vez, exigem um processo diferenciado de deliberação decisória, um processo suficientemente rico em debate e atividade discursiva, de maneira a justificar que, embora nem todas as pessoas tenham podido participar da discussão originadora do padrão decisório, e apesar de os julgadores responsáveis por produzir tal padrão não haverem sido eleitos pelos jurisdicionados, o precedente ou a súmula de jurisprudência sejam obrigatoriamente seguidos, sem isso implicar nenhum prejuízo à essência da política democrática (Câmara, 2022, p. 174-5; Nunes, 2008, p. 225-9). Ou seja, padrões decisórios, em especial quando são vinculantes (embora não apenas), reclamam, para sua legitimação, um processo de formação substancialmente deliberativo. A deliberação é importante, sobretudo para instituições decisórias cujos integrantes não são eleitos, porque é por meio delas que, compartilhando informações e promovendo um esclarecimento recíproco, provimentos baseados em argumentos de princípios são legitimamente construídos (Silva, 2013, p. 560-2; 2017, p. 216-8; Mendes, 2013, p. 142-75).

Segundo defende Alexandre Freitas Câmara, a maneira como se realiza o contraditório no processo e o modo como os integrantes do tribunal dialogam ao construírem sua decisão constituem fatores relevantes na justificação do caráter vinculante atribuído a um precedente ou a uma súmula de jurisprudência. Isso quer dizer que, nos casos de padrões decisórios aos quais a Constituição ou o CPC tenham expressamente conferido caráter vinculante, é indispensável observar tanto um contraditório efetivo e material, com aquilo que Câmara chama de “comparticipação subjetivamente ampliada”, quanto uma colegialidade ampla e autêntica, para que a vinculatividade do padrão formado – a obrigatoriedade de ele ser respeitado e seguido pelos demais órgãos da jurisdição no julgamento de casos futuros – seja devidamente justificada. Nesses casos, o contraditório exige uma interlocução genuína entre os sujeitos processuais – uma interlocução, portanto, entre as partes, entre elas e os terceiros que colaboram com o desenlace do processo, entre esses atores e o tribunal, e entre os julgadores que integram o colegiado. É somente por meio dessa interlocução que os precedentes e as súmulas de jurisprudência de caráter vinculante se legitimam (Câmara, 2022, p. 181-2).

O art. 927 enumera referências decisórias que são por si só muito importantes. Os precedentes mencionados ali, senão estritamente vinculantes, são fatalmente persuasivos – ou, para dizer de um jeito melhor, argumentativos (Câmara, 2022, p. 183).4 Por essa razão, sua formação exigirá do tribunal prolator, em todo caso, o atendimento a um rigoroso ônus de justificação, ônus do qual o órgão só verdadeiramente se desincumbe quando lastreia sua decisão na atividade deliberativa das partes, coordenando, com imparcialidade e independência, o debate no processo e construindo, a partir desse debate, uma decisão fundamentada no direito, fiel à história institucional da comunidade política e comprometida com a busca da melhor resposta ao problema examinado. Esse ônus de justificação, do qual já falamos longamente, é a principal razão pela qual o juiz, seja ele responsável por decidir monocraticamente ou votar em uma decisão colegiada, deve observar um parâmetro rígido e limitativo de comportamento, portando-se no cumprimento de sua função com reserva, temperança, prudência e discrição, e recusando-se, em regra, a emitir suas opiniões em público. A antecipação pública do entendimento do juiz, de maneira desregrada e não mediada, desnatura o potencial do processo como lócus de construção coletiva do provimento estatal. Essa antecipação é mais grave no caso dos juízes que participam dos processos decisórios nos quais são formados os precedentes e as súmulas de jurisprudência, ainda que se trate de padrões unicamente argumentativos.

O que Freitas Câmara pontua, entretanto, é que existem padrões decisórios ainda mais sensíveis, do ponto de vista da necessidade de legitimação democrática, em virtude de seu caráter vinculante. O contraditório material é uma exigência em todo e qualquer processo que se volte à elaboração de um juízo impositivo, sobretudo nas hipóteses em que, tal qual ocorre com os padrões argumentativos, a orientação construída, além de resolver a demanda imediata, serve também como um guia para solucionar futuros conflitos. Ocorre que, para além dessa exigência que acompanha ininterruptamente a atividade jurisdicional, a Constituição e o CPC imputaram a decisões judiciais específicas um predicado adicional: a qualidade de vinculantes, isto é, de peremptórias, inafastáveis, cogentes, impreteríveis – qualidade que as torna de observância obrigatória, quer o intérprete ulterior concorde com seu conteúdo ou não. Isso gera um problema. O fato de determinados padrões decisórios serem vinculantes exclui do processo futuro – e, por consequência, retira tanto do juiz quanto das partes nesse processo – o total domínio sobre o debate a respeito da questão controvertida, reduzindo as possibilidades atinentes à decisão-solução. Embora nem o precedente nem, tampouco, a súmula, mesmo quando vinculantes, sejam aplicados mediante simples subsunção, sendo indispensável que, no processo posterior, o juiz, em articulação com as partes, demonstre a compatibilidade da situação fática prévia com a situação fática presente (Câmara, 2022, p. 287-347; Marinoni, 2022, p. 325-456; Zaneti Júnior, 2017, p. 309-380; Streck, 2022, p. 59-86), ainda assim é certo que a obrigatoriedade de considerar determinado padrão decisório como norte na construção da solução impõe uma limitação tanto deliberativa quanto argumentativa. O ordenamento tem boas razões para instituir a vinculatividade dos precedentes em determinados casos, dentre elas a promoção da segurança jurídica, a realização da igualdade na prestação da justiça, a preservação da coerência e da coesão do sistema jurídico, a estabilização das expectativas sobre o direito, a redução da desconfiança sistêmica, o controle da litigância excessiva, a atenuação da jurisdição “lotérica”, a garantia da economia processual e a efetivação da duração razoável do processo (Marinoni, 2022, p. 118-188). Contudo, não obstante essas razões, cuja procedência não refutamos, a imposição de padrões decisórios definidos no passado como vinculantes relativamente a decisões por vir exige uma justificação contínua, porque, nesse modelo, pessoas que não participaram da construção de um entendimento decisório terão seus casos julgados segundo ele – conjuntura que, a princípio, implica certo prejuízo ao contraditório. Disso resulta a exigência de o processo de formação de precedentes e súmulas vinculantes ser diferenciado. Nas palavras de Câmara, há “uma necessidade de compensação sistêmica, consistente em abrir-se espaço para uma maior participação da sociedade no procedimento de construção desses padrões decisórios” (Câmara, 2022, p. 184).

