https://doi.org/10.18593/ejjl.34483

A CONSTITUIÇÃO DO ALGORITMO - ENTREVISTA COM FRANCISCO BALAGUER CALLEJÓN1,2

Entrevistado: Francisco Balaguer Callejón3

Entrevistador: Alberto Randazzo4

Resumo: Nesta entrevista o Prof. Francisco Balaguer Callejón responde perguntas sobre temas sensíveis que envolvem direito constitucional e a tecnologia dos algorítmos, assunto profundamente estudado por ele em seu livro recente e em outras publicações e conferências em vários países do mundo.

Recebido em 22 de dezembro de 2023

Aceito em 27 de dezembro de 2023

1 O papel do jurista e a importância do direito na atualidade

Querido professor, para começar nosso papo, pergunto-lhe qual é (ou deveria ser), a seu juízo, o papel dos juristas (e, no particular, dos constitucionalistas) nesta complexa etapa histórica?

Sob o meu ponto de vista, devem realizar a mesma função que lhes correspondeu: favorecer a solução pacífica dos conflitos sociais e o desenvolvimento civilizatório das sociedades. Esta função é exercida no século XXI em conjunturas cada vez mais difíceis, dadas as condições da globalização e as grandes transformações que a sociedade tecnológica está gerando.

Qual é o contexto no qual opera hoje o jurista?

O jurista, e especificamente o constitucionalista, trabalha hoje num ambiente hostil porque os grandes fatores de legitimação do nosso tempo são a economia e a tecnologia e, por primeira vez no mundo moderno, já não caminham de mãos dadas com o constitucionalismo, mas, por diversas razões (destacando-se, dentre elas e de maneira relevante, a dimensão estatal das constituições frente a agentes que são globais) agora se manifestam como fatores autônomos e em parte contraditórios com o constitucionalismo e com o mundo jurídico em geral. A economia e a tecnologia se apresentam como dotadas de uma racionalidade própria que agora pretende se impor sobre qualquer âmbito da vida e também sobre o mundo jurídico.

Em sua opinião, somos conscientes da importância do direito e de seu caráter essencial para a convivência?

As grandes crises do século XXI se instalaram fora do contexto cultural do direito e, portanto, fora dos instrumentos conceituais com os que os juristas e os constitucionalistas sempre trabalhamos. Devemos superar esta dificuldade, fazendo com que a sociedade perceba a importância do direito e a impossibilidade de dar respostas às necessidades de nosso tempo sem instrumentos jurídicos. Eu sempre explico aos meus alunos no primeiro dia de aula: é preciso engenheiros para construir pontes ou autoestradas, mas, por trás do trabalho de engenheiros, existe uma planificação urbanística regida pelo direito, umas condições de contratação submetidas ao direito, umas avaliações de impacto ambiental articuladas através do direito e muitas outras regulações jurídicas sem as quais estas pontes ou autopistas não poderiam ser construídas.

2 Direito e internet

Atualmente, qual é o papel das redes sociais no espaço público?

Por enquanto estamos assistindo a uma configuração muito negativa dos processos comunicativos e do espaço público através das redes sociais e dos aplicativos de internet desenvolvidos pelas grandes companhias tecnológicas. O motivo é que estas companhias possuem uns interesses econômicos e um modelo de negócio que são incompatíveis com as condições da democracia pluralista e com a configuração de um espaço público no qual se produza um debate produtivo e respeitoso com os direitos fundamentais e orientado à formação de uma opinião pública informada e reflexiva. O modelo de negócio destas companhias tecnológicas está baseado na publicidade (Facebook, por exemplo, obtêm da publicidade 98% de suas receitas) e aquelas precisam atrair a atenção do público para manter esse modelo de negócio. Assim sendo, programam seus algoritmos para favorecer os discursos mais radicais, pois assim promovem a discussão e o enfrentamento e, consequentemente, o incremento da utilização de seus aplicativos por parte do público.

Você não nega que a internet (Web 2.0) possa ter alguns aspectos positivos para a democracia, mas pontua que até agora os negativos parecem ter sido maiores. Como reverter o curso?

Teríamos que desfazer o percurso que começou a ser feito pelo Facebook e outros aplicativos de internet quando, ante o modelo aberto da Web 2.0, foram criados aplicativos fechados nos quais se produzem entornos hierarquizados através de algoritmos que são controlados pelas grandes companhias tecnológicas. Teríamos que romper com a estrutura fechada dos aplicativos e fazê-los intercomunicáveis, como ocorre com o uso da telefonia, dos mensageiros telefônicos ou do correio eletrônico. Qualquer pessoa pode enviar uma mensagem de e-mail através de um aplicativo específico de uma companhia que chega mediante um protocolo comum a qualquer outra pessoa que utiliza outro aplicativo de companhia diversa. O mesmo acontece com a comunicação telefônica mediante voz ou com os serviços de mensagem de texto. A comparação entre estes últimos e aplicativos como o Whatsapp ou o Telegram já nos evidencia a diferença entre os primeiros desenvolvimentos da internet, que eram abertos, e estes últimos, que são totalmente fechados. Devo esclarecer que defendi esta solução quando publiquei, em 2021, precisamente na Itália, um trabalho sobre os novos mediadores da era digital, o qual seria publicado em inglês a princípios de 2022, além de noutros idiomas5. Posteriormente, vi que esta reflexão foi defendida por personalidades relevantes do mundo tecnológico (que, naturalmente, não leram meus trabalhos), o que me faz pensar que não é uma proposta tecnicamente irrealizável.

