https://doi.org/10.18593/ejjl.33002

SUBINCLUSÃO NA MODERNIDADE PERIFÉRICA: UMA ANÁLISE SISTÊMICA DO PODER COERCITIVO ENCARCERATÓRIO DO ESTADO BRASILEIRO

SUBINCLUSION IN PERIPHERAL MODERNITY: A SYSTEMIC ANALYSIS OF THE COERCITIVE INCARCERATORY POWER OF THE BRAZILIAN STATE

Lucas Lanner De Camillis1

Renata Almeida da Costa2

Germano Schwartz3

Resumo: O presente artigo utiliza a teoria dos sistemas sociais para descrever a situação do Estado periférico brasileiro em relação à sua população carcerária. Nesse sentido, o principal objetivo da pesquisa é analisar os subincluídos da periferia e como eles estão muito mais suscetíveis a serem postos perante o poder coercitivo do Estado e seus efeitos restritivos de liberdade, a partir de uma análise de dados da população carcerária entre os anos de 2021-2022. Assim sendo, a principal problematização é se a cumulatividade de exclusões da população periférica resulta na “marginalidade” e, portanto, na dependência das prestações dos diferentes sistemas funcionais da sociedade, sem o acesso direto a elas (prestações). Ou seja, se os “subcidadãos” estão muito mais expostos ao poder punitivo do Estado e suas violências. A metodologia escolhida é a partir de uma observação sistêmica. No entanto, ao final do trabalho faz o entrelaçamento com a criminologia em busca de material empírico para observar os fenômenos de encarceramento e da letalidade do Estado, que configura um dos temas centrais de um pensamento criminológico que tenha como objetivo a efetividade dos direitos fundamentais e humanos.

Palavras-chave: teoria dos sistemas sociais; modernidade periférica; inclusão/exclusão; subinclusão; sobreinclusão.

Abstract: This article uses the theory of social systems to describe the situation of the Brazilian peripheral state in relation to its prison population. In this way, the main objective of the research is to analyze the sub-included from the periphery and how they are much more susceptible to being placed before the coercive power of the State and its restrictive effects on freedom, based on an analysis of data on the prison population between the years from 2021-2022. Therefore, the main issue is whether the cumulative exclusion of the peripheral population results in “marginality” and, therefore, dependence on the benefits of the different functional systems of society, without direct access to them (benefits). That is, if the “sub-citizens” are much more exposed to the punitive power of the State and its violence. The chosen methodology is based on a systemic observation. However, at the end of the work, it intertwines with criminology in search of empirical material to observe the phenomena of incarceration and the lethality of the State, which configures one of the central themes of a criminological thought that has as its objective the effectiveness of fundamental rights and humans.

Keywords: social systems theory; peripheral modernity; inclusion/exclusion; sub-inclusion; over-inclusion.

Recebido em 08 de agosto de 2023

Avaliado em 21 de novembro de 2023 (AVALIADOR A)

Avaliado em 06 de novembro de 2023 (AVALIADOR B)

Aceito em21 de novembro de 2023

Introdução

A teoria dos sistemas sociais consiste na tentativa de Luhmann de criar uma metateoria para explicar a sociedade. É de se esperar, no entanto, que haja diversas críticas, reformulações e adições em uma teoria com essa perspectiva. E é a partir desse pensamento que ocorre a escrita desse artigo cujo objetivo é observar outras vertentes trazidas por doutrinadores sistêmicos, usando a teoria para descrever a situação do Estado periférico brasileiro em relação a sua população carcerária. Nesse sentido, o principal objetivo da pesquisa é analisar os subincluídos da periferia e como eles estão muito mais suscetíveis a serem postos perante o poder coercitivo do Estado e seus efeitos restritivos de liberdade, a partir de uma análise de dados da população carcerária entre os anos de 2021-2022. Assim sendo, a principal problematização é verificar se a cumulatividade de exclusões da população periférica resulta na “marginalidade”4 e, portanto, na dependência – ou na ausência – das prestações dos diferentes sistemas funcionais da sociedade. Ou seja, se essa população, chamada por Marcelo Neves também de “subcidadãos”, está mais exposta ao poder punitivo do Estado e suas violências do que outras.

A metodologia escolhida parte de uma observação sistêmica. Ao final do trabalho faz o entrelaçamento com a criminologia em busca de material empírico para observar os fenômenos de encarceramento e da letalidade do Estado, que configura um dos temas centrais de um pensamento criminológico que tenha como objetivo a efetividade dos direitos fundamentais e humanos (Carvalho, 2022, p. 130). Dessa forma, mesmo focando mais na perspectiva sistêmica-teórica faz-se um entrelaçamento com o pensamento crítico criminológico em busca de evidenciar o problema de subinclusão na modernidade periférica.

Nessa lógica, em busca de responder a problematização do trabalho, dividiu-se o artigo em cinco partes. O primeiro tópico (1) é uma explicação conceitual da teoria dos sistemas sociais de Luhmann. Busca analisar a forma inclusão/exclusão na perspectiva sistêmica. O segundo tópico (2), em uma lógica mais crítica, demonstra brevemente o problema da desigualdade social em Luhmann e a “falha” do primado da diferenciação funcional em explicá-la. O terceiro tópico (3) é focado na explicação do conceito de modernidade periférica trazido por Marcelo Neves, em que se problematiza frontalmente o primado da diferenciação funcional em regiões periféricas como a América Latina e, portanto, o Brasil. Consequentemente, a generalização da exclusão nos países periféricos e a profunda desigualdade levam a sociedade a se reproduzir-se de modo diferente, o que é nomeado por Neves de relações de “subinclusão” e “sobreinclusão” generalizadas em relação aos seus sistemas sociais, objeto de análise do quarto item (4). E no quinto e último tópico (5) encontra-se a parte empírica do artigo, com o objetivo de fazer uma breve análise de dados de como a grande parte da população carcerária faz parte dos subcidadãos, aqueles que não possuem o acesso aos benefícios do ordenamento jurídico estatal, mas que, ao mesmo tempo, dependem de suas prescrições impositivas.