O ordenamento brasileiro menciona expressamente cinco hipóteses de padrões vinculantes. O § 2º do art. 102 da Constituição da República (Brasil, 1988), estabelece que as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Nesses termos, no exercício do controle de constitucionalidade por via principal, o STF profere decisões com eficácia erga omnes, de observância obrigatória pela administração pública e pelo restante do sistema de justiça. Ademais, o art. 103-A prevê que o Supremo poderá, de ofício ou por provocação, exarar súmula que traduza o teor de reiteradas decisões sobre matéria constitucional, a qual, se aprovada por dois terços dos membros do tribunal, adquire, após sua publicação na imprensa oficial, efeito vinculante em relação ao restante do Judiciário e à administração pública. No Código de Processo Civil, adicionalmente, encontram-se três casos de precedentes que declaradamente vinculam todos os juízes e órgãos jurisdicionais fracionários: o acórdão proferido em assunção de competência (§ 3º do art. 947), a decisão prolatada no julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 985) e a decisão prolatada no julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos (inciso III do art. 1.040). Em todos esses julgados, a orientação ou tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Superior Tribunal de Justiça ou pelo tribunal responsável afeta o julgamento de conflitos futuros, sem que as partes de tais conflitos tenham tido oportunidade de influir na construção do provimento-padrão.

Face a tal dilema, a proposta de conferir maior amplitude ao contraditório na formação dos precedentes e das súmulas de caráter vinculante constitui decerto a melhor – e possivelmente a única – maneira de garantir, mesmo que sob constante tensão, um mínimo de legitimidade democrática a esses padrões decisórios. De acordo com Freitas Câmara, a participação ativa, dialética e dialógica de amici curiae nos processos (2022, p. 185-96), a realização de audiências públicas com amplo envolvimento de entidades e especialistas (2022, p. 196-204) e a adoção de um modelo de deliberação colegiada que proporcione uma interlocução transparente entre os membros do tribunal e produza uma decisão coesa e inteligível (2022, p. 256-68) constituem elementos catalisadores do contraditório na formação de um padrão decisório, elementos capazes de, em respeito a um processo cooperativo e comparticipativo, alargar os limites subjetivos da dialética processual. Evidentemente, a essas técnicas procedimentais, que visam a ampliar a abertura cognitiva e o escopo deliberativo do tribunal, deve-se somar um ânimo autêntico de realizar um processo multilateral e policêntrico, no qual os sujeitos possam conduzir em conjunto a construção do provimento, afetando e influenciando o conteúdo da solução final (Câmara, 2022, p. 204).

Esse raciocínio é especialmente oportuno, pois permite lançar luzes sobre a deliberação democrática que se exige na formação de um padrão decisório vinculante e, por consequência, esclarecer o compromisso que os juízes nos tribunais precisam firmar e manter no sentido de promover um contraditório amplificado. Para que esse contraditório genuinamente aconteça, é indispensável que o Supremo, os tribunais superiores e os demais tribunais nacionais observem um regime comportamental rigoroso, sobretudo quanto ao exercício de sua liberdade de expressão, de forma a garantir a preservação da imparcialidade de seus membros na condução de processos decisórios nos quais, mediante um diálogo ativo entre os sujeitos, sejam produzidas orientações claras e legítimas. Ou seja, a proibição de o juiz expressar sua opinião em público, antecipando seu entendimento sobre um dado assunto e, com isso, rompendo a higidez da interlocução processual, é mais relevante com relação a magistrados que ocupam posições elevadas na estrutura da jurisdição, pois a eles cabe produzir padrões decisórios destinados a orientar deliberações jurisdicionais futuras. A representatividade, a abrangência e o impacto das decisões proferidas pelo STF e pelos tribunais superiores são comparativamente muito maiores. Por conta disso, o contraditório exigido para a legitimação dos padrões decisórios produzidos por tais órgãos é mais amplo e exigente. Se um ministro do Supremo concede uma entrevista a um jornal e adianta sua visão a respeito de um tema polêmico – um tema a respeito do qual o tribunal venha, depois, a estabelecer algum padrão decisório –, o prejuízo potencialmente provocado à integridade da contribuição do Judiciário para a governança democrática é significativa e preocupantemente maior do que quaisquer danos que eventuais falas de um juiz de primeira instância possam causar à credibilidade do sistema de justiça. Isso significa, em síntese, que, quanto mais alta a posição do tribunal na estrutura do Poder Judiciário – com destaque para cortes supremas e tribunais constitucionais –, mais valioso é o silêncio dos juízes que o integram, e, por isso, mais atentos devem eles estar quanto aos deveres de reserva, temperança, comedimento e discrição.

2 A teoria dos diálogos institucionais e a tese do constitucionalismo democrático

A teoria dos diálogos institucionais indica que as instituições democráticas, em especial o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, devem estabelecer uma interlocução colaborativa na interpretação da Constituição, de modo a evitar que uma delas assuma (e monopolize) a posição de dar a última palavra sobre o significado das normas constitucionais.

Diálogo é uma ideia que sugere abertura, humildade, honestidade e disposição à compreensão mútua e à cooperação. Dialogar é uma ação que pressupõe igualdade, horizontalidade e reciprocidade, que implica rejeitar tanto a passividade quanto a subordinação hierárquica (Mendes, 2011, p. 105). Nesse sentido, a promoção do diálogo é um expediente que, por essência, agrega valor à dinâmica democrática; o diálogo entre pessoas e entre o Estado e a sociedade, a toda evidência, constitui elemento indispensável a um projeto sério de democracia.

No entanto, a perspectiva doutrinária de que as instituições devem dialogar tem lugar em um debate específico. Embora a teoria aponte o caráter valoroso e profícuo de uma deliberação pública para a qual cada instituição contribua com um ponto de vista singular e distinto (prisma o qual buscamos enfocar neste trabalho), o que os defensores do diálogo interinstitucional almejam, em primeiro lugar, é encarar o problema da (falta de) legitimidade democrática da jurisdição constitucional e do controle judicial de constitucionalidade das leis.5 Esse é um debate particularmente importante, não apenas em razão da centralidade que vem ocupando na teoria constitucional das últimas décadas, mas sobretudo porque nele se articulam, com uma profundidade possivelmente não repetível, as tensões elementares entre soberania popular e Constituição, entre política democrática e direitos fundamentais (Mendes, 2007). Quando falamos que os juízes devem colaborar com a higidez da praça, agindo no sentido de preservar e catalisar a deliberação pública, nossa intenção é responder exatamente à indagação sobre o propósito democrático da interpretação judicial da Constituição. Para que serve a leitura que juízes e tribunais fazem da Constituição? Qual é o papel democrático das decisões tomadas pelo Judiciário em geral e por cortes supremas e tribunais constitucionais em particular no exercício do controle de constitucionalidade das leis?