Também fazendo uma comparação com os meios de comunicação “tradicionais”, qual é o impacto dos “mediadores digitais”, como você os define, na liberdade de expressão (que se converteu em um “produto comercial”) que, como sabemos, é a base dos sistemas democráticos? Como você assinala, os únicos interesses destes intermediários são de caráter econômico, já que não têm nenhum interesse pela democracia (nem a favor, nem contra). No entanto, têm um efeito óbvio sobre ela. Como é possível lutar, então, contra a supremacia do poder econômico sobre o político, que erode a democracia?

Esta é uma questão que nos causa grande perplexidade. Estávamos acostumados a meios de comunicação com linhas ideológicas mais ou menos definidas, que obtinham suas receitas pela correspondência destas linhas editorais com determinados setores sociais que os sustentavam, direta ou indiretamente. Os jornais eram comercializados ou as audiências radiofônicas ou televisivas eram alcançadas em função desta capacidade que os meios possuíam de se conectar com setores concretos da opinião pública. A estas receitas se somavam as da publicidade originadas, igualmente, da oferta ao público alcançado por estes meios. Mas os meios de comunicação se debilitaram muito nos últimos anos porque grande parte de sua audiência e dos mercados publicitários foram deslocados, em grande medida, pelas redes sociais, os novos mediadores dos processos comunicativos. Estes mediadores não seguem uma linha ideológica definida nem têm interesse algum em contribuir com o debate democrático. Nas lhes interessa a democracia, dentre outras coisas, porque estão presentes em Estados de todos os tipos, incluídos muitos que não são democráticos. No máximo, aspiram a bloquear a política estatal a fim de evitar que sejam controlados. O problema não é tanto de supremacia do poder econômico sobre o político, porque estas companhias não atuam com as mesmas linhas dos poderes econômicos tradicionais, que querem influir na política e condicioná-la. Em vez disso, poder-se-ia dizer que o que querem estas companhias é bloquear ou inutilizar a política.

... e, então, quais são os aspectos mais destacados da transição dos meios de comunicação tradicionais para os novos intermediários digitais?

Contrariamente aos meios de comunicação tradicionais, os novos mediadores desenvolvem autênticos ecossistemas que abrangem praticamente a totalidade do público que participa dos processos comunicativos. A transformação é enorme porque nestes ecossistemas precisam dar voz, não a um setor concreto, como ocorria com os meios de comunicação tradicionais, mas ao conjunto dos usuários. Como fazem? Através dos algoritmos. Estruturam a comunicação de uma maneira perversa porque seus algoritmos impedem que os usuários tenham uma visão completa do mundo (como tinham e têm os leitores da imprensa escrita, por exemplo) ao oferecer uma informação desagregada e orientada exclusivamente para retroalimentar as preferências ideológicas dos usuários de redes sociais. Como afirma Pariser, aprisionam as pessoas em bolhas nas quais recebem apenas as informações e as opiniões congruentes com suas próprias reflexões prévias. Deste modo, fragmentam artificialmente o espaço público e contribuem para radicalizar, cada vez mais, os distintos setores sociais. A diferença entre os meios de comunicação tradicionais e os novos mediadores digitais consiste em que os primeiros abriam o espaço público ao debate reflexivo, construíam pontes entre os diversos setores sociais, favorecendo, assim, consensos políticos e constitucionais. Os segundos, ao contrário, constroem muros, fecham o espaço público e geram uma diversidade de espaços privados dentro dos quais as pessoas se isolam e se radicalizam, dificultando os consensos políticos e constitucionais.

Em sua opinião, qual é a forma de frear as fake news e, portanto, de se defender da informação manipulada que atenta contra a liberdade de autodeterminação? Não acredita que a cultura pode ser um (talvez o principal) dos anticorpos contra a enfermidade da desinformação, uma das ferramentas das que o usuário pode se valer para promover a liberdade de expressão?

Obviamente, a cultura em geral e a educação digital em particular, são elementos fundamentais para combater a desinformação e as fake news. Claro que podem operar como anticorpos muito eficazes com relação a este e a outros problemas que temos atualmente com o mundo digital. Estes problemas se amplificam devido ao desconhecimento ou ao conhecimento superficial da realidade digital. Para resolver ou controlar um problema (as vezes, resolvê-los não é possível, mas sim reduzir o seu impacto) é muito importante que conheçamos suas causas, suas dimensões e sua natureza. Isto é algo inexistente em relação ao mundo digital. Tendemos a ver os desenvolvimentos tecnológicos como se fossem algo natural, como um produto de consumo a mais, como se não tivesse alternativa para a sua configuração atual. O mesmo ocorre com a desinformação. Parece algo dado, contra o que não se poderia lutar.

De quem é a responsabilidade principal pela desinformação?

As companhias tecnológicas também contribuem para gerar esta confusão sobre a natureza da desinformação, ao dar a impressão de que não são responsáveis, de que simplesmente gerem plataformas estáticas que funcionariam como um quadro negro em que cada um escreve o que quer. Mas não é assim, não são plataformas estáticas aquilo que eles administram. São aplicativos dinâmicos, organizados hierarquicamente através dos algoritmos, os quais estão orientados à desinformação para atrair maior atenção do público. S. Zuboff diz que, para estas companhias, os dados bons e os dados maus são iguais e que pedir-lhes que renunciem aos segundos (às fake news) é como pedir a um mineiro que deixe de extrair carvão para não sujar as mãos. Mas, em realidade, é algo ainda pior do que foi dito por esta autora: as companhias tecnológicas preferem os dados maus, porque com eles obtêm maiores benefícios e por este motivo orientam seus algoritmos a promoverem as fake news. Pelo menos no que se refere ao Facebook já está demonstrado que assim sucede.