1 A forma inclusão/exclusão na teoria dos sistemas sociais

A teoria dos sistemas sociais é formada por diferenciações funcionais da sociedade em subsistemas autônomos e relativamente dependentes entre si. Assim vista, a sociedade não é composta por indivíduos, com uma visão antropocêntrica, mas sim, por circuitos comunicativos funcionalmente diferenciados, encarregados de desempenhar uma função social especifica, perante o direcionamento de seu código binário específico (Bachur, 2012, p. 55). Esses circuitos comunicativos têm de ser minimamente imunes a aspectos estratificatórios, a fim de não comprometerem o desempenho funcional do sistema. Logo, o acesso à comunicação nos sistemas autopoiéticos deveria ser ditado por critérios exclusivamente funcionais de inclusão e exclusão, e as desigualdades fáticas internas a cada sistema deveriam ser explicadas apenas em função deles. Portanto, funções a-funcionais, ou seja, que não têm relação com a determinada função diferenciada do sistema, não podem ditar o acesso às comunicações dos sistemas autopoiéticos (Bachur, 2012, p. 55). A descrição da sociedade moderna composta por sistemas funcionalmente diferenciados implica que a inclusão/exclusão é decidida pelos próprios sistemas, ao passo que cada um regula os temas do que se trata e as suas regras de comunicação, bem como a posição que eles atribuem às pessoas (Luhmann, 2007, p. 585).

A partir da ideia de forma exclusão/inclusão, pode-se notar como o sistema sociedade é formado por exclusões, porque somente são possíveis inclusões nos sistemas sociais quando a exclusão for possível (Luhmann, 2007, p. 492). Isso posto, inclusão significa as circunstâncias pelas quais um indivíduo ou um grupo de determinado sistema social é levado em consideração, é designado ou é um objeto de interesse. A exclusão é o oposto, isto é, quando essa indicação não ocorre, podendo ser tanto sob forma de não acontecer uma comunicação inclusiva, quanto sob forma de uma rejeição explícita. Consequentemente, exclusão significa não levar em consideração o processo comunicativo em um ou em vários desses sistemas, assim como os efeitos cumulativos dos sistemas não serem considerados (Stichweh, 2019, p. 870). Ademais, o fato é que “uma inclusão gera várias outras exclusões por haver uma seleção forçada prévia de redução de complexidade que optou pelo tipo de comunicação incluída em cada sistema” (Schwartz; Costa, p. 2023, p. 11). Além disso, na inclusão, a sociedade descreve aquilo que ela põe como condição de participação ou observa como chance de participação; a exclusão, por outro lado, é aquilo que permanece no exterior - não marcado - quando essas condições ou essas chances são formuladas (Luhmann, 2013 p. 41)

Para tornar o conceito da forma inclusão/exclusão mais concreto, Luhmann (2007, p. 501; 2013, p. 41) utiliza distinção de pessoas/corpos, igualmente concebida por uma forma de dois lados. No lado da inclusão, os sistemas psíquicos (pessoas), acoplados à comunicação, são tratados como pessoas; no lado da exclusão, “os mecanismos simbióticos (violência, satisfação de necessidades etc.) dos meios de comunicação perdem sua ordenação simbólica específica e, com isso, a capacidade de orientar a ação, restando apenas a pulsão físico-corpórea” (Bachur, 2012, p. 62). Nessa lógica, inclusão significa que determinadas pessoas são consideradas no âmbito das comunicações de um sistema, enquanto exclusão significa desconsiderá-las.

Essa questão resta mais complexa quando se busca o entendimento da desigualdade social na teoria dos sistemas sociais. Luhmann (1998, p. 180) fala que

uma sociedade funcionalmente diferenciada está em condições de produzir e tolerar desigualdades extremas na distribuição de bens públicos e privados, mas sob a semântica dessa sociedade tal efeito encontra-se sob duas limitações: ele é visto como apenas temporário, podendo se alterar rapidamente; e ele está restrito a âmbitos funcionais individuais e, entre estes, encontram-se interrupções da interdependência5.

Em outras palavras, teria que respeitar duas condições especiais: (1) os aspectos distributivos serem contingentes, ou seja, temporários, e que seja possível uma reversão deles; e (2) a desarticulação dos efeitos distributivos, pois é preciso que os efeitos de exclusão não ultrapassem os sistemas funcionais em que estão inseridos. No entanto, a exclusão de um sistema tende a se juntar com a exclusão de outro sistema. Desse modo, pode-se notar que a exclusão é muito mais fortemente integrada que a própria inclusão (Luhmann, 1998, p. 190).

Nessa perspectiva, o grande problema da forma inclusão/exclusão na teoria dos sistemas passa a ser a alta integração da exclusão. Se uma operação de exclusão condiciona futuras operações de inclusão e exclusão, “como assegurar que esse encadeamento não venha a comprometer o primado da diferenciação funcional?” (Bachur, 2012, p. 63). O primado da diferenciação funcional é pela inclusão, assim como traz Luhmann (2007, p. 495-496):

em princípio, cada um deve ser um sujeito de direito e ter renda suficiente para poder participar na economia. Cada um, participando nas eleições políticas, deve poder reagir às suas experiências com a política. Cada um - até onde der - deve cursar pelo menos os graus elementares nas escolas. Cada um tem direito a um mínimo de benefícios sociais, ao serviço de saúde, a um enterro legal. Cada um pode se casar sem necessidade de autorizações. Cada um pode escolher uma confissão religiosa - ou renunciá-la. E se alguém não aproveitar suas oportunidades de participar nas inclusões, isso se lhe atribui individualmente.6

A sociedade e seus sistemas sociais estão vinculados a um direcionamento para a inclusão generalizada da população. Sob essa ótica, Luhmann ainda tem uma perspectiva normativa em relação à inclusão. No entanto, o fato de a lógica de exclusão contrariar a diferenciação funcional se torna um problema caso a “forma inclusão/exclusão venha a operar como uma espécie de metacódigo capaz de mediatizar todos os demais sistemas autopoiéticos da sociedade”. Caso isso acontecer, o primado da diferenciação funcional será definitivamente abalado (Bachur, 2012, P. 64; Luhmann, 2016, p. 787).