Há quem entenda que os parlamentos são as instituições mais legitimadas para interpretar a Constituição, uma vez que representam a pluralidade de interesses, reivindicações e temas que constitui a sociedade. Sob esse modo de pensar, a decisão do parlamento seria, na impossibilidade de o povo decidir ele mesmo, a representação mais fiel da vontade popular: a escolha assumida pelos representantes diretos do povo corresponderia, embora indiretamente, a uma escolha do próprio povo. O fato de essa escolha implicar uma opção majoritária, tendo em vista o fato de os parlamentos decidirem segundo a regra da maioria, não implicaria nenhum prejuízo à legitimidade democrática da decisão. Ao contrário, decidir de acordo com a maioria constitui o único método efetivamente democrático de formular escolhas coletivas, o único que de fato materializa a premissa de que se devem atribuir a cada pessoa o mesmo valor e, por consequência, o mesmo poder decisório (Waldron, 1999, p. 109-18; 2010, p. 1.043-57). Ademais, o processo decisório que toma corpo nos parlamentos é mais adequado à canalização das demandas e preferências coletivas, porque incentiva a negociação e o compromisso, propicia o aprimoramento de pontos de vista unilaterais e apazigua extremismos, fomentando o consenso em detrimento da polarização (Mendes, 2011, p. 94). Segundo prega essa corrente, não faz nenhum sentido atribuir ao Poder Judiciário a última palavra sobre o significado da Constituição, pois, além de não serem eleitos e, por isso, não agirem com sensibilidade à opinião pública, não há nenhuma evidência de que juízes e tribunais estejam em melhores condições de proteger os pré-compromissos da democracia, haja vista que seu desempenho é igualmente balizado pela realidade política e, nesse sentido, sujeita-se, na mesma medida, ao cometimento de desvios e erros (Mendes, 2011, p. 96-103). Os críticos do controle judicial de constitucionalidade lembram, ainda, que as decisões dos tribunais são tomadas, também, segundo a regra da maioria, podendo ecoar os mesmos desentendimentos que perpassam pelo ambiente social; em sendo assim, ressaltam eles, não existe nenhuma justificativa plausível para substituir a decisão majoritária construída, mediante a acomodação das desavenças, por um colegiado numericamente expressivo de representantes diretamente eleitos pelo povo pela decisão majoritária encaminhada, de acordo com a lógica binária do direito (baseada na dicotomia entre o sim e o não, o lícito e o ilícito, o procedente e o improcedente), por um colegiado numericamente reduzido de juízes (Waldron, 2006, p. 1.346-406; Waldron, 2016, p. 246-73).

Em oposição a esse entendimento, argumenta-se que a atuação do Judiciário não visa a suplantar a atividade política, mas garantir as condições necessárias a que a deliberação pública aconteça de maneira hígida. No exercício da jurisdição constitucional, especialmente na fiscalização da constitucionalidade das leis, juízes e tribunais intervêm não para dizer o que as instituições políticas devem materialmente fazer, e sim com vistas a assegurar que o processo de formação da escolha coletiva – a ser gerido, invariavelmente, no seio das instituições representativas – seja democrático, não se podendo permitir nem a monopolização do jogo de ideias por maiorias efêmeras, nem, tampouco, o silenciamento de vozes minoritárias marginalizadas (Ely, 1980, p. 105-79). Isso sinaliza que a jurisdição se presta a salvaguardar as pré-condições da deliberação política (Freeman, 1990, p. 327-70; Holmes, 1993, p. 195-240). De mais a mais, além de preservar a higidez do processo político, o Poder Judiciário ocupa uma posição importante na proteção dos direitos fundamentais e na preservação da materialidade democrática, uma vez que, isolando-se das intempéries e sazonalidades da atividade político-partidária, mostra-se melhor equipado para produzir decisões exclusivamente lastreadas em argumentos de princípio, decisões que, voltando-se a um exercício da razão humana, detêm maior aptidão à busca honesta pela resposta correta ao dilema público (Dworkin, 1985, p. 33-71). Apesar de os juízes não serem mágicos, estando, de fato, sujeitos a deslizes e equívocos, existe um valor democrático na existência de uma instituição autônoma encarregada de decidir com base em princípios (Michelmann, 1999, p. 59).

Isso não significa, porém, que tal instituição possa funcionar de qualquer maneira. Vimos que a responsabilidade de um juiz pelo funcionamento adequado do sistema de justiça será tanto maior quanto mais elevada for sua posição na estrutura da jurisdição. Os entendimentos fixados por tribunais de caráter superior são, no que se refere à operação da jurisdição, mais impactantes e influentes do que as interpretações feitas por juízes e tribunais de piso, haja vista sua força argumentativa, sua amplitude político-simbólica e, a depender do tipo de decisão, seu caráter formalmente vinculante. Considerando o contraditório especial de que depende a legitimação dos padrões decisórios produzidos por órgãos jurisdicionais de posição elevada, a exposição e a indiscrição midiáticas de seus membros são mais nocivas à democracia do que a exposição e a indiscrição de quaisquer outros juízes, uma vez que causam um prejuízo mais profundo e duradouro à integridade da contribuição específica que a jurisdição fornece à governança democrática. Essa ideia se aplica, igualmente, à responsabilidade do Judiciário para com a abertura e o pluralismo da deliberação pública. Decisões de cortes supremas e tribunais constitucionais são comparativamente mais impactantes e influentes no debate público, uma vez que traduzem a última palavra jurisdicional sobre o sentido da Constituição. Quando uma corte suprema ou um tribunal constitucional profere uma decisão sobre a Constituição, sua orientação afeta o debate político de modo direto e decisivo. Diante disso, a pergunta que fica – que é precisamente a pergunta de que a teoria constitucional tem tão diligentemente se ocupado nas últimas décadas – é se existe algum expediente ou raciocínio capaz de tornar mais democrática a intervenção judicial na deliberação coletiva. Ou, em outras palavras, se o controle judicial de constitucionalidade das leis pode ser pensado e colocado em prática sem necessariamente atentar contra a democracia.6

As respostas são múltiplas e plurifacetadas, porém a maioria delas gira em torno da ideia de diálogo. Segundo esse prisma, as cortes dialogam com os parlamentos, de formas variadas, buscando a construção de um consenso (ou a estabilização de um dissenso saudável) a respeito do significado da Constituição. Esse diálogo possibilita que aspectos importantes sejam levados em consideração no processo de discussão e formação das escolhas da coletividade, ao mesmo tempo que evita que as instituições políticas sejam alijadas desse processo. Por um lado, a intervenção do Poder Judiciário, quando construtiva, possibilita que aspectos importantes relativos à história institucional do direito e aos princípios de justiça, justeza e devido processo que orientam e dão sentido às práticas sociais não sejam ignorados no debate político; por outro lado, a atuação do Poder Legislativo e do Poder Executivo, instituições respaldadas pelo voto e sujeitas ao escrutínio público e à responsividade eleitoral, promove a legitimidade democrática das decisões coletivas, desde que, obviamente, as condições necessárias à tomada adequada de tais decisões estejam garantidas. O diálogo fomenta a democracia e, por conseguinte, elimina (ou minimiza) o déficit democrático da jurisdição constitucional. Ou seja, a perspectiva de que parlamentos e tribunais devem dialogar consiste em uma tentativa teórica de conjugar os diferentes posicionamentos na discussão sobre a última palavra na interpretação constitucional. Recusando tanto a inclinação cega pelo Poder Legislativo quanto a crença descriteriosa na capacidade do Poder Judiciário, a defesa do diálogo pressupõe que há um ganho para a democracia quando juízes e legisladores contribuem, cada qual à sua maneira, com o debate público sobre o significado da Constituição (Mendes, 2011, p. 106-7).

