https://doi.org/10.18593/ejjl.32546
O JUDICIÁRIO ROMPENDO SILENCIAMENTOS: PARTICIPAÇÃO SOCIAL EXAMINADA A PARTIR DE PRÁTICA JUDICIAL NA DEMANDA POR VAGAS DE CRECHE
THE JUDICIARY POWER BREAKING SILENCES: SOCIAL PARTICIPATION EXAMINED FROM JUDICIAL PRACTICE IN THE DEMAND FOR NURSERY SCHOOL VACANCIES
André Augusto Salvador Bezerra1
Resumo: O artigo tem por objetivo apontar a relevância democrática de práticas judiciais que fomentam a participação social no processo de tomada de decisões políticas. Para isso, baseia-se na prática levada a efeito pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em demanda em que se discutia o oferecimento de vagas de creche pelo Poder Executivo paulistano. Na ocasião, a corte compeliu a prefeitura a abrir-se ao diálogo com estratos populacionais interessados e vulnerabilizados, então representados por entes da sociedade civil. Metodologicamente, o texto combina pesquisa bibliográfica fundada na concepção teórica de democracia participativa com trabalho exploratório sobre a citada prática judicial do tribunal paulista. Com a análise realizada, conseguiu-se salientar que a judicialização das questões políticas não necessariamente enfraquece os debates públicos e nem as atribuições dos poderes estatais representados por eleitos pelo povo. Pelo contrário, o fenômeno pode levar ao fortalecimento democrático quando magistrados, chamados para efetivar direitos violados, instam o Estado a ouvir a sociedade civil na tomada de decisões políticas, sobretudo entes que representam as parcelas historicamente mais vulneráveis da população.
Palavras-chave: Poder Judiciário; prática judicial; democracia; participação social; direito à creche.
Abstract: The article aims to point out the democratic relevance of judicial practices that promote social participation in the political decision-making process. To this end, it is based on the practice carried out by the Court of Justice of São Paulo, in a demand that discussed the offer of nursery school vacancies by the São Paulo Executive Branch. At that circunstance, the court compelled the municipal government to open itself to dialogue with interested and vulnerable population strata, then represented by civil society entities. Methodologically, the text combines bibliographic research based on the theoretical conception of participatory democracy with exploratory work on the judicial practice of the São Paulo court. With the analysis, it was achieved to highlight that the judicialization of political issues does not necessarily weaken public debates or the attributions of state powers represented by elected by the people. On the contrary, the phenomenon can lead to democratic strengthening when magistrates, called to effect violated rights, urge the State to listen to civil society in political decision-making, especially those entities that represent the historically silenced portions of the population.
Keywords: Judiciary Power; judicial practice; democracy; social participation; right to nursery school.
Recebido em 10 de fevereiro de 2023
Avaliado em 24 de fevereiro de 2023 (AVALIADOR A)
Avaliado em 09 de abril de 2023 (AVALIADOR B)
Aceito em 10 de abril de 2023
Introdução
A centralidade do Poder Judiciário nas dinâmicas institucionais brasileira não é evidenciada apenas pelo julgamento de mais de 26 milhões de processos em um único ano, conforme dados publicados no Relatório Justiça em Números (CNJ, 2022). O protagonismo é também manifestado pelas noticiadas apreciações judiciais de casos de notável relevância coletiva, cujas conclusões tensionam as relações com o Executivo e Legislativo, proporcionando formato ao fenômeno da judicialização das questões políticas: o ingresso do Judiciário em matérias que, em princípio, deveriam ser de atuação dos demais poderes, assim se fazendo em nome do controle de juridicidade sobre todos os atos estatais.
Por questões políticas, entende-se tanto aquelas relativas a políticas públicas quanto às questões ligadas à política em sentido lato. Isso significa, respectivamente, em primeiro lugar, os programas governamentais que deveriam ser de atribuição primordial do Poder Executivo (por exemplo, abertura de vagas de creches ou fornecimento de medicamentos gratuitos) e, em segundo lugar, as mais amplas lutas de grupos para o exercício da influência sobre os poderes Legislativo e o Executivo (casos como nomeação de agentes de confiança ou de elaboração de normas jurídicas) (BUCCI, 2006).
Levando em conta que uma democracia requer a participação social nas decisões fundamentais de cada país, ao menos em períodos eleitorais, o quadro exposto tem levado a academia a problematizar o ingresso do ramo judicial do Estado, comumente visto como técnico, em questões que deveriam ser objeto de atividade de poderes estatais abertos eleitoralmente à atuação de cidadãos. Haveria, sob tal situação, legitimidade na judicialização das questões políticas?
A despeito da pertinência do questionamento, a realidade vivida impõe o avanço no tema para se considerar uma circunstância fundamental, nem sempre levada em conta para a compreensão do fenômeno corrente: somente existe o ingresso judicial em questões políticas porque parcela da sociedade assim invoca. O Judiciário é inerte, juízes limitam-se a responder pedidos formulados por cidadãos, entidades da sociedade civil, organizações políticas e instituições do próprio Sistema de Justiça (Ministério Público e Defensoria Pública) para que assegurem ou efetivem direitos vigentes no ordenamento jurídico brasileiro.
Se a democracia, em sentido etimológico, é o governo do povo, titular da soberania (art. 1º, § 1º da Constituição), torna-se mais árduo negar legitimidade a um fenômeno que tem iniciativa no próprio povo. Não parece democraticamente razoável, a quem estuda o tema, desconsiderar as estratégias da luta pelos direitos por parte de quem sente na pele as violações, ainda mais em um país como o Brasil, um dos dez mais desiguais do mundo (IBGE, 2020), cujas persistentes discriminações vulnerabilizam mais intensamente os mesmos setores sociais explorados pelos primeiros colonizadores europeus (QUIJANO, 2005), como indígenas e negros (os pretos e pardos), principalmente as mulheres2.