Não há dúvidas de que a internet pode promover o conhecimento, mas se (e quando) é distorcida a informação parece que estamos num círculo vicioso do qual é difícil se retirar. Que pensa, dado que – como afirma – segue existindo uma diferença de atitude “ativa” e “passiva” a respeito da informação?

Esta é uma das diferenças entre o contexto dos meios de comunicação tradicionais e os novos entornos digitais onde se desenvolvem direitos tão importantes para uma sociedade democrática como a liberdade de informação e a liberdade de expressão. A atitude de quem se informava e segue se informando através dos meios de comunicação tradicionais é ativa, de busca pela informação, processada depois de uma maneira crítica e reflexiva, especialmente se se trata de informação obtida por meio de periódicos. Quem recebe a informação nos novos entornos digitais o faz de maneira passiva o que, junto com outros fatores que condicionam os processos comunicativos, favorece sua percepção acrítica e irreflexiva.

O que caracteriza, então, os processos de comunicação dos “entornos digitais”, incorrendo na atitude ativa ou passiva do usuário frente à informação?

Há várias características que são importantes para compreender que não estamos falando de diferenças nas qualidades pessoais e psicológicas quando distinguimos entre uma atitude ativa ou passiva ante a informação, mas de diferenças estruturais que têm a ver com a maneira como se conformam os processos comunicativos nos entornos digitais:

- À primeira delas já fizemos referência nesta entrevista. Nos entornos digitais, existem umas condições de quase monopólio nos aplicativos de internet e redes sociais mais difundidos. Estes aplicativos alcançam tendencialmente à totalidade do público, sem as distinções ideológicas que, no geral, agrupam o público dos meios de comunicação tradicionais. Esta dimensão global dos entornos digitais obriga a que a informação seja distribuída por meio de algoritmos que a processam de acordo com as preferências pessoais que são derivadas do perfil de cada usuário, criando o efeito bolha, a fragmentação e a radicalização dos usuários, que tão danosas são para um espaço público democrático. Nos entornos digitais se retroalimenta a prévia visão de mundo que possuem os usuários, limitando e empobrecendo sua percepção da realidade a uma determinada orientação.

- Nos entornos digitais a informação é recebida desagregada, diversamente do que ocorre com os meios de comunicação tradicionais. Se a pessoa lê um periódico impresso, por exemplo (ou se assiste a um noticiário televisivo), se vê obrigado a passar por informação que talvez não lhe interesse, mas que é importante para ter uma visão global do mundo: notícias culturais ou internacionais, por exemplo. Estas notícias não chegam aos usuários dos entornos digitais, exceto quando tenham manifestado previamente um interesse por estas temáticas. Deste modo, não só se retroalimenta sua prévia visão do mundo, mas se limita o seu alcance, contribuindo para empobrecê-la já não tanto em sua orientação, mas também em sua amplitude.

- Nos ecossistemas digitais a informação é recebida num entorno pessoal, não só de maneira passiva, mas também relativamente íntima, o que potencializa o impacto das fake news, porque reduz as defesas daqueles que a recebem. De fato, a informação é difícil de diferenciar de outras atividades que são realizadas nestes ecossistemas: enviar fotos a amigos, receber vídeos de terceiros, expressar opiniões sobre questões pessoais etc. O formato do entorno digital é contrastante com o exercício de um processo reflexivo e crítico tal como o que se realiza em virtude da informação que procede dos meios de comunicação tradicionais.

Existem outras diferenças, mas estas três que aponto evidenciam já as dificuldades que suscitam os novos processos comunicativos para o exercício de direitos constitucionais tão importantes para uma democracia pluralista como a liberdade de informação e a liberdade de expressão.

Qual é a importância do tempo nos processos de comunicação?

O tempo é fundamental nos processos comunicativos. Basta algum exemplo para compreender as transformações que temos experimentado nos últimos anos. Se eu envio uma carta a alguém (algo que não tenho feito há muitos anos) e levo em conta o processo normal que demora sua recepção, não esperarei uma resposta desta pessoa até que passe uma semana. O tempo da comunicação é amplo e há tempo também para pensar o que se escreve e o que se responde. Se, pelo contrário, eu envio um e-mail, mesmo sabendo que normalmente é recebido em poucos segundos, também posso gerir o tempo de uma maneira mais flexível porque entendo que seu destinatário pode não tê-lo recebido ou não tê-lo lido. Inclusive, se o tiver feito e tenho conhecimento (porque houve uma confirmação de leitura), compreendo que talvez não tenha tido tempo para responder de maneira imediata. Se, ao contrário, recebo uma mensagem através de aplicativos de internet, tipo Whatsapp, por exemplo, a confirmação da recepção é já um sinal convencional para que a outra pessoa responda, porque a forma pela qual foi construído este aplicativo é semelhante a uma conversa telefônica. É por tal razão que se costuma considerar descortês não responder imediatamente a mensagem, como o é não responder a uma pergunta que tenha sido feita numa conversação telefônica. Não queremos uma resposta para dentro de uma hora ou de um dia, queremos uma resposta imediata. Isto ocorre, em geral, com a interação nas redes sociais. O tempo de resposta é uma parte do problema. A ponto de que se tem cogitado estabelecer retardos na possibilidade de resposta em alguns aplicativos para evitar que a pressão para obter uma resposta rápida dê lugar a respostas irreflexivas e, às vezes, agressivas.

Qual a sua opinião sobre o valor do tempo para o Direito Constitucional em uma etapa histórica na qual as tecnologias aceleraram todos os processos democráticos? Como bem afirma, a visão do tempo muda substancialmente e os processos políticos terminaram por se contaminar com esta percepção do tempo, contribuindo para que a política se configure igualmente com um dinamismo excessivo no qual as agendas e as temáticas vêm condicionadas pelos processos comunicativos que se desenvolvem nas redes sociais e nos aplicativos de internet.