A teoria remonta à obra de Alexander Bickel. Em seu livro The least dangerous branch, publicado em 1962, Bickel tenta clarificar o papel ativo que a Suprema Corte dos Estados Unidos vinha então desempenhando no assentamento social de uma visão mais igualitária e progressista sobre as liberdades e os direitos fundamentais. De acordo com ele, considerando a “dificuldade contramajoritária” inerente ao controle judicial de constitucionalidade das leis, para que o Poder Judiciário desempenhe a jurisdição constitucional de forma minimamente democrática, é fundamental que, além de realizar um processo adequado de interpretação e aplicação do direito, ele exercite suas virtudes políticas. Ao emitir suas decisões, a Suprema Corte deve sopesar tanto a dimensão de princípio quanto os aspectos de conveniência e oportunidade de seu provimento, agindo com prudência e cautela. Embora seja necessário priorizar a dimensão de princípio da decisão, a Corte pode, a depender das circunstâncias, ficar passiva, isto é, decidir não decidir, possibilitando o prosseguimento orgânico do colóquio público entre as instituições políticas e a sociedade. Ao fazer isso, a Corte desempenha suas virtudes políticas, prestigiando a deliberação política, sem, no entanto, demonstrar nenhuma aquiescência com o conteúdo da escolha eventualmente construída, e, assim, dialoga com os fóruns políticos, ainda que participando do diálogo com seu silêncio (Bickel, 1986, p. 15-8, 22-8, 63-71, 113-98; Mendes, 2011, p. 108-9; Godoy, 2017, p. 114-8).

Cass Sunstein atualiza essa perspectiva, dando a ela um contorno mais refinado (Mendes, 2011, p. 119), ao defender a tese de que, no exercício da jurisdição, juízes e tribunais devem decidir dizendo apenas o estritamente necessário para embasar a solução do problema submetido à sua apreciação. Esse modo de desempenhar a função judicial implica, na visão de Sunstein, uma postura ético-interpretativa frente à realidade política, postura essa que, sem negar a exigência de o Judiciário prover a pacificação dos conflitos sociais e garantir alguma uniformização no deslinde das controvérsias jurídicas, mantém-se atenta aos limites do lugar institucional ocupado pela jurisdição na democracia. Apesar de seguir a lógica de Bickel, reconhecendo a necessidade de o Judiciário em geral e a Suprema Corte em particular exercerem suas virtudes políticas, Sunstein atenua os problemas que poderiam ser causados por uma tendência excessivamente deferente da Corte. Para ele, a Corte não deve não decidir, e sim decidir o mínimo possível; trata-se, portanto, de uma defesa teórica direcionada não à passividade, mas ao minimalismo. Em se limitando a endereçar o justamente indispensável, deixando deliberadamente inúmeras coisas por dizer, a Corte neutraliza o perigo de erros em suas intervenções no campo político, assim como, por consequência, minimiza o déficit democrático de suas decisões. Esse “uso construtivo do silêncio”, todavia, não importa em uma negativa de prestação jurisdicional, já que, ainda que de forma muito restrita, buscando sempre um acordo teórico incompleto, a Corte deve apresentar, de um jeito ou de outro, alguma resposta ao problema analisado (Sunstein, 2001, p. 3-17 e 40-4). Ademais, Sunstein sustenta que, em conjunturas específicas, quando o minimalismo se mostrar evidentemente desnecessário ou prejudicial, a Corte pode assumir um comportamento maximalista, dando substância à sua intervenção, com vistas a proteger os pré-compromissos básicos da democracia ou evitar inseguranças na aplicação futura do padrão decisório definido (Sunstein, 2001, p. 57; Mendes, 2011, p. 122-3; Godoy, 2017, p. 127).

Com Adrian Vermeule, Sunstein ressalta, ainda, dois aspectos definidores de como os juízes e tribunais devem decidir: as capacidades institucionais do Poder Judiciário e os efeitos sistêmicos das decisões judiciais. Segundo eles, os juízes precisam conhecer e reconhecer as possibilidades e os limites discursivo-institucionais da posição que ocupam na estrutura do Estado. Juízes são seres humanos e, por conseguinte, suscetíveis a falhas. Ao decidir sobre determinada questão, eles devem ter em mente suas próprias limitações cognitivas, admitindo (perante si próprios, em primeiro lugar, mas perante também as partes do processo e os atores políticos externos) que não sabem tudo, nem são plenamente capazes de antecipar as consequências de seus provimentos, pois seu viés é reduzido pelo tecnicismo jurídico e pelo distanciamento que precisam manter com relação ao mundo político. Por outro lado, o lugar institucional do Poder Judiciário – no qual se insere o que chamamos aqui de corte, que é o lugar de fala institucional dos juízes – possibilita a ele fornecer uma contribuição singular à democracia, baseada na construção de decisões comprometidas com o direito e a razão, lastreadas na atividade processual e construídas sob a coordenação de um agente público independente e imparcial. Essa situação institucional da jurisdição dá a ela ferramentas valiosas, o que não significa, naturalmente, que os juízes estejam aptos a se pronunciar sobre qualquer coisa, em qualquer sentido, porque a eles faltam outras ferramentas igualmente valiosas. Juízes não têm aptidão, por exemplo, para lançar uma visão sistêmica e responsável sobre o todo da máquina pública (capacidade que é própria do Poder Executivo), nem, tampouco, para assimilar as nuances e complexidades do pluralismo social, acomodando-as de modo a preservar as diferenças em suas mais variadas facetas (competência que cabe, em regra, ao Poder Legislativo). Mas juízes têm um papel fundamental a desempenhar. O exercício adequado da função judicial pode repercutir muito positivamente na dinâmica da democracia, desde que, ao decidir, os julgadores, ao invés de reivindicar um poder que não têm condições de exercer a contento, assumam as fronteiras impostas por suas capacidades institucionais (Sunstein; Vermeule, 2003, p. 885-951).

No Brasil, a teoria de Sunstein e Vermeule é frequentemente utilizada como uma referência meramente retórica, sem nenhuma clareza com relação às suas possibilidades e aos seus limites argumentativos.7 Na verdade, o que a proposta das capacidades institucionais visa a estabelecer é uma estratégia de raciocínio a respeito do processo decisório levado a cabo por cada instituição. Essa estratégia pressupõe que a separação dos poderes seja compreendida a partir de uma especialização funcional, devendo cada função ser atribuída à esfera de Estado mais bem equipada para desempenhá-la; ainda, que existe sempre um grau de incerteza na distribuição e no exercício dessas funções, e que qualquer tentativa de realizar os fins traçados na Constituição, independentemente da instituição, está sujeita a falhas e desvios, tendo em vista os vieses cognitivos e as limitações de atuação inerentes à realidade institucional; e, por fim, que a escolha da melhor alternativa de decisão para determinado problema seja feita à luz das consequências que tal decisão pode produzir, haja vista o ideal da especialização funcional e o caráter variável e falível das capacidades de cada instituição. Com essas premissas, Sunstein e Vermeule pregam que, em raciocinando sobre a melhor decisão a ser tomada em determinado caso, os agentes institucionais optem não pela decisão ideal, mas pela melhor decisão possível tendo em conta os custos e os efeitos de cada uma das alternativas de resposta (Arguelhes; Leal, 2011, p. 6-50).

