https://doi.org/10.18593/ejjl.32344
RAZÃO PÚBLICA E AMICUS CURIAE NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: análise dos argumentos utilizados na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.543
PUBLIC REASON AND AMICUS CURIAE IN THE SUPREME FEDERAL COURT: analysis of the arguments used in the Direct Action of Unconstitutionality n. 5.543
Irenice Tressoldi1
Robison Tramontina2
Resumo: Aborda-se a participação da sociedade em fóruns públicos para formar a razão pública do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.543, que avalia a inconstitucionalidade de atos normativos que vedam a doação de sangue por homens que se relacionem sexualmente com outros homens e suas parceiras. Busca-se responder o problema: o debate público promovido pela atuação de amici curiae perante o Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.543 conferiu legitimação e representou um suporte democrático à razão pública do Tribunal? Trata-se de pesquisa bibliográfica e documental. Analisa-se criticamente os argumentos utilizados nos votos dos Ministros e Ministras à luz da razão pública rawlsiana, a fim de identificar a contribuição da sociedade para construir a razão de decidir. Conclui-se que a atuação de amici curiae foi significativa e positiva para formar a razão pública do Supremo Tribunal Federal no caso analisado.
Palavras-chave: Razão Pública; John Rawls; Amicus curiae; Supremo Tribunal Federal; Controle de Constitucionalidade.
Abstract: The participation of society in public forums is studied to form the public reason of the Brazilian Federal Supreme Court in the Direct Action of Unconstitutionality n. 5.543, which assesses the unconstitutionality of norms that prohibit the donation of blood by men who have sexual relations with other men and their partners. The objective is to answer the problem: the public debate promoted by the amici curiae’s performance in the Brazilian Federal Supreme Court in the Direct Action of Unconstitutionality n. 5.543 conferred social legitimacy and represented democratic support to the public reason of the Court? This is a bibliographic and documentary research. The arguments used in the votes of the Ministers are critically analyzed in the light of Rawlsian public reason, in order to identify the contribution of society to build the reason for deciding. It is concluded that the role of amici curiae were significant and positive to form the public reason of the Brazilian Federal Supreme Court in the case analyzed.
Keywords: Public Reason; John Rawls; Amicus curiae; Federal Supreme Court (STF); Judicial Review.
Recebido em 21 de novembro de 2022
Aceito em 22 de novembro de 2022
Introdução
Trata-se de um estudo de caso acerca da participação da sociedade em debates em fóruns públicos para formar a razão pública do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI n. 5.543, que avalia a inconstitucionalidade de dois atos normativos federais que vedam a doação de sangue por homens que se relacionem sexualmente com outros homens – HSHs e suas parceiras.
A análise realizada nesta pesquisa é um recorte do trabalho de dissertação apresentado para obtenção do título de Mestre em Direito, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina. O trabalho dissertativo completo faz a análise detalhada e com maior complexidade da perspectiva teórica envolvida, bem com busca identificar a formação da razão pública em dois casos paradigmáticos: a ADI n. 5.543 e a ADO n. 26. Aqui, faz-se uma abordagem mais sucinta do que aquela realizada no trabalho dissertativo, com o objetivo de divulgar os resultados da pesquisa. Por se tratar de um tratamento mais sintético, alguns aspectos importantes que compõem a dissertação não poderão integrar o estudo de caso, sem, contudo, prejudicar a compreensão da abordagem realizada.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.543 buscou declarar a inconstitucionalidade do art. 64, IV, da Portaria n. 158/2016 do Ministério da Saúde – MS, e do art. 25, XXX, “d”, da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n. 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, que previam a inaptidão temporária para doação de sangue por indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo e suas respectivas parceiras, nos 12 (doze) meses subsequentes à prática sexual.
Ao longo do feito, catorze instituições requereram a admissão para atuar como amicus curiae na ADI n. 5.543. Dessas, onze manifestaram-se efetivamente. O estudo de caso visa a identificar se e como os argumentos levados ao debate no fórum público deliberativo da jurisdição constitucional pelos amici curiae foram recepcionados pelos Ministros e Ministras em seus votos.