Por outro lado, também não se mostra democraticamente razoável desconsiderar a relevância de atuações independentes dos poderes compostos por eleitos pelo povo, o Legislativo e o Executivo: a generalizada substituição judicial da vontade de representantes de ambos os lócus estatais pode representar o suprimento da vontade eleitoral cidadã. Da mesma forma, não se pode deixar de considerar como preocupante o fato de a judicialização poder retirar temas socialmente relevantes dos debates públicos, inclusive aqueles de interesse dos vulnerabilizados, para inseri-los exclusivamente às salas fechadas dos fóruns e tribunais.
A complexidade da situação descrita inspirou a formulação de estudo realista. Ao invés de se realizar crítica ou defesa à judicialização, entendeu-se que seria cientificamente relevante levar em conta a realidade do fenômeno vivido para, pragmaticamente, refletir-se como este pode fortalecer democraticamente o sistema político, mas sem fragilizar as discussões públicas e nem atuações dos poderes formados por representantes eleitos. Como, porém, democratizar diante da descrita potencialidade de restrição de debates e de ingresso em assuntos de lócus estatais formados por eleitos pelo povo?
A experiência no cotidiano forense mostra que a resposta a tal questionamento pode ocorrer mediante a indicação de práticas de magistrados que qualificam, pela imposição de formalidades dialogicamente democráticas, processos decisórios dos demais poderes, sem retirar o protagonismo destes. É o que aconteceu, por exemplo, na prática levada a efeito pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), em demanda em que se discutia o oferecimento de vagas de creche pelo Poder Público paulistano, ocasião em que a corte compeliu a prefeitura a abrir-se ao diálogo (atribuindo possibilidades de fala e escuta) aos estratos populacionais interessados e vulnerabilizados, devidamente representados por entes da sociedade civil (SÃO PAULO, 2013).
Da descrição da problemática vivida, alcança-se o objetivo do artigo. Com base na mencionada iniciativa do TJSP, pretende-se apontar a relevância democrática de práticas jurisdicionais que fomentam a participação social no processo de tomada de decisões políticas, via atribuição de possibilidades de fala e escuta em favor de setores populacionais secularmente vulnerabilizados.
Em tais termos, o trabalho é guiado pela seguinte pergunta de partida: é possível que práticas realizadas por membros da magistratura, no âmbito da judicialização das questões políticas, fomentem a participação cidadã de modo a fortalecer a democracia? Para responder tal questionamento, aponta-se a hipótese no sentido de que o sistema democrático pode ser fortalecido quando magistrados, no exercício da jurisdição, chamam ou compelem o Estado a ouvir a sociedade civil na tomada de decisões políticas, sobretudo entes que representam as parcelas mais vulneráveis da população.
À primeira vista, as pretensões apresentadas não configuram novidade. A defesa de modelos de atuação mais participativas do Judiciário tem recebido, há algum tempo, a atenção científica (ANGÉLICO; CRAVEIRO; MACHADO; MARTINS, 2018). Todavia, os estudos realizados privilegiam, normalmente, análises sobre medidas implementáveis administrativamente por órgãos de direção do Judiciário, tais, como aperfeiçoamento nos mecanismos sociais de controle e prestação de contas ou ainda maior transparência na divulgação de dados internos.
O presente estudo, diferentemente, inova ao focar práticas implementáveis por magistrados no próprio exercício da jurisdição, ou seja, no âmbito dos processos que presidem, independente das políticas judiciárias priorizadas pelos tribunais a que se encontram vinculados. Prática participativa é expressão aqui utilizada, portanto, para além de medidas administrativas dos órgãos judiciais.
Neste ponto, o texto aproxima-se de trabalho anterior que sublinhou a participação social no Poder Judiciário, cuidando também da demanda pelas vagas de creches que tramitou no TJSP (RIZZI; XIMENES, 2014). Trata-se de relato de pesquisa formulado por profissionais do campo jurídico que atuaram diretamente na causa, tendo-se focado potencialidades da chamada litigância estratégica pela advocacia, assim se realizando com base em fatos primordialmente ocorridos até o julgamento do mérito da causa pelo tribunal.
O foco aqui escolhido, porém, é diverso. No presente trabalho, procura-se promover um diálogo entre os campos político e jurídico para, a partir de práticas prevalentemente realizadas pelo TJSP em momento posterior ao julgamento do mérito da citada demanda, refletir como o fenômeno da judicialização das questões políticas pode fortalecer o sistema democrático como um todo, proporcionando oportunidades de fala e escuta a setores que, ao longo dos séculos, são silenciados pelo Poder Público.
Repare-se que participação social é expressão ora relacionada ao termo diálogo. Práticas participativas são, portanto, aquelas que possibilitam, à toda população, falar e ser escutada perante o Estado, rompendo-se silenciamentos impostos a camadas da sociedade cujas reivindicações são desconsideradas ao longo dos anos.
Há, em tal aspecto, uma coincidência com a defesa teórica promovida por corrente constitucionalista latino-americana contemporânea pela implementação da chamada justiça dialógica (GARGARELLA, 2014), isto é, um Judiciário que, no exercício do controle de constitucionalidade, colabore com a atuação do Executivo e do Legislativo. Mais do que o diálogo entre os poderes estatais, contudo, este estudo, focaliza, primordialmente, interações do Estado com a sociedade, ainda que assim o faça obrigando (isto é, independente do diálogo) setores do Executivo ou Legislativo a escutar, igualitariamente, toda a população envolvida em políticas oficiais.