Esta nova percepção cultural do tempo, própria dos aplicativos de internet e das redes sociais, se expande a outros âmbitos. Antes, quando queríamos uma resposta legislativa a um problema político, sabíamos que iria ser lenta. Inclusive sabíamos que sua entrada em vigor e sua aplicação seria lenta. Uma das finalidades da vacatio legis era justamente possibilitar que as normas fossem conhecidas antes da entrada em vigor, porque os boletins onde eram publicadas oficialmente estas normas demoravam vários dias para chegar a algumas partes do território. Hoje, as normas são publicadas oficialmente pela internet e podem ser conhecidas imediatamente desde qualquer parte do território de um país. O mundo virtual anda muito mais rápido que o físico em tudo e nossa percepção do tempo está condicionada por esta nova realidade virtual. Isto afeta também os processos políticos: ninguém quer uma resposta para amanhã ou para dentro de um mês a um problema político de que se cogita hoje. Deseja-se uma resposta o mais imediata possível. Esta nova percepção cultural do tempo dificulta a relação entre os processos políticos e os processos comunicativos. Está cada vez mais difícil que os processos políticos possam enfrentar este dinamismo dos processos comunicativos, esta exigência de rapidez e celeridade. Esta dificuldade contribui para deslegitimar os processos políticos, para convertê-los cada vez mais em irreflexivos e irracionais e para promover as tendências populistas que sempre tendem a respostas rápidas para tudo, ainda que sejam falsas ou inadequadas.

Quais são as vantagens mais significativas da internet e das novas tecnologias?

São muitas. Na realidade, a internet e as novas tecnologias estão contribuindo, em muitos âmbitos, ao desenvolvimento de direitos fundamentais e também da democracia. Por exemplo, foram utilizadas para promover a participação popular nos processos legislativos ou constituintes. Em geral, as novas tecnologias oferecem muitas coisas positivas. Os processos comunicativos a nível global têm experimentado um importante impulso, tornando mais suportáveis situações de isolamento, como as da crise sanitária. A tecnologia possibilitou o desenvolvimento de vacinas com uma rapidez desconhecida até então, contribuindo, assim, para salvar a vida e a preservar a saúde de milhares de pessoas. Eu não estou em oposição à internet ou às novas tecnologias. Minha preocupação não é com o desenvolvimento tecnológico, mas com o impacto negativo provocado pela configuração de alguns aplicativos de internet nos direitos fundamentais e na democracia. Um impacto negativo que tem a ver com o modelo de negócio das grandes companhias tecnológicas. Isto pode ser corrigido, obviamente. É preciso buscar um equilíbrio que torne economicamente viáveis estas companhias, mas, ao mesmo tempo, não deixe em suas mãos a configuração dos processos comunicativos e do espaço público. O que é público deve pertencer à sociedade, não pode ser privatizado e monopolizado pelas companhias tecnológicas, nem se lhes pode conceder, como se tem feito até agora, uma liberdade de configuração total.

Quando diz que a verdade em seu conjunto pode ser obtida se cada um puser à disposição dos demais seu próprio “pedaço” de verdade, como num mosaico, a que está se referindo? Em outras palavras, como podemos atuar concretamente para reconstruir o “espelho” (segundo a metáfora que usa)? O caminho é o da democracia representativa? No entanto, se assim for, parece que o caminho está minado pelas novas tecnologias e pelos impulsos populistas.

Esta ideia procede de um provérbio árabe segundo o qual a verdade é um espelho que caiu do céu e se fragmentou em pedaços, de maneira que cada um de nós agora tem um desses pedaços e, para conhecer a verdade, precisaremos juntar todos eles. Este provérbio é uma metáfora muito útil para compreender a natureza da democracia pluralista: na democracia pluralista não há nunca inimigos, porque todos precisamos uns dos outros para construir uma verdade comum. Inclusive os fragmentos de verdade de que não gostamos, com os quais não estamos de acordo, são necessários para compreender o mundo, para entender a realidade, para conhecer a verdade. A verdade não é um produto, mas, assim como a democracia, é um processo, o resultado de uma obra coletiva na qual todos somos imprescindíveis. A via é a democracia pluralista, que por diversos motivos que foram assinalados já por Kelsen há pouco mais de século, é essencialmente democracia representativa no mundo moderno. O que não impede que a democracia representativa se possa completar com mecanismos de democracia direta.

Que contribuição realizaram as novas tecnologias para a democracia?

As novas tecnologias não provocaram, por si próprias, a crise da democracia representativa. Na realidade, as novas tecnologias, a partir da Web 2.0, proporcionaram instrumentos de participação popular que poderiam se combinar perfeitamente com a democracia representativa. O problema é que as grandes companhias tecnológicas frearam este processo de democratização, que decorria do desenvolvimento tecnológico, ao criar aplicativos fechados e hierarquizados que terminaram monopolizando os processos comunicativos e o espaço público. Estes aplicativos promovem, através de seus algoritmos, os movimentos populistas e, no geral, as tendências mais radicais e antidemocráticas, para gerar mais atenção do público e obter maiores benefícios publicitários, já que estes benefícios estão mediatizados pelo grau de interação que alcançam suas aplicações. Ao invés de favorecer processos de construção de uma verdade coletiva, por meio da junção destes fragmentos de verdade que tínhamos visto na metáfora antes mencionada, estas companhias contribuem para destruir uma percepção social compartilhada da realidade, devido à forma de configuração de seus algoritmos.

Que espaço há para a democracia representativa frente à democracia digital (como ambas se combinam)?