Os códigos dos sistemas sociais são válidos ao mesmo tempo que não os são. No mesmo sistema social global. Os meios de comunicação simbolicamente generalizados tornam mais provável a inclusão nos sistemas funcionais e o acesso às suas devidas prestações. Exemplo: possuir mais dinheiro (meio de comunicação simbolicamente generalizado) torna muito mais provável a aceitação da comunicação de “adquirir uma educação” ou “buscar direitos” (Luhmann, 2013, p. 38-39).

Luhmann afirma que com uma diferenciação primária da sociedade por inclusão e por exclusão – diferenciação realizada a partir das relações entre indivíduos – haveria efeitos reversos aos próprios sistemas funcionais de modo que eles não se reconheceriam capazes de satisfazer suas próprias demandas de inclusão, tendo, por conseguinte, a necessidade de se adequar a tal situação.

Assim sendo, como o próprio Luhmann indaga: “o que significaria, para o sistema educacional da sociedade, que a quota de analfabeto não diminui, mas aumenta por motivos que não podem ser controlados do ponto de vista escolar?”; ou, o que significaria, “para o sistema político, quando em cada vez mais regiões não se pode mais garantir a paz?” Dessa maneira, quando se atenta aos desenvolvimentos estruturais dos sistemas, não é possível ignorar os efeitos de uma rigidez e de um “preordenamento” da diferença entre inclusão e exclusão. Todas essas questões envolvendo a forma inclusão/exclusão requerem, ao menos, uma atenção importante por toda essa perplexidade (Luhmann, 2013, p. 39-40).

A forma inclusão/exclusão se articula em dois planos diferentes de construção conceitual: no plano lógico-operativo e no plano empírico. O primeiro é assim designado porque expressa as condições necessárias para o acoplamento estrutural entre os sistemas sociais e psíquicos como pressuposto de operações determinadas; já o segundo, o plano empírico, que destaca “os efeitos cumulativos decorrentes das discrepâncias de acesso aos sistemas funcionalmente diferenciados”, ou seja, essa cumulatividade da exclusão, representa os diferentes níveis de acesso efetivo à comunicação dos sistemas autopoiéticos (Bachur, 2012, p. 57). Logo, a forma inclusão/exclusão pretende expressar dois fenômenos em um só tempo.

No entanto, há uma dificuldade na forma inclusão/exclusão, de modo que a inclusão é condição operativa do funcionamento dos sistemas sociais e psíquicos (acoplamento estrutural). Os sistemas autopoiéticos da sociedade não podem observar nenhuma exclusão, pois ela se tornaria inclusão quando fosse observada. Nessa lógica, a exclusão acaba invalidada pelo acoplamento estrutural. Dessa forma, Bachur (2012, p. 64) completa que é a partir disso que reside a aporia constitutiva da forma inclusão/exclusão:

é preciso pressupor a exclusão como condição de possibilidade da inclusão, torná-la um problema empírico em função da cumulatividade de exclusões fáticas, para, retornando sub-repticiamente à concepção de inclusão como interpenetração, negar a possibilidade de uma exclusão efetiva (pois não há comunicação sem acoplamento estrutural com os sistemas psíquicos).

No plano logico-operativo, trata-se de uma relação entre indivíduo e a sociedade e, no plano empírico, uma relação entre indivíduo e indivíduo. Isso posto, os problemas distributivos não podem ser solucionados somente perante a forma pela qual sociedade e individuo se constituem reciprocamente. Dessa maneira, só existe inclusão em um sistema autopoiético, quando a exclusão for condição necessária para a inclusão.

2 O problema da desigualdade social em Luhmann

Após essa explicação mais teórica da forma inclusão/exclusão nos sistemas sociais, parte-se para a observação da desigualdade social e o problema em sua observação na teoria de Luhmann. A diferenciação funcional é direcionada pela inclusão e pelo desacoplamento entre as razões justificadoras da exclusão e as semânticas normativas (Luhmann, 2007, p. 498). Embora o primado da diferenciação funcional não elimine a estratificação, ele permite que a ordem social não seja vinculada a uma única estrutura de desigualdade social imutável.

Os sistemas sociais podem observar as estruturas de desigualdade como contingentes, mutáveis, sem que isso represente uma catástrofe para esses sistemas e para a sociedade. Dessa forma, “o que define a especificidade da sociedade moderna com relação à estratificação social não é o surgimento nem a decadência de nenhuma classe social específica, mas o fato de que qualquer estrutura de estratificação social pode ser observada como contingente” (Torres, 2014, p. 554). Por conta disso, a evolução constante da sociedade e o primado da diferenciação funcional, orientando-se a partir da inclusão de todos os indivíduos nos diferentes sistemas sociais, permite que seja observado o estatuto da desigualdade como um problema social e sociológico.