A pesquisa busca responder o seguinte problema: o debate público promovido pela atuação de amici curiae perante o Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.543 conferiu legitimação e representou um suporte democrático à razão pública do Tribunal?
No aspecto metodológico, trata-se de uma pesquisa do tipo bibliográfica e documental. Aplica-se para o levantamento de dados a técnica de documentação indireta, abrangendo a pesquisa documental, bibliográfica e estudo de caso judicial, no intuito de discorrer sobre os conceitos e categorias hábeis a identificar e delinear o objeto de pesquisa e responder o problema proposto.
Para identificar se os fatos, argumentos e documentos trazidos ao debate público pelos amici curiae no caso selecionado foram considerados pelos Ministros e Ministras em seus votos e qual influência tiveram sobre o resultado final da demanda, realizou-se a categorização dos argumentos identificados nos debates promovidos nos julgados selecionados. A categorização abrange os argumentos levados ao debate pelo autor da ação, pelos amici curiae ouvidos e pelos Ministros e Ministras em seus votos.
Para responder o problema de pesquisa, primeiro, contextualiza-se o caso paradigmático selecionado – a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.543 –, extraindo-se e categorizando-se os argumentos utilizados pelo autor da ação e pelos amici curiae em suas manifestações por memoriais e orais. Em seguida, adota-se o procedimento de categorização com os argumentos utilizados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal - STF como razão de decidir em seus votos, a fim de identificar se há correlação entre os argumentos utilizados para formar a razão pública do tribunal e aqueles apresentados pelo autor da ação e pelos amici curiae ouvidos ao longo do feito.
Depois de contextualizados os elementos centrais do caso paradigmático selecionado, elabora-se uma análise crítica dos argumentos utilizados à luz da razão pública, inspirada na perspectiva rawlsiana. Primeiro, aborda-se o papel da razão pública em decisões proferidas por cortes constitucionais. Em seguida analisa-se a justificação democrática da atuação da sociedade em fóruns públicos de deliberação. O tópico derradeiro analisa a construção do raciocínio dos votos proferidos na ADI n. 5.543 à luz da razão pública, a fim de identificar se e como a participação da sociedade por meio da atuação de amici curiae contribuiu para construir a razão de decidir.
Parte-se da hipótese central de que as informações levadas ao debate por instituições da sociedade civil para deliberação em fórum público com o Supremo Tribunal Federal devem ser relevantes para formar a razão pública. Os argumentos utilizados pelos amici curiae ouvidos no curso da ação devem servir como suporte para formar o raciocínio dos votos dos Ministros, independentemente de serem favoráveis ou desfavoráveis à procedência dos pedidos iniciais.
Permitir que os elementos levados ao debate em fórum público pelas instituições da cultura de fundo da sociedade civil tenham uma influência significativa e positiva para formar a razão pública do Supremo Tribunal Federal, contribui para que a decisão seja conformada com os interesses da coletividade e seja capaz formar um consenso sobreposto entre doutrinas razoáveis abrangentes variadas que atuam na cultura de fundo da sociedade civil, incluindo segmentos que não alcançam representatividade na arena política.
1 Os fatos e a história processual
A Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.543 foi proposta no Supremo Tribunal Federal pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), partido político com representação no Congresso Nacional, em 7 de junho de 2016 (recibo de petição eletrônica 29605/2016 – eDOC. 35)3 (BRASIL, 2020). Seu objeto era declarar a inconstitucionalidade do art. 64, IV, da Portaria n. 158/2016 do Ministério da Saúde (BRASIL, 2016), e do art. 25, XXX, “d”, da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n. 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA (BRASIL, 2014), os quais dispõem sobre a inaptidão temporária para doação de sangue por indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo e suas respectivas parceiras, nos 12 (doze) meses subsequentes à prática sexual.
Nesse passo, o artigo 64, inciso IV, da Portaria n. 158/2016 do Ministério da Saúde (BRASIL, 2016), que redefine o regulamento técnico de procedimentos hemoterápicos, considerou inaptos temporários por 12 (doze) meses para doação de sangue os candidatos homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes.