Na realidade, não há uma confrontação entre democracia representativa e democracia digital. Pensemos, por exemplo, na informatização dos processos eleitorais e no voto eletrônico. Num país enorme como o Brasil, com mais de duzentos milhões de habitantes, nas últimas eleições pudemos conhecer o resultado eleitoral em umas três horas. Um país como os Estados Unidos poderia aprender com este sistema informatizado para agilizar seus processos eleitorais e evitar a instabilidade que se produziu nas últimas eleições presidenciais no que tange ao seu resultado. A contraposição real é entre democracia representativa e uma pretensão de democracia direta total que quer utilizar os processos de consulta popular (facilitados, isto sim, por meio do desenvolvimento tecnológico) para deslegitimar e inclusive romper com a democracia constitucional.

O que pensa da democracia direta?

A democracia direta total não é autêntica democracia porque a democracia se baseia na articulação entre a preferência da maioria e o respeito aos direitos das minorias. A democracia direta, entendida como uma permanente consulta popular, parte de uma formulação prévia à democracia constitucional, propõe o referendo como um ato de soberania no qual a maioria decide tudo, ainda que seja pela diferença de um voto. Isto é aberrante, significa um retrocesso civilizatório ante o Estado constitucional, que se construiu sobre a ideia de democracia constitucional e da impossibilidade de admitir atos de soberania dentro da ordem constitucional. Os atos de soberania só são possíveis no momento constituinte, quando todos os setores do povo estabelecem um marco de convivência comum. Este marco de convivência não pode se romper por meio de um referendo, por exemplo.

Você fala de “constituição do algoritmo”, indicando com esta experiência a oportunidade de “constitucionalizar o algoritmo e digitalizar a constituição”. Como fazer? Pode explicar o que quer dizer?

Creio que o que a ideia de “constituição do algoritmo” mais contribui para o debate sobre a sociedade digital, a nova realidade virtual e a superação da “constituição analógica”, é entregar uma metodologia própria. Uma metodologia para compreender a nova realidade digital, que é diferente da física, substancialmente, porque esta última segue sob o raio de ação do Estado e está submetida ao Direito Público (e se mantém, portanto, dentro do marco definido pela constituição nacional). Ao contrário, a realidade virtual é global e está sendo gerida por grandes companhias tecnológicas que atuam dentro do marco do Direito Privado e, assim, fora do sistema de fontes do Direito estatal e Constitucional. Compreender a distinta natureza destas duas realidades é fundamental para entender os problemas que permeiam o mundo virtual e suscitar como podemos resolvê-los. Em grande medida, esses problemas têm suas causas no modelo de negócio de grandes agentes globais e seus efeitos ou consequências dentro do Estado. Isto faz com que nós tenhamos um campo de atuação limitado, porque geralmente vamos poder operar sobre os efeitos e não sobre as causas.

O que nos ensina esta metodologia em particular e o que nos sugere?

Esta nova metodologia da constituição do algoritmo nos permite compreender algumas coisas essenciais sobre a nova realidade virtual. Antes de tudo, que esta nova realidade virtual não reflete a realidade física, de tal maneira que o mundo jurídico e, em particular, o mundo constitucional, não tem igual projeção nos mundos virtual e físico, não pelo caráter tecnológico do mundo virtual, mas pelos interesses dos grandes agentes globais que o desenham e o configuram na medida de seu modelo de negócio. Daí, é importante compreender que num processo dialético como o que está se produzindo entre a constituição nacional e a ordenação global do mundo virtual não é possível pensar que uma das duas partes se imponha sem se transformar. Portanto, a metodologia da constituição do algoritmo nos diz que temos que constitucionalizar o algoritmo, intervir no mundo digital para torná-lo compatível com os princípios e valores constitucionais. Mas, ao mesmo tempo, nos diz que temos que digitalizar a constituição para que possa se adaptar aos novos desafios que se apresentam no mundo virtual.

3 Constituição

Você fala de uma deterioração da constituição frente à economia e à tecnologia.

Há uma questão geral de distanciamento das três legitimidades que andavam juntas no mundo moderno e que restaram dissociadas no século XXI: a legitimidade econômica, a científica e a constitucional. O constitucionalismo integrava também as outras duas legitimidades na medida em que as três eram expressão da razão e nas três se podia encontrar um fundamento comum através do conceito de lei: as leis econômicas, as leis científicas e a constituição como lei política. Com as sucessivas crises do constitucionalismo no século XXI, pudemos ver como a legitimidade científica e a tecnológica se consideram agora autossuficientes e contrapostas, em certa medida, à constituição nacional. Vimo-lo na crise financeira de 2008 com a imposição de uma “interpretação econômica da constituição” que superava, em muito, a ideia de constituição econômica e pretendia ordenar toda a realidade constitucional através da economia. Vimo-lo na crise democrática provocada pelas grandes companhias tecnológicas e que teve sua primeira manifestação em 2016 com sua intervenção no referendo do Brexit e nas eleições presidenciais norte-americanas.

Você aponta que hoje a Constituição regula uma parte da realidade que praticamente deixou de existir, mas não regula a realidade que se impôs e que configura um novo tipo de sociedade que vive num mundo digital. Podemos dizer que, ao menos nestes aspectos, a Constituição está defasada, talvez se apresentando em parte desligada da realidade?