Luhmann insere a forma de inclusão/exclusão a fim de tentar captar as dinâmicas de acesso das comunicações funcionalmente diferenciadas dos sistemas sociais sem ter que recorrer às tradicionais estruturas de classe, “argumentando pela impossibilidade de que a inclusão em um determinado sistema autopoiético ou a exclusão dele implique, em termos causais, uma reação em cadeia” (Bachur, 2012, p. 56). Entretanto, o grande problema deixado por Luhmann com a criação da forma inclusão/exclusão, para apreender a desigualdade social, é que ela não se presta para estabelecer comparações interpessoais nos quadros de uma teoria geral da sociedade. Portanto, a teoria deveria suscitar algum mecanismo conceitual para comparar discrepâncias fáticas entre indivíduos e grupos de indivíduos.

O problema está na incapacidade de articular um plano lógico-operativo (sociedade-indivíduo) e um plano empírico (indivíduo-indivíduo), “constitutiva e paradoxalmente imbricados na forma inclusão/exclusão” (Bachur, 2012, p. 55-58). À vista disso, a separação entre esses dois planos é a razão pela qual a forma inclusão/exclusão, desenvolvida para observar a desigualdade social, perde seu objeto. Bachur (2012, p. 58) completa que “seu uso para a descrição da desigualdade social exigiria que ela estabelecesse alguma forma de comparação interpessoal e, no entanto, ela se limita à descrição do padrão das relações entre indivíduo e sociedade.”

Nesse sentido, com a exclusão sendo altamente integrada, de maneira que existe a cumulatividade de exclusões de forma muito mais estrutural que a inclusão – que é contingente – ocorre o comprometimento do primado da diferenciação funcional. Esse é o maior desafio para a teoria dos sistemas: lidar com questões de desigualdade social, porque a estruturação de exclusões prejudica a principal tese de Luhmann, o primado da diferenciação funcional como forma de reprodução da sociedade moderna. Dessa forma, percebe-se a resistência de Luhmann em tomar como ponto de partida a existência do plano empírico da desigualdade para o desenvolvimento de uma teoria da sociedade. Isso prejudica a capacidade de explicar as formas por meio das quais a sociedade moderna sustenta e reproduz as desigualdades (Dantas, 2016, p. 105).

Assim sendo, a ideia principal do primado da diferenciação funcional é que as exclusões dos subsistemas sociais não poderiam condicionar acesso a outros subsistemas, ela deveria ser contingente e não estrutural. Na perspectiva luhmanniana a inclusão deveria direcionar a diferenciação funcional. Nessa esteira, para buscar a efetividade dessa hipótese, Luhmann somente pensou na lógica-operativa, limitando a relação do padrão das relações entre indivíduo e sociedade, sem considerar que a sociedade está condicionada a uma multiplicação de exclusões, sempre conectadas entre si. A “força gravitacional” que está em volta da exclusão é tão forte que, na maioria das vezes, não é possível dela escapar.

Teoricamente, o primado da diferenciação funcional não permitiria que a exclusão de um subsistema resultasse na exclusão ou na cumulatividade de exclusões, ou seja, a impossibilidade de acesso às prestações dos outros sistemas. Porém, isso não é o que acontece de fato. A acumulação de exclusões, de forma bastante estável, sempre ocorre em determinado grupo de indivíduos, havendo um efeito dominó de negações ao acesso às prestações dos outros subsistemas sociais. Logo, a diferenciação funcional como forma primária de diferenciação do sistema sociedade é frequentemente interpretada como se ela implicasse a impossibilidade de um conceito de desigualdade social estruturada (Torres, 2014, p. 547).

3 A modernidade periférica de Neves

Em consonância com a argumentação desenvolvida até aqui, nesse tópico, será trabalhado como Neves observou que, em determinadas regiões do mundo, a exclusão é um problema muito mais agudo. Por conseguinte, Neves problematiza frontalmente o primado da diferenciação funcional, sustentando que não é possível mantê-lo não apenas em regiões periféricas como a América Latina, mas também na sociedade mundial. Nesse sentido, os chamados países periféricos não apresentam uma completa diferenciação funcional como os países centrais. Neves faz essa diferenciação de modernidade central e modernidade periférica (Neves, 2018) para explicar que não houve a realização adequada da autonomia sistêmica desse último conforme o primado da diferenciação funcional, tampouco a preferência predominantemente pela inclusão generalizada da população nos diversos sistemas funcionais da sociedade (mundial), que supostamente são traços que caracterizam outras regiões estatalmente organizadas (Neves, 2015, p. 114).

Esses problemas na modernidade periférica promovem fatores negativos na formação do Estado democrático de direito, relacionando-se com os limites da autorreferência dos sistemas político e jurídico. A situação se complica e torna-se grave quando há problemas de heterorreferência do Estado em uma sociedade mundial supercomplexa e, de forma simultânea, persistem os bloqueios generalizados à reprodução autônoma dos sistemas jurídico e político. Desse modo, a perspectiva de inclusão social e integração sistêmica é minada pelas relações entre esferas funcionais de comunicações com formas autodestrutivas e heterodestrutivas (Neves, 2015 p. 120-121). Além de que a partir do ambiente social “os sistemas jurídico e político são bloqueados generalizadamente na sua autoprodução consistente por injuções heterônomas de outros códigos e critérios sistêmicos”, ou seja, há a corrupção sistêmica generalizada dos sistemas sociais.

Na modernidade periférica não se trata simplesmente de uma corrupção sistêmica como em países centrais, mas de tendências à generalização, afetando até mesmo o primado da diferenciação funcional. Nesse contexto, Neves nega o primado da diferenciação funcional em regiões periféricas, afirmando que o primado constitui uma exigência da sociedade mundial que é irradiada da modernidade central. “A tese do primado reduz-se a uma concepção eurocêntrica – ou válida apenas para os chamados ‘países desenvolvidos’ – da sociedade mundial “(Neves, 2022a, p. 77).