Do mesmo modo, a Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n. 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, que dispõe sobre os requisitos de boas práticas para serviços de hemoterapia, em seu artigo 25, inciso XXX, alínea “d”, previu como prática de risco para segurança na doação de sangue os contatos sexuais de indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo e/ou as parceiras sexuais destes (BRASIL, 2014).
Em Despacho datado de 8 de junho de 2016, o Ministro relator Edson Fachin adotou o rito previsto no artigo 12 da Lei n. 9.868/99, a fim de possibilitar ao Supremo Tribunal Federal a análise definitiva da questão, em virtude da relevância da matéria debatida e da sua importância para a ordem social e para a segurança jurídica. Determinou a requisição de informações, no prazo de 10 dias, e manifestações do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de 5 dias (eDOC 37).
Ao longo do feito, catorze instituições requereram a admissão para atuar como amicus curiae na ADI n. 5.543. Dessas, onze manifestaram-se efetivamente. As instituições manifestaram-se em memoriais, que constam dos autos, e em debates orais, disponíveis no canal do YouTube do STF.
Manifestaram-se efetivamente nos autos como amici curaie a Defensoria Pública da União (eDOC 196 e eDOC 247), a Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas – ABRAFH (eDOC 62 a eDOC 69), o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero – GADVS (eDOC 71 a eDOC 76), o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, (eDOC 134 a eDOC 138 e eDOC 247), o Instituto Brasileiro de Direito Civil – IBDCIVIL, (eDOC 140 a eDOC 141 e eDOC 148), o Grupo Dignidade – pela cidadania de Gays, Lésbicas e Transgêneros (eDOC 142 a eDOC 147), o Centro Acadêmico de Direito da Universidade de Brasília – CADir/UnB (eDOC 162 a eDOC 170), a Universidade Federal do Paraná (eDOC 177 a eDOC 182), o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (eDOC 184 a eDOC 190), a Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP, (eDOC 203 a eDOC 210) e a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular – ABHH (eDOC 221 a eDOC 225) (BRASIL, 2020; SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017a).
O julgamento da ADI n. 5.543 iniciou em 19 de outubro de 2017, quando foram ouvidos o autor da ação e os amici curiae. Na mesma data, o Ministro relator Edson Fachin apresentou seu voto pela procedência da ação. A votação seguiu no dia 25 de outubro de 2017, com a prolação de votos pelos Ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux e pela Ministra Rosa Weber. Na Sessão Plenária do dia 26 de outubro de 2017, o Ministro Gilmar Mendes pediu vista antecipada dos autos. Os autos foram novamente submetidos para julgamento em Plenário em Sessão de Julgamento Virtual de 1/5/2020 a 8/5/2020, quando o Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido formulado, por maioria de votos, para declarar a inconstitucionalidade do art. 64, IV, da Portaria n. 158/2016 do Ministério da Saúde, e do art. 25, XXX, “d”, da Resolução da Diretoria Colegiada - RDC n. 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA.
2 O direito
O autor apontou que os dispositivos normativos questionados afrontam a Constituição Federal – CF em diversos aspectos. Primeiro, violam o fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), pois tolhem o exercício da cidadania ao impedir a pessoa de contribuir com a saúde coletiva e ter uma atitude fraterna em função da sua orientação sexual, em contrariedade com os valores que fundam o Estado brasileiro. Segundo, violam o direito fundamental à igualdade (art. 5º, caput, CF), na medida em que a orientação sexual dos homens se torna determinante para impedir a submissão do próprio sangue aos exames de detecção de doenças. Terceiro, afrontam o objetivo fundamental de promover o bem de todos sem discriminações (art. 3º, IV, CF), pois o Estado age de forma discriminatória com a orientação sexual. Quarto, violam o princípio da proporcionalidade, de índole constitucional, como expressão do princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF) (conforme julgado na ADPF 291). Isso, porque as restrições impostas pelos atos normativos questionados não são a medida menos restritiva de direitos fundamentais possível.