No contexto da deterioração geral da constituição frente à economia e à tecnologia, está a questão, mais específica, do forte desenvolvimento do mundo virtual, que tem se incrementado extraordinariamente a partir da crise sanitária. Este mundo virtual ocupa uma dimensão já muito importante da realidade e há uma grande parte da sociedade que passa muito tempo de sua vida neste mundo virtual. A constituição não é alheia a este mundo virtual, mas segue regulando um mundo físico que se reduziu bastante. A constituição se forjou num mundo analógico e, como bem diz o Professor Sánchez Barrilao, a revolução tecnológica transformou em grande medida o seu objeto. Não há mais que pensar em preceitos constitucionais como os que regulam o segredo das comunicações (postais, por exemplo) ou a proteção da intimidade, para perceber que sua eficácia é hoje muito reduzida e não serve para enfrentar as lesões massivas de direitos que se estão produzindo no mundo virtual. Não serve porque estas lesões não são juridicamente isto, já que estão submetidas ao Direito Privado, através de contratos em que os usuários dos aplicativos de internet aceitam que seus dados sejam coletados através de suas conversas privadas captadas por alto-falantes inteligentes ou telefones, ou por meio de qualquer outra atividade na internet: correio eletrônico, leitura de notícias, buscas etc. Estamos vivendo num mundo híbrido no qual, em diferentes proporções e dependendo de cada pessoa, se combinam uma realidade virtual e uma realidade física. A constituição deveria regular não apenas a realidade física minguante, como o faz agora, mas também a realidade virtual crescente.

Se, como você assinala, o sujeito dos direitos se converte cada vez mais em objeto, há lugar para uma constituição, como a italiana, que se baseia no princípio personalista?

Este é outro dentre os problemas derivados das transformações geradas pela globalização e pela sociedade digital nos sistemas constitucionais nacionais e, em particular, nos direitos constitucionais. Por um lado, o sujeito dos direitos está mudando com a globalização. Alguns direitos constitucionais são canalizados através dos direitos que têm mais relação com o movimento econômico derivado da globalização, em concreto, os direitos dos consumidores e usuários. Quando não encontram uma via de proteção na constituição nacional, são garantidos, na medida de sua necessidade para a segurança do tráfego econômico, mediante os direitos dos consumidores. Se desloca, assim, o centro de gravidade dos direitos, como bem disse Augusto Aguilar, do cidadão ao consumidor. Mas, ao mesmo tempo, estes direitos perdem a conexão com sua fundamentação constitucional, baseada na dignidade da pessoa, porque se configuram agora como direitos instrumentais, acessórios às necessidades do mercado no contexto da globalização. Na sociedade digital se avança ainda mais, porque o direito que canaliza os outros é o direito à proteção de dados. Porém, o problema é que já não se trata apenas de mudança do sujeito de direitos, mas de sua conversão em objeto, na medida em que os dados são objetos do comércio na sociedade digital. Para o constitucionalismo, isto representa um retrocesso importante porque transforma a estrutura dos direitos e seu significado, convertendo-os em direitos instrumentais à segurança do tráfego econômico no contexto da globalização. Naturalmente, é de se reverter este processo, pois afeta as constituições nacionais, como a italiana, mas também afeta aquilo que estas constituições representam em termos de desenvolvimento civilizatório incorporado pelo constitucionalismo.

Você observa que sem respeito aos direitos fundamentais não pode haver democracia, mas acrescenta que as empresas tecnológicas estão causando um dano enorme e que o Estado parece ser apenas um espectador destes processos. Em sua opinião, o que poderia (ou deveria) fazer o Estado?

O dano que as companhias tecnológicas estão promovendo aos direitos é enorme, porque afeta massivamente um amplo número de direitos constitucionais: desde a intimidade à liberdade de informação, passando pelos direitos políticos. Não podemos esquecer que companhias como Facebook interviram em processos eleitorais através de seus aplicativos, mediante propaganda subliminar, conseguindo alterar o resultado previsível das eleições. Isto é algo que não tem precedentes. Os Estados têm muito a dizer e fazer para preservar seus sistemas constitucionais, a democracia e os direitos dos cidadãos. Há um amplo leque de medidas que podem ser postas em marcha, incluindo as sancionatórias e eventualmente penais, para os casos de interferências nos processos eleitorais. Um exemplo recente da capacidade que tem o sistema constitucional de controlar os efeitos mais perniciosos da atividade destas companhias tecnológicas encontramos no Brasil, com a linha tão positiva adotada pelo Supremo Tribunal Federal deste país. Isto não pode nos fazer esquecer que, ao menos no caso dos estados europeus, a maior eficácia na proteção de direitos vem da União Europeia, porque é a que tem condições para adotar medidas que as companhias tecnológicas terão que respeitar se não quiserem perder o mercado europeu.

Falando de participação, não seria o caso de se recuperar o papel dos órgãos intermediários? Parece-me que a função destes últimos (e, especificamente, dos partidos políticos) foi substituída por algoritmos.

Na realidade, as companhias tecnológicas atualmente são os próprios corpos intermediários, os autênticos mediadores que controlam os processos comunicativos e que contribuem para configurar o espaço público. Mas são mediadores negativos, porque não realizam uma função política de construção do espaço público e da democracia pluralista, senão uma função negativa destinada a gerar instabilidade política e social, favorecendo, assim, seu modelo de negócio em decorrência de que a instabilidade aumenta a interação em seus aplicativos e as receitas de publicidade. No que atine aos algoritmos, estes não estão substituindo os partidos, mas estão sim condicionando através das redes sociais, em grande medida, a sua agenda. Inclusive, há alguma tentativa de partido articulado em torno de algoritmos na Dinamarca (o partido sintético), mas não estamos ainda, nem creio que chegaremos a estar, no cenário de algoritmos que substituam os partidos ou os políticos. Detrás dos algoritmos sempre há pessoas e, em geral, interesses econômicos ou de outra natureza. A ideia de apoiar comportamentos ou posições políticas mediante algoritmos não é mais que um intento de validar interesses ocultos através do recurso à tecnologia e à ciência como instrumento de legitimação.