Essas teorias defendem que os juízes e tribunais devem cumprir suas atividades com cuidado, tomando como valiosa uma atuação politicamente estratégica, não no sentido de negar seus objetivos constitucionais, mas no de realizar tais objetivos de modo adequado e efetivo. Lidas à sua melhor luz, tais abordagens buscam otimizar a contribuição do Poder Judiciário à democracia, na medida em que apregoam a necessidade de diálogos interinstitucionais direcionados à realização dos fins da Constituição. Nesse sentido, o aporte de Bickel, Sunstein e Vermeule pode fundamentar práticas dialógicas muito salutares ao funcionamento de órgãos como o Supremo Tribunal Federal (Godoy, 2017, cap. 3). É interessante perceber, também, como a ideia de que os juízes devem às vezes silenciar, às vezes decidir o mínimo possível e, em todo caso, agir tendo em vista suas capacidades e limitações institucionais pressupõe uma interpretação substancializada da separação dos poderes, uma interpretação muito próxima (apesar de não idêntica) à que adotamos como marco desta tese. Por causa disso, seria perfeitamente viável, mantido o referencial eleito neste trabalho, evocar qualquer uma dessas sugestões teóricas para explicar a responsabilidade do Poder Judiciário para com a deliberação pública e, assim, justificar que a exigência democrática de um estatuto diferenciado e rigoroso da liberdade de expressão judicial é tanto maior quanto mais elevada a posição ocupada pelo juiz na estrutura da jurisdição.

Entretanto, embora sejam úteis à compreensão do problema identificado e da solução proposta neste estudo, as teorias de Bickel, Sunstein e Vermeule não conseguem elucidar por completo a legitimidade das intervenções materiais que o Judiciário, muitas vezes, precisa fazer no debate político. Ainda que Sunstein reconheça a possibilidade de um maximalismo decisório em determinados contextos, sua explanação redunda em um consequencialismo perigoso – prisma que é incompatível com a premissa de que os juízes devem decidir a partir de um discurso de aplicação do direito, utilizando-se tão somente de argumentos de princípio. Na verdade, é preciso apostar na atitude interpretativa do juiz, tal qual faz Dworkin, pois só assim se torna verdadeiramente possível esclarecer a razão de existência da jurisdição na democracia (Bustamante, 2016, p. 29-69). A jurisdição existe porque fornece à governança democrática uma contribuição singular e insubstituível: decisões construídas em um processo orientado pelo contraditório material, fundamentadas na história institucional do direito e na comunidade de princípios, e proferidas por um agente independente e imparcial.

Ocorre que a formulação de Dworkin não se preocupa tanto com o valor de uma articulação dialógica entre o Poder Judiciário e as instituições políticas. Alinhada com a compreensão do direito como integridade, essa preocupação está, no nosso entender, na tese do constitucionalismo democrático, de Reva Siegel e Robert Post.

O argumento de Siegel e Post parte da crítica que a corrente do constitucionalismo popular faz à ideia de supremacia judicial. Segundo os defensores do constitucionalismo popular, a interpretação dos elementos mais fundamentais da Constituição – aquilo que Mark Tushnet chama de “Constituição fina” (thin Constitution), que se refere ao conjunto de compromissos básicos que formam um projeto constituinte – só pode ser realizada pelo povo, em um ambiente radicalmente democrático. Caso haja algum desentendimento sobre o significado das normas constitucionais essenciais, é preciso estabilizá-lo e resolvê-lo em um debate aberto com a participação do povo, e não por meio da intermediação especializada de juízes e tribunais. Essa intermediação, embora relevante, não pode implicar a imposição de uma palavra final sobre o sentido da Constituição. A interpretação judicial é mais uma dentre muitas que compõem a discussão pública (Tushnet, 1999, p. 9-12, 30-31 e 180-ss; Godoy, 2017, p. 98-104).

Nesses termos, a teoria do constitucionalismo popular oferece uma ressalva poderosa à lógica da supremacia judicial. Todavia, o ambiente “radicalmente democrático” em que suas conclusões se baseiam consiste, a rigor, em uma ficção. No mundo contemporâneo, composto por sociedades largas, plurais e complexas, nenhuma maioria é plenamente estável ou mesmo identificável. Assim, nem a decisão tomada pelo Poder Legislativo (ou pelo próprio eleitorado, via plebiscito ou referendo) é propriamente majoritária, nem, tampouco, o provimento do Poder Judiciário é exatamente contramajoritário; ao contrário, o que há é um debate contínuo e multifacetado, uma “babel” de inúmeras vozes que ora se chocam, outrora se acomodam, e assim sucessivamente, ininterruptamente, sem que nenhuma instituição tenha a última palavra sobre a Constituição. Como pontua Barry Friedman, as normas constitucionais são fluidas, e seu texto é aberto e versátil, pelo que toda interpretação dessas normas é, necessariamente, contingencial e sujeita a disputas políticas e modificações futuras. Nesse cenário, o que cabe ao Poder Judiciário é interagir com os demais atores no debate. Trata-se de um papel importante, pois, empregando as ferramentas que o ordenamento põe à sua disposição, os juízes, especialmente no âmbito de uma corte suprema ou de um tribunal constitucional, podem levantar e conformar argumentos, enfatizar pontos de vista, direcionar, catalisar ou frear inclinações ou tendências discursivas, bem como incluir e chamar a atenção para questões, fomentando a discussão sobre elas (Friedman, 1993, p. 577-682; Mendes, 2011, p. 138-148; Fernandes, 2022, p. 147-151).

Com isso em mente, Siegel e Post sublinham a importância de as instituições do Estado alimentarem, ao invés de esvaziarem, o diálogo sobre a compreensão e a densificação da Constituição. Nessa linha de pensamento, o constitucionalismo democrático traduz uma sugestão de equacionamento institucional da tensão entre uma Constituição rígida e o autogoverno do povo, entre a previsão do devido processo legislativo e dos direitos fundamentais como exigências da democracia e a ideia de que as decisões públicas devem emanar da soberania popular. Levando a sério as ressalvas do constitucionalismo popular à supremacia judicial, porém avançando no sentido de reconhecer ao Poder Judiciário um lugar de mediação entre a vontade do povo e a institucionalidade democrática, Siegel e Post entendem que os juízes têm a função de assegurar, proteger e realizar as condições da democracia, sem poderem, no entanto, encerrar ou esvaziar o lócus de debate coletivo sobre o significado da Constituição. Conforme esclarecem, não existe uma relação de exclusão entre a primazia da soberania popular e uma atuação ativa e substancializada da jurisdição. Quando decide a respeito de determinada questão constitucional, a corte suprema ou o tribunal constitucional lança um olhar sobre o tema em jogo – um olhar embasado em argumentos de princípio e, portanto, eloquente e influente, mas um olhar que, uma vez posto no mundo, passa a sujeitar-se a um processo aberto e contínuo de escrutínio e correção. Logo, não há necessariamente um conflito entre o exercício da jurisdição e o funcionamento da política democrática, já que, embora o Judiciário tenha uma voz poderosa e importante no processo de interpretação da Constituição, suas decisões se veem, inevitavelmente, imersas em um ambiente de incessante revisão, podendo ser mudadas no futuro (Siegel; Post, 2009, p. 25-35; Godoy, 2017, p. 128-139; Fernandes; Dantas, 2019, p. 61-88).