Essa conclusão é suportada pelo conceito criado por Neves de alopoiese, que desenvolveu ao analisar o sistema jurídico do Brasil. Isso ocorre quando um sistema é determinado por injuções diretas do mundo exterior, ou seja, o sistema é determinado diretamente por outro(s), sendo incapaz de uma autoprodução. Isso significa a sobreposição de outros códigos de comunicação sobre o código correto, em detrimento da eficiência, funcionalidade e racionalidade do sistema funcional. Além disso, Neves coloca que a alopoiese afeta a autorreferência de base, a reflexividade e a reflexão como momentos constitutivos da reprodução operacionalmente fechada do sistema, atingindo também a heterorreferência, ou seja, a função e as prestações daquele sistema (Neves, 1992; 2009, p. 44-45; 2011, p. 140-148; 2015, p. 121).

Esses sistemas alopoiéticos não apenas pressupõem uma profunda desigualdade social, também acentuam as discrepâncias entre incluídos e excluídos. O acesso aos sistemas funcionais não é apenas baseado em uma profunda exclusão, mas principalmente no acesso privilegiado daqueles capazes de acumular os recursos comunicativos. Portanto, Neves aponta como sendo a causa da alopoiese periférica a desigualdade social estruturada, ou seja, as constantes relações reproduzidas de inclusão e exclusão generalizadas que são parte da estrutura social. Nesse sentido, a ocorrência da alopoise significa que não estão definidas as fronteiras dos sistemas, por exemplo, no sistema jurídico, de uma esfera de juridicidade e, portanto, não há espaço para a autoprodução circular do direito. Neves (2015, p. 121-122) completa ao dizer que

a hipertrofia imperial do código econômico “ter/não ter” fortifica o extremo abismo de rendimentos e promove tanto privilégios quanto “exclusões” contrárias ao direito, que impedem a autoprodução sistemicamente consistente do direito. Por sua vez, formas difusas de poder privado e redes de nepotismo sobrepõem-se ao código jurídico, corrompendo o direito e, assim, heteronomizando-lhe a reprodução operativa. Correspondentemente, a legalidade como generalização de conteúdos normativo-jurídicos é deformada no processo de concretização do direito.

Além disso, Neves (2015, p. 122) ainda diz que os procedimentos predominantemente jurídicos do Estado democrático de direito, como o jurisdicional e o administrativo de execução da lei, sobretudo o policial, são invadidos por critérios fora do sistema jurídico que comprometem os casos jurídicos somente de acordo com os critérios generalizados de legalidade e constitucionalidade. Por conseguinte, observa-se a quebra do fechamento operativo do sistema jurídico por forças de outras esferas de comunicação.

Nessa lógica, ainda há a problematização da emissão de textos constitucionais legais, no sentido da construção de um Estado democrático de direito, que não resultam nos países periféricos “em uma concretização normativa generalizada e relevante dentro dos parâmetros textuais”. A concretização das normas jurídicas é violada por códigos dos mais diversos. Sendo assim, “os textos constitucionais e legais são degradados semanticamente por injunções particularistas e bloqueios de outros critérios sistêmicos, não se desenvolvendo no decorrer do processo concretizador suficiente força normativa nos termos textuais” (Neves, 2015, p. 122). Portanto, o problema central não é a produção de mais ou menos textos legais, mas sim a sua efetividade pelo sistema jurídico e por suas próprias operações e programações.

Desse modo, o desenvolvimento da complexidade da sociedade não foi seguido pelos sistemas funcionais dos países periféricos. Isso pôs a América Latina e, por conseguinte, o Brasil, perante uma complexidade desestruturada e desestruturante. Portanto, ocorre uma incapacidade dos sistemas sociais de estruturar a complexidade, de modo que fracassam os subsistemas sociais na função seletiva em face do supercomplexo ambiente, no contexto social dos países latino-americanos, ocasionando uma deficiência de “racionalidade sistêmica na diferenciação” (Neves, 2022a, p. 69-70). Em consequência, em virtude da incompleta ou até mesmo ausência da diferenciação funcional nos países periféricos, ocorre um grave problema quanto à exclusão de pessoas.

A generalização da exclusão nos países periféricos e a profunda desigualdade levam a sociedade a se reproduzir de modo diferente, intitulada por Neves de relações de “subinclusão” e “sobreinclusão” generalizadas em relação aos seus sistemas sociais (Neves, 2011, p. 172-173; 2012, p. 248-251; 2015, p. 124-125)

4 Os subincluídos do sistema jurídico no estado brasileiro

A partir desse tópico, será abordado o problema principal do trabalho. Neves traz a ideia de que um dos obstáculos que mais dificultam a realização de um Estado democrático de direito na modernidade periférica é a generalização de relações de subincluídos e sobreincluídos. Ou seja, nos países periféricos, há uma predominância da exclusão sobre a inclusão. Nessa perspectiva, há o problema da falta da inclusão generalizada no sistema jurídico, no sentido da ausência de direitos e deveres partilhados reciprocamente. “Isso significa a inexistência de cidadania como mecanismo de inclusão político-jurídica da população na sociedade” (Neves, 2012, p. 248; 2015, p. 124).