Diante disso, o autor pleiteou o deferimento de medida cautelar para suspender liminarmente a eficácia dos dispositivos impugnados, argumentando estarem presentes o fumus boni iuris, pela inconstitucionalidade dos atos normativos, e o periculum in mora, em razão da violação constante e continuada do direito fundamental à igualdade, aliada à necessidade diária de obtenção de doações de sangue no Brasil diante da flagrante escassez do material. Ao final, pugnou pelo julgamento procedente da ação para declarar a inconstitucionalidade, com redução de texto, dos dispositivos normativos questionados.
Conforme destacado na introdução, a pesquisa tem por objetivo investigar a construção da razão pública pelo Supremo Tribunal Federal, como órgão exemplar do exercício da razão pública, com suporte em argumentos e documentos levados aos debates por amici curiae.
No intuito de melhor sistematizar a abordagem que se pretende realizar, os argumentos expostos pelo autor da ação na petição inicial, em memoriais e em sustentação oral realizada em sessão de julgamento do Supremo Tribunal Federal e pelos amici curiae ouvidos no curso da ação, tanto por memoriais quanto em sustentação oral, foram categorizados.
A divisão dos argumentos em categorias permite que se compreenda com maior precisão quais fatores foram considerados para construção da razão pública do Tribunal, objeto central da pesquisa. Além disso, evita que se repita exaustivamente a mesma informação, bastando a referência ao grupo argumentativo utilizado pelo autor da ação, pelos amici curiae ou pelos Ministros e Ministras em seus votos.
Foram identificados nove argumentos centrais entre aqueles apresentados pelo autor da ação e pelos amici curiae. Os nove argumentos foram classificados em sete categorias. A primeira categoria refere-se ao argumento prático-moral4, vinculado à escassez de material hemoterápico nos bancos de sangue e a importância da doação de sangue para a saúde pública. A segunda categoria vincula-se ao argumento sociojurídico, que aponta a existência de discriminação na previsão de grupo de risco em detrimento de conduta de risco. A terceira categoria trata do argumento histórico-sociológico. Neste, são refutadas as justificativas utilizadas pelos órgãos governamentais para embasar a restrição de doação de sangue por HSHs, especialmente vinculados à incidência maior de contaminação por Doenças Sexualmente Transmissíveis – DST entre homens homossexuais e à existência de normas proibitivas semelhantes à brasileira em diversos países. A quarta categoria aborda o argumento de origem técnico-científico5, relacionado à redução do tempo da janela imunológica. A quinta categoria trata de argumentos jurídicos, vinculados às normas de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, à pretensão da norma brasileira de proteger o receptor do sangue doado em virtude da janela imunológica e à possibilidade de responsabilização jurídica dos profissionais e instituições de saúde. A sexta categoria expõe o argumento científico-sociológico, que defende a incidência maior de contaminação entre HSHs. A sétima categoria trata de argumento comparativo, que defende a adoção de inaptidão temporária para doação de sangue por grupos de risco em outros países.
O quadro de argumentos identificados desenha-se da seguinte forma:
Tabela 1 – Categorização dos argumentos vinculados à ADI n. 5.543
CATEGORIA |
ARGUMENTOS |
Prático-moral |
A doação de sangue é importante para a saúde pública porque há escassez nos bancos de sangue. |
Sociojurídico |
A previsão de restrição de doação de sangue a grupo de risco em detrimento da previsão de restrição às condutas de risco é discriminatória. |
Histórico-sociológico |
As justificativas utilizadas pelos órgãos governamentais para embasar a restrição de doação de sangue por HSHs não são plausíveis. Primeiro, a justificativa baseada na incidência maior de contaminação por DST entre homens homossexuais não justifica a restrição, pois esta deve se basear na conduta individual, não na orientação sexual e identidade de gênero. Segundo a justificativa de que existem proibitivas semelhantes à brasileira em diversos países, em razão do risco de contaminação durante o período da janela imunológica é refutada pelo argumento de que a regulação da doação de sangue exige que o Poder Público adote diversas medidas de precaução na coleta, processamento, distribuição e utilização do material sanguíneo, de modo que a retirada da proibição não comprometeria a segurança dos procedimentos hemoterápicos. |
Técnico-científico |
A previsão de restrição de doação de sangue por 12 meses é inadequada, pois os avanços científicos resultaram na redução do tempo da janela imunológica. |
Jurídico |
O Brasil é signatário de tratados internacionais que determinam o respeito à orientação sexual e identidade de gênero. A norma restritiva brasileira pretende proteger o receptor do sangue doado em virtude da janela imunológica. A norma restritiva brasileira pretende proteger os profissionais e instituições de saúde da possibilidade de responsabilização jurídica pela qualidade do sangue coletado e doado. |
Científico-sociológico |
Defende a incidência maior de contaminação entre HSHs. |
Comparativo |
Defende a adoção de inaptidão temporária para doação de sangue por grupos de risco em outros países. |
Fonte: os autores.