Em referência ao famoso caso Roe v. Wade, em que a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que a Constituição norte-americana protege o direito da mulher ao aborto (Estados Unidos da América, 1973), Siegel e Post argumentam que existe uma interdependência inevitável entre o direito constitucional e a política. O exemplo de Roe é emblemático, uma vez que, após a decisão, grupos críticos ao entendimento da Corte passaram a se mobilizar, em níveis múltiplos da política dos Estados Unidos, em busca de estratégias que viabilizassem, inicialmente, desafiar o precedente e, a médio prazo, revertê-lo. De acordo com Siegel e Post, o constitucionalismo democrático sugere o que a vivência constitucional norte-americana tão vividamente demonstra: “que o direito constitucional é um nomos, e que a fidelidade a tal nomos exige uma articulação que é ao mesmo tempo jurídica e política” (Siegel; Post, 2007, p. 433, tradução nossa).8 Essa perspectiva robustece a ideia de que não existe a última palavra sobre o significado da Constituição, mas tão somente uma palavra que, interpretando o texto constitucional em dado sentido, põe fim a uma rodada deliberativa e, em havendo contestação, imediatamente inicia uma nova etapa de debate (Mendes, 2011, cap. 6 e 7). A análise da reação política à decisão em Roe, publicada por Siegel e Post em 2007, já prenunciava a possibilidade de a Corte em algum momento adotar uma visão constitucional diametralmente oposta a respeito do direito ao aborto. Isso acabou acontecendo em 2022, quando o precedente estabelecido em Roe foi superado com o julgamento em Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization (Estados Unidos da América, 2022).

Em síntese, o diálogo entre o Poder Judiciário e as instituições políticas é não apenas um fator de legitimação da atuação jurisdicional, mas também uma realidade institucional inevitável. Assim, o caráter democrático de uma decisão judicial não é medido pelo silêncio do juiz, nem pelo fato de ele dizer o mínimo possível. A intervenção do Judiciário no debate político é construtiva e democrática quando, enunciando uma resposta moralmente correta ao problema discutido, oferece uma contribuição a esse debate sem pretender encerrá-lo. A responsabilidade dos juízes para com a deliberação pública tem que ver exatamente com isso: o exercício da jurisdição precisa ser capaz de fornecer à democracia um ponto de vista diferenciado sobre as temáticas em disputa na esfera pública, um ponto de vista lastreado em argumentos de princípio, fiel à história institucional do direito e aos princípios de justiça, justeza e devido processo que dão sentido às práticas sociais e institucionais. Como a última palavra jurisdicional sobre o significado da Constituição é dada pela corte suprema ou pelo tribunal constitucional, a responsabilidade de tais órgãos é sensivelmente maior do que a de juízes e tribunais de piso, pois suas decisões afetam mais direta e profundamente o debate político. É justamente por isso que, tal qual escrevemos antes, a obrigação de preservar o contraditório, a imparcialidade e a fundamentação racional e principiológica é tanto maior quanto mais elevada for a posição do juiz na estrutura do sistema de justiça.

O que essa constatação nos diz a respeito do regime da liberdade de expressão judicial? Diz, sobretudo, que a indiscrição de um juiz que integra uma corte suprema ou um tribunal constitucional é mais prejudicial à dinâmica democrática do que a indiscrição de quaisquer outros juízes. Quando um membro da corte suprema ou do tribunal constitucional manifesta publicamente seu pensamento sobre determinado assunto, adiantando seu entendimento a respeito de uma questão constitucional controvertida e, com isso, tomando parte em uma discussão de natureza política, sem a mediação do processo jurisdicional democrático, ele não apenas rompe com o contraditório e a imparcialidade. Ele esvazia, também, o espaço de diálogo interinstitucional, minando a higidez do processo de escrutínio, revisão e correção da decisão da corte na esfera pública.

Vejamos um exemplo. Em 2013, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados entendeu ser constitucional a Proposta de Emenda à Constituição nº 33, a qual estabelecia que as decisões de inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo Tribunal Federal seriam revistas pelo Congresso Nacional e, em caso de divergência entre os poderes, submetidas a consulta popular. Apesar desse pronunciamento da CCJ da Câmara, a proposição ainda se encontrava em uma fase relativamente incipiente de discussão e maturação no Congresso. Não obstante isso, o ministro Gilmar Mendes disse a jornalistas que, se a PEC fosse aprovada, seria melhor fechar o Supremo. “Não há nenhuma dúvida, ela é inconstitucional do começo ao fim, de Deus ao último constituinte que assinou a Constituição”, afirmou Mendes. “É evidente que é isso. Eles rasgaram a Constituição. Se um dia essa emenda vier a ser aprovada, é melhor que se feche o Supremo Tribunal Federal. É disso que se cuida.” (Oliveira, 2013). Após essa fala (mas não necessariamente por causa dela), a tramitação legislativa da proposta estagnou.9

O discurso de Gilmar Mendes não é problemático em razão de seu conteúdo crítico, até porque, na época, houve inúmeras vozes, dentro e fora da academia jurídica, que se levantaram em censura à PEC nº 33. O problema está no fato de o emissor da opinião ser ministro do STF. Como existia a possibilidade real de a proposta, uma vez aprovada, ser controlada no Supremo, a manifestação pública de Mendes implicou uma antecipação monológica do voto que ele decerto proferiria em um futuro julgamento. Só que, prolatado a jornalistas, esse voto foi exarado sem a mediação discursiva do processo, sem o constrangimento dos argumentos e contra-argumentos dos sujeitos processuais e sem o balanceamento da colegialidade. Quando Mendes decretou, solitariamente, que a PEC era inconstitucional, ele menosprezou tanto o potencial deliberativo do processo democrático de controle judicial de constitucionalidade, quanto as opiniões que os outros ministros do Supremo Tribunal Federal construiriam no decorrer desse processo. Essa atitude prejudicou, de antemão, a abertura de um possível futuro pronunciamento do Supremo a respeito da matéria, esvaziando, por conseguinte, o diálogo institucional e social que talvez se estabelecesse a partir desse pronunciamento. Fosse a PEC nº 33 constitucional ou não, estorvar o debate público sobre ela significou trilhar um caminho nocivo à democracia.