Que relação há entre os algoritmos e os processos de tomada de decisão?

Merece uma reflexão a relativa incompatibilidade entre os algoritmos e os processos de decisão democráticos. Ao passo em que os algoritmos forem ocupando espaços de decisão política ou administrativa, podemos assistir a um enfraquecimento dos princípios que fundamentam a democracia pluralista. A democracia pluralista tem uma dimensão essencialmente processual. O mesmo pode ser dito, em geral, do pluralismo como princípio estruturante de nossos sistemas constitucionais. Esta dimensão processual não deveria ser ocupada pelos algoritmos a não ser de maneira instrumental e limitada.

4 Populismo

Como podemos interpretar o fenômeno do populismo?

Para explicar o que significa o populismo, é preciso fazer referência, primeiro, aos anticorpos que se produziram contra o fascismo depois da Segunda Guerra Mundial. Basicamente são três: a globalização, que debilitou os estados nacionais, dificultando desvios totalitários; a integração supranacional europeia, que estabeleceu uma nova divisão do poder, tornando possível o controle dos Estados nacionais pelas instituições europeias e, o mais importante para nós, a consolidação do Estado constitucional, a normatividade da constituição e a democracia constitucional, no qual o poder da maioria está submetido a limites constitucionais. Não é casualidade que estes três anticorpos sejam as três obsessões do populismo, que costuma manter um discurso anti-globalizador, anti-europeu e muito crítico com as instituições de garantia da constituição, em particular, com as instâncias arbitrais, sejam autoridades eleitorais, juízes e tribunais ou cortes constitucionais.

Você escreveu que o populismo rompe com as coordenadas de espaço e de tempo da constituição. Como chegou a esta conclusão?

No que se refere à constituição e à democracia, o populismo quer estar, ao mesmo tempo, dentro e fora, em função de seus interesses peculiares. Não pretende implantar um regime ditatorial e abolir a constituição, mas mantê-la esvaziada em seu conteúdo. Para isso, utiliza referentes que preexistem à ordem constitucional, como o povo ou a nação, que não são interpretados nos moldes feitos pelos partidos democráticos, no marco da constituição, mas como instrumentos de ruptura permanente da ordem constitucional. Como se dizem os únicos representantes do povo ou da nação, utilizam estes conceitos para legitimar seus discursos contrários à constituição. Deste modo, rompem as coordenadas de espaço e tempo da constituição normativa. A constituição normativa se baseia em uma estrita separação entre o momento constituinte no qual se exerce a soberania e o momento constitucional no qual, como indicara Martin Kriele, não cabe nenhum poder soberano, porque todos os poderes do Estado devem se submeter à constituição. Ao mesmo tempo, a constituição parte da separação entre o povo como fator constituinte, que define um espaço constituinte de exercício da soberania, no qual o povo ocupa todo o espaço do poder porque neste momento atua como coletivo homogêneo, e o espaço constitucional, no qual o povo não pode mais intervir como poder soberano, nem como coletivo homogêneo, porque é um espaço onde é preciso garantir o pluralismo, a democracia pluralista e a proteção das minorias. Em conclusão, a natureza e o sujeito do poder são diferentes no momento e no espaço constituinte frente ao constitucional, gerando, assim, coordenadas específicas para a constituição que devem ser respeitadas. O populismo rompe essas coordenadas porque apela à nação ou ao povo para legitimar atos de soberania dentro da ordem constitucional que tenta legitimar através de referendo ou de uma democracia direta que não é direta, mas que assim se apresenta.

Que futuro prevê para o populismo em Europa?

Sobre o futuro, o único que posso dizer é que as tendências atuais não são positivas, porque os fatores de crise favorecem o desenvolvimento do populismo e porque as companhias tecnológicas, através de seus aplicativos de internet, têm um modelo de negócio que promove a instabilidade política para obter maiores receitas, com o que costumam promover as tendências populistas dentro do espaço público.

5 Globalização

Sou da opinião de que não faz sentido se opor (ou acreditar que é possível conter) à globalização, mas que é necessário compreender como atuar dentro dela. Qual a sua opinião?

Efetivamente, a globalização, como tantas outras transformações que se produziram no curso da história, tem sua própria lógica e não é possível freá-la. Inclusive, os atuais movimentos orientados a modulá-la, garantindo uma certa autonomia estratégica das economias estatais ou supraestatais estão destinados ao fracasso. A globalização tem muitos aspectos positivos e espero que um deles seja acabar com a guerra da Ucrânia, que representa um retrocesso civilizatório terrível. A interdependência dos Estados que supõe a globalização é um fator positivo na história da humanidade porque limita o seu poder. Um retrocesso pontual da globalização, como o que estamos vivenciando (ou, como o que experimentamos durante a crise sanitária), não significa que a lógica da globalização não termine se impondo.

Você assinala que o Estado perdeu grande parte de seu poder político com a globalização, mas também com a integração nacional. No entanto, como você observa, esta última parece ser fundamental para combater as involuções democráticas de alguns Estados membros. Como começou a integração europeia e quais foram as razões de seu êxito?