Nesse ponto, Neves apresenta os dois conceitos acima citados. Do lado dos subincluidos, generalizam-se situações em que as pessoas, os “subcidadãos”, não têm acesso aos benefícios do ordenamento jurídico estatal, mas dependem de suas prescrições impositivas. Eles são dependentes dos critérios do sistema, mas sem o acesso devido às suas prestações (Neves, 2011, p. 173). Dessa forma, observa-se que não estão completamente excluídos do sistema. No entanto, além de faltarem as condições reais de exercer os direitos fundamentais que estão declarados na Constituição, não estão liberados dos deveres e responsabilidades impostos pelo poder de coerção do Estado, sendo submetidos radicalmente às suas estruturas punitivas. Para esses subcidadãos, os dispositivos constitucionais e legais somente têm relevância e funcionalidade nos efeitos de restrição de liberdade (Neves, 2012, p. 248; 2015, p. 124; Neves, 2022b, p. 16-17). Em resumo, para o sistema jurídico, os subincluídos não têm condições de gozar de seus direitos e prerrogativas declaradas de forma constitucional, ocorrendo de forma sistemática e cotidianamente o desrespeito de seus direitos pelo próprio poder estatal.

Aqueles que pertencem às camadas sociais consideradas marginalizadas são incluídos no sistema jurídico, em regra, como devedores, réus, condenados, entre outros, e não como credores, autores, detentores de direitos. Nesse caso, as ofensas aos direitos fundamentais dos membros das camadas socialmente subalternas são praticadas principalmente pelas atividades de repressão do Estado, ou seja, das ações violentas ilegais da polícia (Neves, 2012, p. 249-250; 2015, p. 124-125; Neves, 2022b, p. 16-17). Logo, os subincluídos são aqueles aos quais o ordenamento jurídico constitucional e legal apresenta somente deveres e restrições, de modo que não há o respeito aos direitos fundamentais nem o devido acesso aos tribunais (Ribeiro; Ribeiro, 2016, p. 125).

A subinclusão das massas é inseparável da sobreinclusão dos grupos privilegiados, que, com o apoio da burocracia estatal, desenvolvem ações bloqueadoras da reprodução do direito. Os sobreincluídos são, a princípio, titulares de direitos, competências, poderes e prerrogativas, “mas não se subordinam regularmente à atividade punitiva do Estado no que se refere aos deveres e responsabilidades” (Neves, 2012, p. 250). Sua postura perante a ordem jurídica estatal é meramente instrumental, na medida que utilizam de suas prerrogativas e privilégios para driblar o sistema através de burocracias em busca de seus próprios interesses. Nesse contexto, Neves afirma que “o direito não se apresenta como horizonte do agir e vivenciar político-jurídico dos sobreincluídos, mas antes como um meio de consecução de seus objetivos econômicos, políticos e relacionais.” (Neves, 2012, p. 250; 2015, p. 125). Assim sendo, eles desusam, abusam do direito, tendo como a garantia da impunidade um dos traços mais marcantes da sobreinclusão. Por conta disso, o termo exclusão não é o ideal para explicar a complexidade de uma modernidade periférica, pois não apenas o subincluído estaria excluído, mas também o sobreincluído: este estaria acima do direito, aquele, abaixo (Neves, 2012, p. 250; 2015, p. 125).

A generalização de relações de subinclusão e sobreinclusão afeta o primado da diferenciação funcional defendido por Luhmann. Essa situação tem efeitos de desdiferenciação funcional, de maneira que o sistema se torna alopoiético, porque, de fato, “a diferenciação funcional e a autorreferência sistêmica implicam a inclusão generalizada da população nos diversos subsistemas da sociedade” (Neves, 2015, p. 126). Dessa forma, Neves critica veementemente o primado da diferenciação funcional na modernidade periférica, afirmando que não ocorre a inclusão de toda a população nos diversos sistemas funcionais como pressupõe a diferenciação funcional. Em resposta a essas críticas, Luhmann (2007, p. 501) reviu o seu posicionamento com respeito à diferença inclusão/exclusão, afirmando que ela funciona como uma metadiferença ou metacódigo que mediatiza todos os códigos dos sistemas funcionais. Contudo, caso seja assim a nova metadiferença, não se pode continuar com o primado da diferenciação funcional, em que a diferença sistema/ambiente é “intrassocietariamente” a principal. Quando é posta a inclusão/exclusão como um metacódigo que mediatiza todos os outros códigos, impõe-se admitir que a sociedade mundial é diferenciada primariamente por essa metadiferença (Luhmann, 2013, p. 39; Neves, 2012, p. 252; 2015, p. 126).

Entretanto, se for insistido na noção de metacódigo inclusão/exclusão, deve-se considerar que a distribuição das zonas de inclusão e exclusão variam imensamente. Como Bachur (2012, p. 73) nomeou, Neves traz uma “regionalização de exclusão”. Isso significa que em contextos comunicativos dos Estados democráticos de direito da modernidade periférica prevalecem as zonas de exclusão sobre as de inclusão na medida que se pode falar de uma preferência predominante por exclusão da prática jurídica e política do Estado, diferentemente dos contextos de comunicação dos Estados da modernidade central, em que é absolutamente o contrário (Neves, 2015, p. 126-127).

No cenário atual da sociedade mundial, e principalmente em uma modernidade periférica, ninguém é absolutamente subincluído ou sobreincluído. Pode haver ocasiões em que os papéis são invertidos, mas há indivíduos ou partes da população que regularmente são postos em um dos polos das relações de subinclusão e sobreinclusão. Como a subinclusão consiste numa forma extrema de inclusão na exclusão – como não é possível alguém ser completamente excluído de um sistema –, as pessoas estão excluídas dos acessos às prerrogativas dos subsistemas sociais. Como por exemplo, no âmbito do direito, elas não dispõem de acesso aos seus direitos, mas são incluídas e subordinadas rigorosamente aos deveres, às responsabilidades e às penas restritivas de liberdade (Neves, 2015, p. 127; Ribeiro; Ribeiro, 2016, p. 128).