A fala de um ministro do STF tem um impacto maior e mais longevo na deliberação política do que a de qualquer outro integrante do Poder Judiciário no Brasil. Os ministros não podem, portanto, opinar sobre problemas da realidade política como se fossem parlamentares ou jornalistas. Em publicizando livremente suas opiniões a respeito de fatos do cotidiano político, os juízes do Supremo acabam trazendo a praça para dentro da corte, embaçando a separação fundamental entre esses dois lugares de fala institucional. Isso desnatura a própria corte – o que é um problema enorme, pois, como já dissemos, a corte só existe como lugar discursivo autônomo na medida em que contribui, à sua maneira especial, com a deliberação que acontece na praça. Ao se transformar em uma nova praça, a corte perde não apenas sua capacidade de colaborar com o debate público, mas também, e sobretudo, sua razão de existir.

3 A decisão do STF na ADI nº 3367

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3367, o Supremo declarou a constitucionalidade do CNJ, órgão estabelecido pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, para fazer o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. A ação foi ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros sob a alegação de que a criação do Conselho, além de resultar de processo legislativo que não respeitou o rito especial para a aprovação de emendas constitucionais (art. 60, § 2º, da Constituição), violava as cláusulas pétreas da separação dos poderes e da forma federativa de Estado.

Em seu voto, o relator da matéria, ministro Cezar Peluso, explica que, não obstante suas próprias ressalvas pessoais com relação à concepção e à composição do CNJ, não se vislumbrava nenhuma inconstitucionalidade na opção feita pelo legislador constituinte derivado. A explanação de Peluso centra-se na discussão sobre a possibilidade de um órgão de composição híbrida (isto é, composto de juízes e não juízes), cujos integrantes fossem, em sua maioria, nomeados pelo presidente da República, após aprovada a escolha pela maioria do Senado Federal, realizar o controle do Poder Judiciário.10 O estabelecimento de tal instituição representaria uma afronta à independência da jurisdição? Segundo Peluso, ser independente nunca significou estar imune de controle. Além disso, ao CNJ não foi dado desempenhar nenhuma função estritamente jurisdicional, circunstância que, no entender do ministro, assegura a preservação da independência dos juízes no desempenho da função para a qual se exige que eles sejam independentes: decidir os conflitos sociais que lhes são submetidos. Nesse ponto, Peluso desenvolve uma ideia interessante: a independência do Judiciário não se revela como um valor em si mesmo, mas um princípio instrumental que visa a propiciar a imparcialidade do juiz. Ou seja, o que de fato importa na democracia é o juiz ser imparcial – é ele decidir de modo isonômico, observando o princípio da igualdade, sem se deixar pender previamente para nenhum dos lados da demanda, tampouco se permitir conduzir, em sua análise do litígio, por sua própria subjetividade, por interesses, preferências, visões ou opiniões que não decorram de sua leitura do direito e da busca pela única resposta correta ao problema examinado. A independência da justiça é um postulado de importância inestimável, mas não por traduzir ela mesma um fim da democracia; isso é assim, na verdade, tão somente porque é de importância inestimável a imparcialidade judicial, a qual a independência proporciona e assegura. De acordo com Peluso, “[e]stá nisso, no valor político supremo da imparcialidade dos juízes e tribunais, o critério decisivo da estima da compatibilidade do Conselho Nacional de Justiça com todas as provisões constitucionais de um Judiciário independente” (Brasil, 2005, p. 30).

Esse é um argumento que interessa muito a esta tese, na medida em que possibilita olhar as garantias e prerrogativas da magistratura como instrumentos próprios ao cargo judicial, e não como direitos inerentes às pessoas dos juízes. O juiz não é vitalício e inamovível, nem faz jus a um subsídio irredutível, ao fato de essas coisas lhe pertencerem; quando é aprovado em concurso público de provas e títulos e, em sendo nomeado, é empossado como magistrado, o sujeito não conquista, como direito seu, um status que lhe dê acesso às garantias que acompanham o ofício judicial. Na verdade, a vitaliciedade, a inamovibilidade, a irredutibilidade de subsídio e quaisquer outras regras que, protegendo interesses do juiz, visem a estabelecer sua independência face a interferências externas constituem mecanismos de realização da sua imparcialidade, os quais têm por objetivo não atender a interesses subjetivos, e sim promover um processo jurisdicional comparticipativo, efetivo e justo. Qual pontua Mauro Cappelletti, “a independência não é senão o meio dirigido a salvaguardar outro valor – conexo certamente, mas diverso e bem mais importante do que o primeiro – ou seja, a imparcialidade do juiz”. Isso significa que o valor verdadeiro, o valor a que a Constituição da República de fato aspira, o “valor final – a essência ou a natureza, por assim dizer – da função judiciária é, portanto, que a decisão seja tomada por um terceiro imparcial, tertius super partes, depois que as partes tenham tido a possibilidade de apresentar e defender o seu caso” (Cappelleti, 1989, p. 32).

No tocante à fiscalização do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, competência que a EC nº 45 conferiu também ao CNJ, Cezar Peluso assevera que não existe nenhuma incompatibilidade entre a independência da jurisdição e a necessidade de os magistrados, na qualidade de agentes públicos, prestarem contas de sua atuação. O Poder Judiciário independente não pode ser uma instituição insular, isolada da realidade político-democrática. É essencial que os juízes se sujeitem a um controle mínimo de seus atos, até porque, no regime republicano, a autonomia funcional da magistratura deve implicar, em primeiro lugar, um lugar de responsabilidade. Ademais, instrumentos de responsabilização, quando acionados, precisam ser mais do que uma mera formalidade. A esse respeito, Peluso afirma, de forma surpreendente, que “é coisa notória que os atuais instrumentos orgânicos de controle ético-disciplinar dos juízes, porque praticamente circunscritos às corregedorias, não são de todo eficientes, sobretudo nos graus superiores de jurisdição” (Brasil, 2005, p. 33). Nesse sentido, face à ineficiência dos expedientes então existentes para a responsabilização de juízes por desvios ético-profissionais, mostrava-se não apenas constitucionalmente viável como politicamente meritório reforçar o ferramental de controle do cumprimento pela magistratura de seus deveres funcionais.

Dizemos, no entanto, que a fala de Cezar Peluso é surpreendente, vez que, apesar de reconhecer que a responsabilização ética é ineficiente sobretudo quanto a juízes de posição mais elevada, ele acrescenta, no fim de seu voto, uma conclusão decisória que é, no nosso entender, inconciliável com esse reconhecimento. Entre diversas mudanças na estrutura do Poder Judiciário, a EC nº 45 estabeleceu que compete ao Supremo processar e julgar, originariamente, as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público. Falando sobre o STF, Peluso escreve que não se pode “alimentar nenhuma dúvida a respeito da posição constitucional de superioridade absoluta desta Corte, como órgão supremo do Judiciário e, como tal, armado de preeminência hierárquica sobre o Conselho, cujos atos e decisões, todos de natureza só administrativa, estão sujeitos a seu incontrastável controle jurisdicional” (Brasil, 2005, p. 58). Com base nisso, citando um comentário doutrinário feito por Sérgio Bermudes, Peluso conclui que, como o Supremo é controlador do CNJ, não pode ser controlado por ele. Na ementa do acórdão, a tese sobre esse aspecto da decisão ficou redigida da seguinte maneira: “O Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito”.