Para alcançar todo o objetivado, o artigo é dividido em cinco seções, excluindo esta introdutória. Na primeira seção, são realizadas observações metodológicas sobre o trabalho realizado. Na segunda e terceira seções, examina-se o contexto e a ideia de democracia participativa e sua possibilidade no âmbito judicial. Na seção seguinte, passa-se ao trabalho exploratório sobre prática judicial do TJSP, para, finalmente, relatarem-se as conclusões da pesquisa.
1 Observações metodológicas
Antes de se ingressar no relato da pesquisa, é importante que se proceda a observações metodológicas acerca do realizado. Eis uma etapa preliminar necessária para a adequada compreensão das finalidades pretendidas, conforme a problemática descrita.
Nesse aspecto, cabe salientar que a investigação realizada combina pesquisa bibliográfica com trabalho exploratório sobre prática judicial.
A pesquisa bibliográfica filia-se ao conceito de democracia enquanto prática social, a democracia participativa. Baseando-se na obra de autores como Jürgen Habermas (2003) e Boaventura Santos (2005), a menção à democracia enquanto prática social indica, primeiramente, a insuficiência do modelo democrático meramente eleitoral do Executivo e do Legislativo; em segundo lugar, sinaliza para a relevância da efetiva participação cidadã na criação ou na concretização de direitos, sem exclusões.
O estudo vincula as exclusões, que se quer eliminar pelo exercício democrático permanente, com a realidade historicamente autoritária das relações públicas e privadas do país, conforme apontam análises alinhadas à Sociologia Decolonial (SANTOS, 2005; QUIJANO, 2005). Remonta-se tal contexto aos primeiros tempos da dominação portuguesa, de índole colonialista (pelo tratamento da população indígena e de origem africana escravizadas como mercadoria) e sexista (por baseada na submissão da mulher ao homem), o que atualmente se reflete em estruturas sociais hierarquizadas, que têm, no ápice, o homem branco de ascendência europeia e detentor do grande capital, que, de modo opressor, silenciam e, consequentemente, vulnerabilizam especialmente as populações não masculina e/ou não branca.
Em acréscimo à pesquisa bibliográfica, o estudo ainda procede a trabalho exploratório sobre prática judicial. Para isso, foca-se prática participativa em demanda que discutia vagas de creches na capital paulista, na qual o Tribunal de Justiça de São Paulo instou a sociedade civil a auxiliar no cumprimento de julgado.
Utiliza-se a expressão prática judicial - isto é, vinda do Judiciário - tal como é empregada em estudos de métodos e técnicas de pesquisa (PINTO JÚNIOR, 2019). Há de se salientar, por outro lado, que, no recorte da análise, está uma prática jurisdicional, por realizada por julgadores no exercício da jurisdição.
É importante ainda observar que não se considera uma prática qualquer. A análise sucede em torno de uma boa prática. Conforme definição exposta pela Plataforma de Boas Práticas para o Desenvolvimento Sustentável (2018, online), isso significa:
[...] uma(s) técnica(s) identificada(s) e experimentada(s) como eficiente(s) e eficaz(es) em seu contexto de implantação, para a realização de determinada tarefa, atividade ou procedimento ou, ainda, em uma perspectiva mais ampla, para a realização de um conjunto destes, visando o alcance de um objetivo comum3.
No caso deste trabalho, examina-se uma boa prática jurisdicional, ou seja, a técnica adotada por um tribunal na realização de tarefa, atividade ou procedimento que, constitucionalmente, cabe ao Judiciário: controlar a juridicidade dos atos estatais nos conflitos que lhe são levados pelas partes nos processos. Não interessa, para o recorte de análise, uma boa prática administrativa judicial. O que interessa é a prática manifestada no exercício da atividade típica da magistratura, a jurisdição.
A eficiência e a eficácia da técnica, essenciais para a qualificação da prática como boa, são consideradas a partir do seu potencial democrático para as populações vulnerabilizadas. Levam-se em conta, para isso, modelos de democracia como prática social, aplicáveis ao Judiciário.
Acrescenta-se que a prática sujeita a estudo não consiste em uma decisão judicial. Há vários atos decisórios proferidos, tratados, porém, como uma única prática. Assim o é pelo fato de as decisões prolatadas estarem inseridas em uma mesma tarefa, atividade ou procedimento para efetivação de direitos, decorrente do chamamento social do Judiciário.
Como última observação metodológica, sublinha-se que se procura seguir os passos que, conforme apontado por Mario Engler Pinto Junior (2019), são necessários a um trabalho exploratório sobre práticas judicial:
a) apreensão da realidade e contextualização da situação que levou à prática;
b) reflexão sobre a prática mediante identificação do regime jurídico e questões controversas;
c) análise e avaliação da prática;
d) formulação de proposta a partir da prática.
2 Democracia como prática social
Conforme se viu, a prática examinada, para salientar a relevância da participação social por intermédio do Judiciário, encontra, no presente texto, o pressuposto teórico da democracia como prática social. Trata-se da também intitulada democracia participativa, concepção que se contrapõe ao modelo tradicional da democracia liberal, prevalente nos sistemas jurídicos dos países ocidentais.