O processo de integração europeia surge historicamente num momento em que, além de procurar a paz entre os Estados europeus, que era o seu grande objetivo, resultaria muito funcional aos Estados em outros tantos aspectos muito importantes. Para compreender o êxito que teve o modelo de integração em seus primeiros cinquenta anos, é preciso situá-la em seu contexto histórico e conectá-la com outros processos que se produziram nos mesmos anos. A integração europeia se produz simultaneamente ao desenvolvimento da segunda globalização e também na época em que se tinham configurado sistemas constitucionais plenamente democráticos, com a extensão do sufrágio e com a consolidação das constituições normativas. Tanto o processo de globalização, como o de constitucionalização ou democratização geram uma diminuição da capacidade de ação política dos governantes europeus. Num caso, por fatores externos ao Estado, noutro porque o Estado constitucional implica novos controles políticos e jurídicos que reduzem a margem de manobra das maiorias governantes. Pois bem. O processo de integração europeia vai supor a transferência a instâncias internacionais de competências e capacidade de decisão política sobre matérias que antes estavam submetidas aos controles democráticos internos e que então passaram à esfera internacional. No âmbito internacional esses controles estão ausentes e o Estado atua por efeito de sua soberania, concertando com os demais Estados as políticas que logo serão aplicadas internamente através do princípio de primazia. Devido ao processo de integração europeia, as maiorias governantes dos Estados vão recuperar parte da margem de manobra que tinham perdido com o processo de globalização e com o processo de constitucionalização ou democratização. Este foi um dos motivos do êxito do processo de integração europeia.

O que significou a integração europeia e em que ponto se encontra?

O modelo de integração europeia funcionou bem até a terceira globalização, mas começa a quebrar-se com a crise financeira de 2008 e vem sendo deteriorado deste então. Para superar suas deficiências é necessário avançar rumo a um modelo federal, que é a única possibilidade que tem a Europa de fazer frente às condições econômicas, tecnológicas e geopolíticas da terceira globalização. Enquanto não se avance desta maneira substantiva no processo de integração, a Europa vai seguir carecendo das condições para ter autonomia política e estratégica. Não é preciso mais senão ver a situação atual: a Europa depende militarmente dos Estados Unidos, economicamente da China, do ponto de vista energético da Rússia e do ponto de vista tecnológico dos Estados Unidos e da China. Este conjunto de dependências não se dá em nenhum outro agente global. Como pode a Europa ter uma capacidade de atuação como agente global se depende de seus concorrentes globais no plano energético, econômico, militar e tecnológico?

Acredita que os riscos de involução democrática em alguns dos Estados membros são reais?

No que se refere à involução democrática, isto não é um risco, é uma realidade na Hungria e na Polônia. As instituições europeias estão sendo incapazes de impedir esta involução, embora pareça estar claro que se estes países não estivessem na União Europeia a involução democrática seria mais grave. O problema com o que nos enfrentamos é que o novo mecanismo de defesa do Estado de Direito, a diferença do anterior, de 2014, que estava concentrado nas ameaças sistêmicas (embora fosse ineficaz para resolvê-las), estendeu a suspeita a todos os Estados da União Europeia de maneira claramente injusta, desproporcional e carente de base jurídica. Este mecanismo gerou uma falsa equivalência entre os Estados com democracias consolidadas e os regimes iliberais, prejudicando assim a luta contra a involução democrática provocada por estes últimos. O pior que pode nos ocorrer é que, em lugar de erradicar o populismo, terminemos aceitando a sua lógica para combatê-lo e algo assim já está acontecendo atualmente na União Europeia.

A globalização e o poder crescente dos grandes agentes financeiros e tecnológicos globais levaram a uma marginalização da constituição. Em sua opinião, a que se deve isso?

No tocante à posição da constituição dentro da globalização, o desajuste é evidente porque a constituição surge historicamente para controlar o poder estatal e se mostra incapaz de controlar poderes globais que se situam fora do campo da ação do Estado. Esta é uma das chaves do declínio do constitucionalismo e de sua perda de legitimidade frente aos fatores que no século XXI estão acumulando maior legitimidade, que são a economia e a tecnologia. A constituição estatal, com seus princípios e valores, seu sistema de direitos e seu controle de poder, costuma se apresentar nas narrativas dominantes como um obstáculo para o desenvolvimento econômico e tecnológico. A constituição não parece ter nada a ofertar diante dos avanços tecnológicos que tanto bem-estar e tanta satisfação geram na sociedade.

Teria alguma proposta para voltar a situar a constituição no centro do espaço público?

Para voltar a situar a constituição no centro do espaço público, é preciso reverter este discurso e construir narrativas que ponham o foco no que a constituição pode oferecer ao gozo de direitos desde uma perspectiva perfeitamente compatível com o desenvolvimento tecnológico. É preciso fazer ver à sociedade que uma coisa é o desenvolvimento tecnológico, contra o que a constituição nunca estará, porque é um instrumento de progresso, de bem-estar e de crescimento dos direitos, e outra, muito diferente, é o interesse das grandes companhias tecnológicas que pretendem orientar e configurar este desenvolvimento unicamente em função de seus interesses econômicos. É preciso estabelecer um equilíbrio entre os interesses dessas companhias e os interesses da sociedade, os interesses públicos que a constituição representa. Através da construção de novas narrativas constitucionais, no marco da constituição do algoritmo, poderemos voltar a situá-la no centro da vida pública, como o que sempre foi: um fator civilizatório, um instrumento de progresso a serviço da humanidade.


  1. 1 Esta entrevista foi publicada originalmente na Revista de Derecho Constitucional Europeo, n.39, 2023.

  1. 2 Traduzido do castelhano por Diego Fernandes Guimarães

  1. 3 Catedrático de Derecho Constitucional de la Universidad de Granada, Espanha. https://orcid.org/0000-0001-8084-7890. E-mail: balaguer@ugr.es.

  1. 4 Professore Associato de Instituições de Direito Público da Universitá degli Studi di Messina. E-mail: alberto.randazzo@unime.it.

  1. 5 No Brasil: “O impacto dos novos mediadores da era digital na liberdade de expressão” en Espaço Juridico Journal of Law [EJJL], n. 1, 2022, Traduzido do castelhano por Diego Fernandes Guimarães.