Ou seja, o entendimento fixado é de que o CNJ é constitucional, porém não exerce nenhum controle sobre o STF.

Ao confirmar a autonomia do CNJ, o STF interpretou o art. 103-B da Constituição da República à sua melhor luz, sinalizando que há um valor autônomo, que o constituinte derivado escolheu realizar, na existência de uma instituição independente de controle do desempenho financeiro, administrativo e ético do Poder Judiciário. Entretanto, a compreensão de que o Supremo está fora da órbita de fiscalização do Conselho é de todo questionável. Sob o ponto de vista semântico, ainda que o STF tenha competência para revisar os atos e as decisões exaradas pelo CNJ, nada no texto da Constituição aponta que os ministros devam ficar à margem do sistema de responsabilidade ético-disciplinar. Peluso diz que, se o Supremo controla o Conselho, não pode ser controlado por ele, mas tal raciocínio está equivocado, pois é perfeitamente possível que as instituições se controlem mutuamente. Qual é, afinal, o impedimento constitucional de o CNJ controlar a atividade de um ministro, no que diz respeito ao cumprimento de seus deveres funcionais, e de esse ministro, caso o queira, levar a decisão de controle à apreciação ulterior do STF? Ainda que o Supremo tenha a última palavra sobre o expediente de controle, a atuação do Conselho na vigilância dos ministros pode funcionar como um fator de fortalecimento da institucionalidade democrática, constrangendo o tribunal a dispensar mais respeito à colegialidade e à discrição.

Ademais, o descumprimento de deveres éticos é um problema tanto maior quanto mais elevada é a posição jurisdicional ocupada pelo juiz transgressor. Em sua decisão na ADI nº 3367, o STF chancela um cenário injusto, pois sujeita os juízes e tribunais nacionais ao escrutínio do CNJ, porém poupa justamente os magistrados que mais atenção devem ter quanto a suas obrigações especiais: seus próprios ministros.

Considerações finais

A indiscrição judicial constitui um problema grave, não só em razão de violar frontalmente proibições previstas na Constituição e na Lei Orgânica da Magistratura, mas sobretudo porque essa indiscrição implica um esvaziamento do potencial deliberativo-decisório do processo jurisdicional, dificultando que o juiz desempenhe a incumbência de construir, em articulação ativa e efetiva com as partes, um provimento que ao mesmo tempo reflita a atividade processual e traduza a única solução correta ao conflito apreciado.

Indiscrição judicial é hipótese de ativismo. O juiz ativista é aquele que usurpa as atribuições das outras instituições do Estado, desnaturando a tarefa de interpretar e aplicar a norma. O ativismo acontece quando o juiz assume uma postura de desconsiderar o direito, trocando-o por sua própria subjetividade. Quando os juízes praticam ativismo, agindo com base em suas próprias ideias e perspectivas, em detrimento do que estabelece o direito, a atividade judicial é gradativamente degenerada, circunstância que leva à degeneração da própria democracia.

No Estado de Direito, o juiz é duplamente responsável: ele deve atuar para preservar a jurisdição como um lugar discursivo hígido, efetivo e continuamente comprometido com a imparcialidade, o contraditório e a fundamentação das decisões com base no direito, mas também para catalisar e melhorar o debate que acontece nos fóruns políticos e na esfera pública. Em assim sendo, a responsabilidade do magistrado será tanto maior quanto mais elevada for sua posição na estrutura da jurisdição. Isso porque a fala de um ministro do STF, por exemplo, tem um impacto maior e mais longevo, seja para a atividade da jurisdição, seja para a deliberação política, do que a de qualquer outro integrante do Poder Judiciário no Brasil.

A despeito disso, o próprio Supremo entende que não é controlado pelo CNJ, órgão criado para fiscalizar o cumprimento pelos juízes de seus deveres funcionais. Marcado pela inviabilidade de responsabilização ético-disciplinar dos juízes que ocupam as mais elevadas posições na estrutura da jurisdição – exatamente aqueles dos quais o direito espera o maior zelo para com o dever de exercer a judicatura com reserva e discrição –, esse cenário institucional vicioso acaba por estimular a politização do sistema de justiça, comprometendo sua funcionalidade e sua legitimidade.

Referências

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  1. 1 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Mestre em Direito e Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais; Consultor Legislativo concursado na Assembleia Legislativa de Minas Gerais; Professor da Graduação em Direito no Centro de Estudos em Direito e Negócios. https://orcid.org/0000-0003-0553-635X. rdpatrus@gmail.com.

  2. 2 Sobre a opção pela expressão “controle de constitucionalidade por via principal”, no lugar das variáveis “controle concentrado de constitucionalidade” e “controle abstrato de constitucionalidade”, ver Meyer; Rodrigues, 2012.

  3. 3 Utilizamos a expressão “padrões decisórios” para designar os referenciais decisórios expressos em precedentes jurisdicionais e súmulas de jurisprudência dos tribunais. Essa nomenclatura segue a inteligência do art. 966, § 5º, do Código de Processo Civil, conforme explicado em Câmara, 2022, p. 1.

  4. 4 Sobre a diferença entre precedente vinculante e precedente persuasivo, ver Bustamante, 2012, p. 301. Para uma categorização distinta, que concebe os precedentes como sendo de eficácia absolutamente vinculante, de eficácia normalmente vinculante e de eficácia persuasiva, cf. Marinoni, 2022, p. 221-2.

  5. 5 Segundo explica Luís Roberto Barroso, a jurisdição constitucional é a atividade desempenhada por um juiz na interpretação e na aplicação da Constituição, não obstante o caso, o método ou a razão de decidir, ao passo que o controle judicial de constitucionalidade constitui a tarefa de, no exercício da jurisdição constitucional, fiscalizar a compatibilidade dos atos infraconstitucionais com a Constituição. Ver em Barroso, 2022, p. 22.

  6. 6 Para diferentes versões dessa pergunta, ver Mendes, 2011, p. 19-67. Sobre as possibilidades do controle de constitucionalidade no direito comparado, cf. Cappelletti, 1999.

  7. 7 Ver, por exemplo, o argumento desenvolvido pelo ministro Luiz Fux em Brasil, 2016.

  8. 8 No original: “Democratic constitutionalism suggests what Carhart so vividly illustrates: Constitutional law embodies a nomos, and fidelity to that nomos demands engagement that is both legal and political.”

  9. 9 Diego Arguelhes e Leandro Ribeiro fazem referência a esse caso como sendo uma sinalização de decisão futura. Ver em Arguelhes; Ribeiro, 2015, p. 133-4; Arguelhes, Ribeiro, 2018, p. 22.

  10. 10 As alegações de inconstitucionalidade formal e de violação à forma federativa do Estado são, igualmente, rejeitadas pelo ministro. Todavia, dado o escopo deste trabalho, nossa análise se limita à discussão sobre separação dos poderes e independência do Poder Judiciário.