Fundado no exercício da cidadania limitado aos períodos eleitorais, o padrão democrático liberal testemunha, desde as últimas décadas do século XX, uma notável expansão geográfica para países da Europa Ibérica, América do Sul e África. Todavia, paradoxalmente, atravessa, no mesmo período histórico, uma relevante crise de credibilidade:
Aliás, a expansão global da democracia liberal coincidiu com uma grave crise desta nos países centrais onde mais se tinha consolidado, uma crise que ficou conhecida como a da dupla patologia: a patologia da participação, sobretudo em vista do aumento dramático do abstencionismo; e a patologia da representação, o fato de os cidadãos se considerarem cada vez menos representados por aqueles que o elegeram (SANTOS, 2005, p. 42).
Fortalecendo-se nesse cenário de crise, a concepção de democracia participativa não nega a relevância do procedimento eleitoral como pressuposto mínimo para o chamado governo do povo. Todavia, vai além dele, entendendo o sistema democrático como um arcabouço baseado em procedimentos que garantem a inclusão política permanente (isto é, não apenas em eleições periódicas) de todos os setores da sociedade, os quais, obtendo o poder de falar e ser escutados perante o Estado, podem influenciar a tomada de decisões oficiais.
Da mesma forma que o faz Boaventura Santos (2005) para levar à compreensão do modelo democrático participativo, cita-se, como exemplo, a concepção de democracia comunicativa, teoricamente formulada por Jürgen Habermas. O professor da Escola de Frankfurt concebe o sistema democrático na ideia da realização de discussões públicas livres acerca de temas socialmente relevantes, as quais constituem a rede de comunicação conhecida pela expressão esfera pública. Tal rede, por sua vez, é arraigada pela sociedade civil, os “[...] agrupamentos voluntários fora da esfera do Estado e da economia [...]” (HABERMAS, 1990, p. 20), como as associações culturais e de lazer, igrejas, mídias independentes, organizações de classe e partidos políticos, capazes de falar em nome de estratos populacionais que nem sempre conseguem ser escutados nas estruturas oficiais.
No pensamento habermasiano, é a sociedade civil que proporciona fundamento para a formação informal da opinião pública4. Em um regime democrático, esta leva a vontade popular ao Estado, desembocando, ao final, “[...] em decisões eletivas institucionalizadas e em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via comunicativa é transformado em poder administrativamente aplicável” (HABERMAS, 2004, p. 289).
O modelo comunicativo de democracia não está imune a críticas, especialmente por parte de quem questiona uma de suas bases, a ideia de formação da opinião pública5. Além disso, tem-se a constante possibilidade, que parece ser inerente às formas pelas quais o Poder Público responde a demandas coletivas, de cooptação de pautas sociais, isto é, “[...] o risco que as pessoas envolvidas (funcionários públicos, doutrinadores etc.) tentem ‘tirar proveito’ desse princípio e apresentem soluções dialógicas que, na realidade, não a são” (GARGARELLA, 2014, posição 2014)6.
Boaventura Santos (2005, p. 52) reconhece, porém, a noção democrática habermasiana como a responsável por abrir “[...] espaço para que o procedimentalismo passasse a ser pensado como prática social e não como método de constituição de governos”. Isso não é pouco, na medida em que permite a abertura de caminhos para maior influência da vontade do titular da soberania, o povo, em todas as atuações do Estado, independente de períodos eleitorais.
3 Judiciário e participação social
Com base em modelos de democracia como prática social é que a presença de possibilidades participativas, pela função judicial, deve ser compreendida. Se a realização de práticas participativas nas estruturas do poder pressupõe que democracia não configura um mero procedimento eleitoral, nada impede que estas sejam realizadas em estrutura cuja fonte de legitimidade não repousa no voto popular, como o Judiciário.
De fato, a experiência no cotidiano forense tem mostrado que, apesar de inerte, a atividade judicante ostenta relevantes possibilidades para instar as partes e a sociedade civil interessada em determinadas controvérsias a atuar ativamente nas soluções dos conflitos. Tais possibilidades manifestam-se mediante as nominadas práticas judiciais participativas, cuja compreensão adequada requer, metodologicamente, que sejam divididas em duas espécies, conforme as respectivas fontes:
a) práticas administrativas;
b) práticas jurisdicionais.
Na primeira espécie, têm-se práticas originadas na edição de atos administrativos de órgãos responsáveis pelo planejamento e/ou implementação de políticas judiciárias. É o que ocorre quando as administrações de tribunais instituem projetos que promovem fala e escuta a setores historicamente silenciados, tal como o fez o Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR) ao criar o Polo Indígena de Conciliação da Comunidade de Maturuca, unidade em que se realizam audiências de conciliação mediadas por indígenas da localidade, de acordo com seus usos, costumes e tradições.
Para além de exemplos regionais, há a possibilidade de realização de práticas administrativas participativas para todo o Brasil pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), diante da liderança na condução de políticas judiciárias nacionais a ele atribuídas pelo artigo 103-B da Constituição. Foi o que realizou o órgão quando procurou ampliar a participação da população negra no Judiciário, instituindo cotas raciais nos concursos de ingresso à magistratura a partir de um ato administrativo normativo, a Resolução nº 203 de 23 de junho de 2015, cujo caráter participativo está na concessão de maior possibilidade de fala a um estrato social secularmente afastado das estruturas dos poderes estatais.
As práticas jurisdicionais, por sua vez, consistem naquelas realizadas por magistrados nos processos que presidem, isto é, no exercício da jurisdição. Tais práticas podem estar expressamente definidas em lei, como a designação de audiências públicas, previstas no Código de Processo Civil (art. 983, § 1º), consistentes em atos realizados ao longo dos processos que permitem a fala de representantes da sociedade civil acerca de temas a serem judicialmente apreciados. O mesmo diploma legal (art. 138) ainda prevê autorização para atuação da figura dos amicus curiae, consistente em entidades que, mesmo não sendo partes litigantes, são legitimadas a intervir por todo o processo a fim de apresentar manifestações.