Devido à limitação absoluta de acesso aos direitos fundamentais e ao sistema jurídico, as pessoas que estão em situação de subinclusão buscam por possibilidades de acessar os sistemas funcionais e suas prestações. Nesse sentido, as vias não institucionais de inclusão, como a criminalidade, são uma possibilidade para gerar o acesso aos subsistemas funcionais. Por conseguinte, os subcidadãos buscam formas alternativas aos mecanismos de inclusão institucionalizados. Nesse contexto, os países periféricos devem lidar com o problema do acesso à proteção dos direitos fundamentais da população subincluída (Ribeiro; Ribeiro, 2016, p. 128). Dessa maneira, parte-se para o argumento principal do artigo: a população pobre e periférica brasileira é a parte da população que é posta sempre do lado dos subincluídos, sempre abaixo do direito.

Consequentemente, no próximo tópico, serão analisadas, a partir de uma observação sistêmico-criminológica, a subinclusão desses subcidadãos e as faltas de condições reais para exercerem os direitos fundamentais constitucionalmente declarados, de forma que há a constante prática repressiva do aparelho estatal com efeitos da restrição de suas liberdades.

5 Breve análise sistêmico-criminológica da população carcerária

Nesse tópico, tem-se por objetivo fazer uma breve análise de dados para constatar como um grande contingente da população carcerária faz parte dos subcidadãos, sem acesso aos benefícios do ordenamento jurídico estatal, mas dependem de suas prescrições impositivas. Os subincluídos não estão completamente excluídos do sistema jurídico, mas faltam-lhes as condições reais de exercerem os seus direitos fundamentais constitucionalmente declarados. Dessa forma, as prescrições constitucionais têm relevância quase que exclusivamente na restrição de sua liberdade.

Isso é demonstrado quando se observa que dos mais de 800 mil presos no Estado brasileiro, 559.683 é o número de pessoas que não completaram o ensino médio, dados do segundo semestre de 2022 (SISDEPEN, jul-dez 2022). Muito mais da metade. A partir disso, verifica-se uma cumulação de exclusões no sistema sociedade brasileiro. Observa-se, com isso, que a população sem instrução educacional é, na maioria das vezes, marginalizada e vem das camadas sociais mais baixas, os chamados subcidadãos ou subincluídos. Dessa forma, mesmo não estando completamente excluídos não estão liberados dos deveres e responsabilidades impostos pelo aparelho coercitivo estatal, ocasionando as prisões em massa da população marginalizada. Isso fica mais evidente quando se constata que somente 5.380 dos presos têm ensino superior completo e apenas 317 deles possuem ensino acima do superior completo (SISDEPEN, jul-dez 2022). Na prática, grupos privilegiados, que têm uma instrução maior, possibilitam, com o apoio da burocracia estatal, desenvolver ações bloqueantes da reprodução do direito, não se subordinando regularmente à atividade punitiva do Estado no que se refere aos deveres e responsabilidades. A cumulatividade de exclusões é observada de forma empírica e bastaste estável, havendo um efeito dominó de negações ao acesso às prestações dos outros subsistemas sociais.

Entretanto, é no campo jurídico que o problema da subinclusão toma um significado especial. Os membros das camadas socialmente subalternas têm seus direitos fundamentais ofendidos principalmente nos quadros da atividade repressiva do aparelho estatal, ou seja, as ações violentas da polícia. Constata-se essa realidade por meio do dado demonstrado pelo Anuário Brasileiro de 2022, onde está descrito que 84,1% de todas as vítimas de intervenções polícias com resultado de morte no Brasil, no ano de 2021, são negros (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022). Dessa forma, percebe-se a exatidão de Neves ao dizer que aos subcidadãos, mesmo que não excluídos inteiramente, faltam-lhes as condições reais de exercerem os seus direitos fundamentais constitucionalmente declarados, sendo somente incluídos quando há a coerção estatal ou a restrição de liberdade, como foi visto acima. Além disso, a população de negros e pardos em prisões brasileiras abrange um total de 442.033, ou seja, 53% da população carcerária (SISDEPEN, jul-dez 2022).

Assim sendo, aqueles com possibilidade de acumularem recursos comunicativos têm acesso privilegiado aos sistemas funcionais. Quando alguém está incluído no sistema da economia de forma institucional, facilita-se a ele estar integrado no sistema da educação, que também possibilita a integração no sistema jurídico. Claramente, como já abordado, a inclusão é contingencial, mas quando se é um sobreincluído em um país periférico há a possibilidade do uso instrumental do direito utilizando outros códigos que sobrepõem o código jurídico. Ademais, a hipertrofia imperial do código econômico promove privilégios, impedindo a autoprodução sistemicamente dos distintos sistemas sociais.

A estruturação da exclusão possibilita uma cumulatividade fática de exclusões, formulando camadas sociais, o que afeta o primado da diferenciação funcional. Além do mais, na modernidade periférica brasileira, ao se utilizar o metacódigo trabalhado por Luhmann de inclusão/exclusão, nota-se que todo o contexto social em que se encontra a população carcerária se converte em entraves na possibilidade de realização do direito à cidadania e efetivação dos direitos fundamentais. Por conseguinte, a cumulação de exclusões nos subcidadãos faz com que ocorra essa situação: definitiva exclusão da sociedade e de seus subsistemas.

Nessa conjuntura sistêmica, “o metacódigo inclusão/exclusão se configura a partir de uma superestrutura, da mesma forma que se estrutura como uma inclusão excludente” (Gimenez; Dutra, 2021, p. 2021), porque a população é encarcerada é sucumbida a processos de exclusão, sem o devido acesso à inclusão na sociedade mundial. Dessa forma, paradoxalmente, esses indivíduos subincluídos somente são considerados incluídos a partir do processo de exclusão do Estado. Com a utilização de um metacódigo de inclusão/exclusão, na realidade da modernidade periférica brasileira, é possível mediatizar todos os outros códigos. Se não bastasse, o metacódigo impede, ainda, o acesso pleno dos subcidadão aos sistemas sociais da sociedade mundial, a maior dificuldade de explicar com o primado da diferenciação funcional.