Finalmente, magistrados podem adotar práticas jurisdicionais participativas que não se encontram expressamente previstas em lei, de modo isolado ou em conjunto com outras atuações participativas legalmente definidas (como as acima mencionadas). A menção a iniciativas não previstas no ordenamento jurídico revela-se mais complexa, na medida em que, afora proibições normativas, suas possibilidades são tão amplas quanto a criatividade de quem as institui. Tal dificuldade, contudo, pode ser amenizada mediante menção à situação concreta, apta a evidenciar a extensão das possibilidades de chamamento social por iniciativa de julgadores, conforme item seguinte.
4 A prática participativa na demanda por vagas em creches
A situação concreta mencionada diz respeito à demanda social pelo suprimento de vagas nas creches de São Paulo, o maior Município brasileiro em termos populacionais. Trata-se de velho problema que atinge a capital paulista e, tal como tantas outras questões sociais que afligem o Brasil, desaguou em processo judicial, este, especificamente, recebendo tramitação no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
Os rumos participativos tomados no decorrer da relação processual instaurada levaram o caso a transformar-se em paradigma democrático no âmbito da judicialização das questões políticas. Pelo fato desses rumos decorrem de iniciativas do próprio Judiciário, definidas e não definidas previamente em lei, o caso torna-se crucial para os fins deste artigo, merecendo ser o foco de trabalho exploratório sobre prática judicial.
Inicia-se, então, a análise mediante a contextualização do problema levado ao Judiciário. Em seguida, passa-se a descrever os atos decisórios componentes da prática propriamente dita.
Conforme noticiado por veículo de imprensa regional paulistano (Grupo Sul News, 2020), dados publicados pela Secretaria Municipal da Educação revelam que, em junho de 2020, mais de 20 mil crianças de até três anos aguardavam por uma vaga de creche no Município. Noticiou, ainda, que a demanda por vagas é liderada pela zona sul da capital, local em que o déficit atinge mais de 6 mil crianças, principalmente aquelas que residem nos bairros Grajaú, Cidade Ademar, Jardim Ângela, Pedreira, Jardim São Luís e Capão Redondo. Por fim, há a informação de dois motivos que protagonizam a necessidade de inserção de criança em creche municipal: mães que trabalham fora (28,7% dos casos) e pobreza (22% dos casos).
Do primeiro dado percebe-se um componente discriminatório na incapacidade do Poder Executivo municipal no atendimento de demanda social: a discriminação de gênero. Os 28,7% acima mencionados indicam um considerável contingente de mulheres – mães – que tem obstado o exercício de atividade remunerada por não ter com quem deixar sua prole.
O segundo dado (a pobreza), por sua vez, revela outro elemento historicamente excludente na omissão do governo paulistano, a discriminação de classe social. Muitas das crianças que se encontram em famílias situadas na base da pirâmide social do Município, além de todas as privações decorrentes da falta de recursos materiais para a sobrevivência, também estão desprovidas do acesso à educação básica.
Há, ainda, outro elemento discriminatório na insuficiência das políticas do Executivo municipal, não explícito nas porcentagens acima mencionadas, mas que se consegue auferir a partir da realidade da região e dos bairros da capital paulista de maior déficit educacional: a discriminação de raça. Consoante números divulgados pela organização da sociedade civil Rede Nossa São Paulo (2020), os bairros da zona Sul de maior demanda pelo frustrado acesso à educação básica são aqueles habitados por mais de 50% de população negra, um contraste com os bairros centrais que chegam a ser ocupados por cerca de 80% de estrato populacional branco.
Como se vê, crianças e mulheres pobres e negras paulistanas vivem sob uma realidade radicalmente distante da realidade jurídica do acesso à educação em creche ou pré-escola, prometida pelo artigo 208, inciso IV, da Constituição. Não há como deixar de se considerar tal problema também como reflexo de opressões que silenciam tais pessoas, impedidas, como aparece de forma límpidas nos dados numéricos citados, de colaborar na formação de atuações governamentais que atendam às suas necessidades de vida. Em outras palavras, suas demandas não se mostram prioritárias para o Poder Público.
Justamente por se tratar de um reflexo do histórico autoritarismo que rege relações públicas e privadas do país, o problema não consiste em estado de coisas atual. Na verdade, todo o déficit de vagas em creches decorre de uma longa conduta omissiva do governo paulistano. Para se ter uma ideia da gravidade do problema, conforme Rizzi e Ximenes (2014), no ano de 2008, isto é, vigésimo ano de vigência da Constituição, a demanda não atendida por creche superou a marca de uma centena de milhares, alcançando, precisamente, o número de 110.091.
Daí a compreensão da opção de entes de defesa do direito à educação pela via da judicialização, levada a efeito na capital paulista por intermédio de demanda coletiva, no próprio ano de 2008. As entidades Ação Educativa Assessoria Pesquisa e Informação, Instituto de Cidadania Padre Josimo Tavares, Casa dos Meninos, Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo CDHEP e Associação Internacional Interesses a Humanidade Jardim Emilio Carlos e Irene ajuizaram ação civil pública em face do Município de São Paulo, perante o Foro Regional de Santo Amaro da Capital. Requereram, em resumo, a construção de 736 vagas de creches em 180 dias e a apresentação de plano governamental para ampliação de vagas e construção de unidades em 90 dias.
Importante apontar que as entidades autoras compunham uma rede de defesa da educação em São Paulo, constituída em 2007, denominada Movimento Creche para Todos7. Daí o litisconsórcio formado na propositura da ação.
Não tendo obtido êxito em primeira instância, as autoras interpuseram recurso de apelação. Este foi analisado em 16 de dezembro de 2013, pela Câmara Especial do TJSP que, por intermédio do relator, o Desembargador Walter de Almeida Guilherme, deu provimento em parte ao apelo para:
1. Obrigar o Município de São Paulo a criar, entre os anos de 2014 e 2016, no mínimo, 150 (cento e cinquenta) mil novas vagas em creches e em pré-escolas para crianças de zero a cinco anos de idade, disponibilizando 50% (cinquenta por cento) nos primeiros 18 (dezoito) meses, das quais 105 (cento e cinco mil) em tempo integral em creche para crianças de zero a 3 (três) anos idade, de forma a eliminar a lista de espera, garantida a qualidade da educação ofertada, observando-se para tanto, quer quanto as unidades de ensino já existentes na rede escolar, quer referentemente àquelas que vierem a ser criada, as normas básicas editadas pelo Conselho Nacional de Educação e, suplementarmente, aquelas expedidas pelo Conselho Municipal de Educação.
2. Obrigar o Município de São Paulo a incluir na proposta orçamentária a ampliação da rede de ensino atinente à educação infantil de acordo com a ampliação determinada.
3. Obrigar o Município de São Paulo a apresentar a este Juízo, no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, plano de ampliação de vagas e de construção de unidades de educação infantil para atendimento do estipulado no item “1”.
4. Obrigar o Município de São Paulo a apresentar, semestralmente, relatórios completos sobre as medidas tomadas para efeito do cumprimento da obrigação fixada no item “1” (SÃO PAULO, 2013).
Verifica-se que a conclusão do ato decisório não difere, na essência, de outras tantas decisões judiciais que interferem em políticas públicas típicas do Executivo para se assegurar direitos violados. O Judiciário compeliu o Poder Executivo do Município de São Paulo a atuar conforme a sistemática normativa que garante educação a crianças em creche, nos termos do que se verifica do trecho abaixo:
Igualmente não procede a alegada intromissão indevida do Poder Judiciário no âmbito da discricionariedade administrativa.
Se Constituição da República afirma ser dever constitucional do Estado assegurar à criança o direito à educação infantil, obriga-se o Poder Judiciário, no intuito inarredável de fazer cumprir a Constituição, exigir do Poder Executivo tornar efetivo o direito praticando atos concretos tendentes à sua materialização, não sendo a incumbência inibida pela alegação de que assim agindo estaria se imiscuindo na esfera específica de atuação do último Poder. A questão diz respeito ao controle de constitucionalidade, isto é, se o Poder Executivo deixa, porventura, de efetivar um direito garantido na Lei Básica, a interveniência do Poder Judiciário se faz legitima e incontrastável (SÃO PAULO, 2013).
A luta social paulistana pela vaga das creches apresenta, por seu turno, duas peculiaridades relevantes. Primeiramente, não se tratou de pedido ajuizado apenas pela Defensoria Pública ou Ministério Público, tal como acontece em considerável parcela das ações coletivas em trâmite em todo o país: os pedidos formulados em face do Poder Público Municipal foram ajuizados por várias entidades da sociedade civil que, por formarem previamente a rede Movimento Creches para Todos, pareciam poder exercer maior pressão para o atendimento das demandas sociais que se mostravam como representantes. E, em segundo lugar, porque a mesma rede utilizou a estratégia de ajuizar mais duas ações civis públicas, ambas em 2010, isto é, antes mesmo do julgamento da primeira ora examinada: uma perante a Vara da Infância e Juventude do Foro Regional de Santo Amaro e a outra perante a Vara da Infância e Juventude do Foro Regional do Jabaquara, contendo pedidos diferentes (até mesmo mais amplos) daqueles formulados em 2008 (RIZZI; XIMENES, 2014), mas relacionados ao idêntico problema de vagas de creches.
Houve, portanto, múltiplas judicializações por iniciativa da sociedade organizada envolvendo a mesma temática. Tratou-se de opção que aparentemente promovia maior constrangimento político à municipalidade para o cumprimento do seu dever jurídico de implementar políticas públicas adequadas às necessidades sociais.
Como resposta a essas peculiaridades, o TJSP passou a adotar prática igualmente peculiar, manifestada em uma série de decisões.
Teve-se, primeiramente, a oitiva de entidades por intermédio de audiência pública, realizada nos dias 29 e 30 de agosto de 2013, quando as próprias partes e dezenas de representantes da sociedade civil e especialistas em educação infantil puderam ser ouvidos antes do julgamento da causa. A repercussão política do ato revelou-se positiva dentro do próprio Judiciário. Segundo divulgado pela Defensoria Pública de São Paulo (2013, online), “também presente ao evento, a Ministra do Superior Tribunal de Justiça Eliana Calmon elogiou a convocação da audiência, ressaltando que o Judiciário antes costumava agir somente no caso de inércia dos outros Poderes, o que hoje é diferente.”
Além disso, designou-se audiência de conciliação em seguida à audiência pública. Divergências nos números de vagas a serem abertas – tendo as entidades autoras tomado por base as promessas eleitorais do então prefeito de São Paulo (RIZZI; XIMENES, 2014) – impediram, porém, a composição amigável e levaram a corte a proferir a decisão parcialmente transcrita neste item.