Considerações finais

O cenário atual da modernidade periférica se dá pela constante autorreprodução de exclusões/inclusões realizadas pelos subsistemas sociais. Destarte, a existência humana como experiência de análise empírica permite estabelecer que nas sociedades periféricas de complexidade desorganizadas, as patologias sociais revelam uma gama de entraves à realização do direito à cidadania enquanto dimensão da (in)efetivação dos direitos humanos e fundamentais.

Dessa maneira, foi construído no decorrer deste trabalho um direcionamento para entender melhor como ocorreu a evolução do pensamento sistêmico em relação à forma inclusão/exclusão. A partir de Luhmann até Neves, ambos referenciais teóricos foram utilizados para construir a metodologia da evolução do pensamento sistêmico em relação a inclusão/exclusão, partindo do primado da diferenciação funcional, direcionado a partir da inclusão, até o problema da falta da inclusão generalizada nos países periféricos.

Por via de consequência, o primado da diferenciação funcional encontra problemas na modernidade periférica. Neves reelabora a diferenciação de modernidade central e periférica com o objetivo de demonstrar que não se pode ter o mesmo pensamento em uma sociedade complexa organizada em sociedade desorganizada. Logo, a sociedade periférica não faz uma realização adequada da autonomia sistêmica conforme o primado da diferenciação funcional, tampouco a inclusão generalizada da população nos subsistemas sociais.

A consequência da incompleta ou até mesmo ausência da diferenciação funcional nos países periféricos ocasiona um grave problema de generalização da exclusão de pessoas. Desse modo, essa generalização da exclusão e a profunda desigualdade levam a sociedade a reproduzir-se de modo diferente, as relações chamadas de “subinclusão” e “sobreinclusão”.

Por meio de toda essa construção, parte-se para a conclusão da problematização feita no início, se a cumulatividade de exclusões da população periférica resulta na “marginalidade” e, portanto, na dependência das prestações dos diferentes sistemas funcionais da sociedade, sem o acesso direto a elas (prestações). Em outras palavras, se os subcidadão estão muito mais expostos ao poder punitivo do Estado e suas violências. A resposta é sim. Observa-se a exatidão de Neves ao chamar os excluídos da sociedade periférica de subcidadãos, pois lhes faltam as condições reais de exercerem os seus direitos fundamentais constitucionalmente declarados, sendo somente incluídos quando há a coerção estatal ou a restrição de liberdades, como foi demonstrado com os dados da população carcerária. De modo que os subincluídos estão muito mais presentes nos presídios brasileiros que grupos privilegiados de sobreincluídos. A estruturação da exclusão possibilita uma cumulatividade fática de exclusões, formulando camadas sociais, o que afeta o primado da diferenciação funcional. Dessa forma, a partir do metacódigo inclusão/exclusão na modernidade periférica brasileira, mediatizando todos os outros códigos, pode-se observar a exclusão cumulativa das prestações dos sistemas funcionais da sociedade.

Diante disso e ao final, há uma perpetuidade do bloqueio da perfectibilização do Estado democrático de direito na modernidade periférica, em que se encontra a sociedade brasileira, pois as populações subalterna e da periferia são corrompidas por vínculos de subinclusão e de sobreinclusão. Logo, a população presa está dependente das prestações dos diferentes subsistemas funcionais da sociedade, mas sem um acesso positivo a esses sistemas. Ou seja, os “marginalizados” são afetados pelos sistemas apenas de forma negativa, dependentes somente de suas prescrições impositivas.

Referências

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  1. 1 Doutorando pela Universidade La Salle, bolsista CAPES/PROSUP; Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Unirriter; Pós-graduado em direito internacional aplicado pela Universidade São Judas Tadeu. https://orcid.org/0000-0002-1287-7390. lucas_lanner@hotmail.com.

  1. 2 Doutora em Direito; Coordenadora e Professora do Programa em Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da Universidade La Salle. https://orcid.org/0000-0001-9744-4668. renata.costa@unilasalle.edu.br.

  1. 3 CEO da Fundação Universidade Caxias do Sul; Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da Universidade La Salle. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Nível 2). https://orcid.org/0000-0002-1354-8839. germano.schwartz@me.com.

  1. 4 Marginalidade aqui entendida, sob uma perspectiva sistêmica-teórica, como subinclusão social difusa e muito instável de grande parte da população nos diferentes sistemas funcionais, que se intensifica com a modernização periférica (NEVES, 2018, p. 109).

  1. 5 No original: “Una sociedad funcionalmente diferenciada es capaz de producir y tolerar desigualdades extremas en la distribución de los bienes, tanto privados como públicos. Pero la semántica de este tipo de sociedad pone a dicho efecto dos restricciones: por un lado, es visto como algo sólo temporal y susceptible de modificarse rápidamente; por otro, se considera un fenómeno limitado a los concretos ámbitos funcionales, entre los cuales se interponen discontinuidades a la interdependencia.”

  1. 6 No original: “En principio cada cual debe ser sujeto de derecho y disponer de ingresos suficientes para poder participar en la economía. Cada cual participando en las elecciones políticas debe poder reaccionar a sus experiencias con la política. Cada cual —hasta donde dé— debe cursar al menos los grados elementales en las escuelas. Cada cual tiene el derecho a un mínimo de beneficios sociales, al servicio de salud, a una sepultura legal. Cada cual puede casarse sin necesidad de autorizaciones. Cada cual puede elegir una confesión religiosa - o renunciar a ella. Y si alguien no aprovecha sus oportunidades de participar en las inclusiones, esto se le atribuye individualmente.”