Em terceiro lugar, adveio a atuação mais criativa do TJSP, assim considerada por não estar expressamente prevista em lei, a qual foi levada a efeito após o julgamento da apelação. Trata-se da iniciativa, formulada em 2014, em instituir Comitê de Monitoramento do Plano de Ampliação da Rede de Educação Infantil, tendo-se o fim de monitorar a ampliação de vagas de creches pelo governo municipal. O comitê formado contém uma composição socialmente representativa: Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação; Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP), Instituto de Cidadania Padre Josimo Tavares; Associação Comunidade Ativa Vila Clara; Defensoria Pública do Estado de São Paulo; Fórum Paulista de Educação Infantil; Fórum Municipal de Educação Infantil; Grupo de Atuação Especial de Educação (GEDUC) do Ministério Público do Estado de São Paulo; Grupo de Trabalho de Educação da Rede Nossa São Paulo; Hesketh Advogados; Marcha Mundial das Mulheres; Rubens Naves, Santos Jr. Advogados; Sindicato da Educação Infantil de São Paulo (SEDIN); Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP); Fundação Carlos Chagas e Comissão de Educação dos Conselhos Tutelares do Município de São Paulo.
Com essa ampla formação, resolveu-se instituir reuniões bimestrais para a verificação da:
a) quantidade de crianças matriculadas;
b) média de crianças de acordo com distrito e no Município;
c) número de vagas criadas e ocupadas;
d) situação atualizada de expansão da rede física;
e) número de novos profissionais contratados;
f) detalhamento das iniciativas à qualificação da oferta (AÇÃO EDUCATIVA, 2014).
Por fim, mais uma iniciativa liderada pelo TJSP a merecer destaque, agora produto do trabalho do próprio comitê aludido. Trata-se da realização de nova audiência de conciliação, ocorrida no ano de 2017, tendo as partes, enfim, alcançado uma composição amigável. Nesta, definiram-se metas vinculantes ao governo municipal de criação de vagas para crianças de até três anos de idade, priorizando-se diretorias regionais de ensino de maior demanda não atendida. O ajuste mereceu ampla divulgação pelo próprio TJSP, cuja assessoria de imprensa destacou a participação da sociedade civil (COMUNICAÇÃO SOCIAL TJSP, 2017).
Cabe anotar que o acordo não deu o cumprimento do julgado por extinto. Os trabalhos do comitê prosseguiram, mas, a partir daquele momento, objetivando prioritariamente o monitoramento do ajustado entre Poder Público municipal e entidades da rede Movimento Creche para Todos.
De todo o relatado, verifica-se que, de um típico caso de judicialização de questão política, o problema relativo ao suprimento de vagas de creche em São Paulo transformou-se em um modelo de fomento à participação social. A imposição de medidas objetivando o suprimento de vagas possibilitou a posterior instauração de uma prática democrática mediada pelo TJSP, a qual instou as partes a adotarem uma participação ativa na execução de um julgado.
O mais importante é que tudo isso ocorreu para efetivação de direito cuja violação oprime, com maior intensidade, além de crianças, pessoas pertencentes a estratos historicamente oprimidos e, portanto, silenciados: mulheres negras atingidas pela pobreza, que tiveram judicialmente, por entes da sociedade civil, a possibilidade de falar e ser escutadas acerca de suas demandas pelo Poder Público.
Políticas públicas de educação infantil foram, portanto, judicializadas, mas sem se limitar aos recintos de um tribunal. Além do mais, não se retirou o protagonismo do Executivo na solução do problema (isto é, na construção das vagas de creches, objetos do acordo).
Finalmente, não se pode deixar de indagar acerca dos resultados materiais obtidos. O confronto de números, mencionados no início deste item, parece mostrar uma melhora sensível no fornecimento de vagas de creche pela prefeitura após a judicialização. De um déficit superior a 100 mil vagas no final da primeira década deste século XXI houve a mudança para um déficit de pouco mais de 20 mil vagas no final da segunda metade do mesmo século. O problema perdura, mas foi amenizado.
Daí a possibilidade de a prática examinada poder ser replicada para tantos outros casos semelhantes que dão ensejo a processos judiciais em todo o Brasil. Recorda-se que o Supremo Tribunal Federal (STF) legitimou expressamente, poucos anos após o julgado do TJSP parcialmente transcrito neste item, o ingresso do Judiciário na questão da inserção de crianças em vagas em creches, decidindo não caber aos governos municipais desvencilhar-se deste dever mediante mera alegação de falta de recursos financeiros (BRASIL, 2016).
Considerações finais
Mencionar-se a judicialização das questões políticas implica fazer referência a um fenômeno que, sob a perspectiva democrática de resolução de conflitos sociais, revela-se de mão dupla. De um lado, trata-se de fenômeno que é produto de opção de setores da sociedade que, violados em seus direitos, inserem o Judiciário no centro da arena política; de outro lado, há a circunstância de o protagonismo judicial ostentar a possibilidade de trancar as discussões políticas para o interior dos prédios dos fóruns e tribunais, enfraquecendo os debates públicos e as prerrogativas dos poderes eleitos pelo voto popular.
A prática judicial levada a efeito pelo TJSP, na demanda de ampliação de vagas de creche na capital paulista, evidenciou a relevância democrática da participação social no Judiciário como forma, justamente, de se acolher a opção de certos setores populacionais pela judicialização e, concomitantemente, não enfraquecer debates e nem prerrogativas de funções estatais.
De fato, o déficit de vagas de creche no Município de maior população do país é tema que, pelo seu impacto social, deveria ensejar amplos debates públicos com o envolvimento de todos os setores sociais interessados. Na situação examinada, entretanto, havia restrições seletivas a determinados estratos da população, que, embora diretamente implicados nos temas debatidos, não tinham suas demandas consideradas pelo Poder Público. O Judiciário, então, rompeu o silenciamento a elas imposto, inserindo-as nas discussões.
No final das contas, a atuação do TJSP analisada seguiu o mesmo caminho do que sustenta Habermas em seu modelo de democracia comunicativa. Apesar de crítico à judicialização, o autor admite-a para garantir a autonomia cidadã e a representação simétrica de todos os grupos sociais perante a realidade estatal: “o tribunal tem que tomar precauções para que permaneçam intactos os ‘canais’ para o processo inclusivo de formação da opinião e da vontade, através do qual uma comunidade jurídica democrática se auto-organiza” (HABERMAS, 2003, p. 327).
Importante, mais uma vez, realçar que tudo foi realizado sem retirar o protagonismo dos debates e nem de representantes eleitos pelo povo. Na realidade, a maior colaboração da prática judicial foi ampliar as discussões sobre assunto público amplamente debatível, a ser objeto de decisão do Estado.
Essas observações ainda não encerram o tema. Há de se considerar o elemento que, em termos de lutas contra vulnerabilidades seculares existentes no país, revela-se de maior importância para a prática examinada: as pessoas chamadas aos debates representam aquelas que foram pelos séculos passados, e ainda são na atualidade, silenciadas perante o Poder Público: mulheres negras e pobres excluídas das discussões acerca de políticas educacionais.
É certo que há limites de uma prática judicial como a observada. Trata-se de atuação minoritária no próprio Poder Judiciário, muitas vezes ainda preso a velhas atuações que variam entre a omissão completa acerca de questões políticas sob uma visão ortodoxa da separação de poderes ou uma atuação indiscriminada de substituição da vontade dos eleitos pelo povo pela vontade dos magistrados.
Tal situação, porém, não é estática. Práticas socialmente participativas, como a levada a efeito pelo TJSP, podem ser replicadas. Outros magistrados podem vir a aplicá-las em diferentes processos. O que é exceção, portanto, ostenta o potencial de se transformar em regra de conduta majoritária, de modo a destacar o papel primordial que o Judiciário pode ter no fortalecimento democrático em um país de desigualdades e autoritarismos como o Brasil.
Referências
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1 Doutor em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades pela Universidade de São Paulo; Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo; Professor do Curso de Mestrado Profissional em Direito e Judiciário na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; https://orcid.org/0000-0002-3546-2016. E-mail: andreaugusto@usp.br.
2 Citam-se três exemplos que simbolizam esse estado de coisas: a) o processo de usurpação de terras contra comunidades tradicionais levou a mais de mil assassinatos contra indígenas nas últimas três décadas (CIMI, 2020); b) mais de 66% do total das pessoas que se encontram encarceradas no Brasil são negras (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020); c) os rendimentos médios das mulheres negras são menos da metade dos recebidos pelos homens não negros (DIEESE, 2021).
3 “A Plataforma de Boas Práticas para o Desenvolvimento Sustentável é resultado do Acordo assinado entre a FAO, a ITAIPU Binacional e o Governo do Estado do Paraná, com a proposta de disseminar e compartilhar um conjunto de iniciativas replicáveis de boas práticas (programas, projetos, ações individuais) desenvolvidas inicialmente na Região Oeste do Estado do Paraná/Brasil e nos três Estados da região Sul do Brasil” (WAGNER, 2015, online). Como se vê, trata-se de iniciativa composta por entes oficiais nacionais e de uma agência das Nações Unidas (FAO, Organização para Alimentação e Agricultura ou, em inglês, Food and Agriculture Organization), reunidos em torno do objetivo de efetivar o direito constitucional ao desenvolvimento sustentável (art. 225 da Constituição). Desse escopo constitucional, sua definição de boa prática ter sido adotada neste trabalho.
4 “Na esfera pública, as manifestações são colhidas de acordo com temas e tomadas de posição pró ou contra; as informações e argumentos são elaborados na forma de opiniões focalizadas. Tais opiniões enfeixadas são transformadas em opinião pública através do modo como surgem e através do amplo assentimento de que ‘gozam’” (HABERMAS, 2003, p. 94).
5 Nesse sentido, para Francisco Fonseca (2005, p. 34-35), as diversas interpretações concedidas à ideia opinião pública tornam tal conceito verdadeiro campo minado. No caso da imprensa brasileira, tratada especificamente pelo autor, “[...] ‘opinião pública’ para os grandes jornais significa a ‘opinião’ de seus leitores, isto é, cerca de 15 milhões (numa perspectiva superestimada) de pessoas num universo de 170 milhões de habitantes, isto é, as referidas classes proprietárias – trata-se, portanto, de uma expressão restritiva; e (mais importante) esta expressão é invocada pelos jornais, em variadas situações, simplesmente para identificar sua própria opinião, que, embora privada, pretende passar-se por ‘pública’.”
6 Tradução nossa. No original: “[...] corre el riesgo de que las personas involucradas (funcionarios públicos, doctrinarios, etc) intenten ‘sacar ventaja’ indebida de ese prestígio y presenten como dialógicas soluciones que en realidad no lo son” (GARGARELLA, 2014, posição 2413).
7 O Movimento Creche para Todos “[...] se constitui como uma articulação informal de entidades e militantes sociais que têm como objetivo lutar pela inclusão educacional de qualidade de todas as crianças em unidades de educação infantil. Nesse sentido, desde o final de 2007, o Movimento organiza mobilizações e iniciativas de incidência política com comunidades e organizações locais no município de São Paulo e na Região Metropolitana, buscando consolidar o reconhecimento deste direito e a articulação social para a sua garantia, fortalecendo sua exigibilidade” (RIZZI; XIMENES, 2014, p. 6).