A Tabela 2 abaixo retrata os argumentos utilizados pelo autor da ação e pelos amici curiae no curso da ADI n. 5.543. Nela nota-se que se sobressaem os argumentos de natureza prático-moral, que reforça a importância da doação de sangue para a saúde pública, sociojurídica, que denuncia a discriminação na previsão de grupo de risco em detrimento de conduta de risco, e histórico-sociológica, que refuta as justificativas utilizadas pelos órgãos governamentais para embasar a restrição de doação de sangue por HSHs, especialmente vinculados à incidência maior de contaminação por DST entre homens homossexuais e à existência de normas proibitivas semelhantes à brasileira em diversos países.
Tabela 2 – Categorias de argumentos apresentados pelo autor da ação e pelos amici curiae na ADI n. 5.543
P S B (autor) |
D P U |
A B R A F H |
G A D V s |
I B D F A M |
I B D C I V I L |
G D R I U G P N O I D A D E |
C A Dir / U N B |
U F P R |
C F O A B |
A N A D E P |
A B H H |
||
Prático-moral |
|
||||||||||||
Sociojurídico |
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Histórico-sociológico |
|||||||||||||
Técnico-científico |
|||||||||||||
Jurídico |
Tratados internacionais |
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Proteção do receptor |
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Responsabilidade civil profissionais e instituições |
|||||||||||||
Científico-sociológico |
|||||||||||||
Comparativo |
Fonte: os autores
Depois que o autor da ação e os amici curiae que atuaram no feito manifestaram seus argumentos, os Ministros e Ministras exararam os votos. Nos tópicos seguintes, serão abordadas as razões fáticas e jurídicas que ensejaram a decisão final, realizando-se a categorização dos argumentos apresentados por cada um dos Ministros e Ministras em seus votos em correlação com os argumentos trazidos pelo autor da ação e pelos amici curiae, consoante categorização exposta na Tabela 1 acima.
3 Razões fáticas e jurídicas da decisão final
Os argumentos utilizados pelos Ministros e Ministras foram mais variados do que os apresentados pelo autor da ação e amici curiae. Ressalta-se que não foi possível identificar os argumentos utilizados nos votos do Ministro Dias Toffoli e da Ministra Cármen Lúcia, pois não constam no Acórdão de julgamento da ADI n. 5.543, bem como não se logrou êxito em localizar na página do YouTube do STF a Sessão de Julgamento na qual proferiram seus votos.
O Ministro Edson Fachin, relator da ADI n. 5.543, utilizou como razão de decidir argumentos das categorias sociojurídico, prático-moral e jurídico. Ao final, votou pela procedência da ADI para declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados, pois concluiu que eles ofendem a dignidade da pessoa humana (autonomia e reconhecimento), uma vez que impedem as pessoas abrangidas de serem como são (art. 1º, III, CF), os direitos da personalidade à luz da CF, o direito fundamental à igualdade (art. 5º caput, CF), a construção de uma sociedade livre e solidária (art. 3º, I, CF) e os tratados internacionais (BRASIL, 2020; SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017b).
O Ministro Alexandre de Moraes utilizou em seu voto argumentos das categorias sociojurídico e científico-sociológico. Concluiu que as previsões normativas impugnadas não pretendem discriminar a orientação sexual de HSHs, conforme indica a inicial, mas intentam evitar maiores riscos de contaminação aos receptores do sangue doado, a partir de critérios técnicos. Entende ser possível uma interpretação mais razoável dos dispositivos impugnados, a partir do art. 199, § 4º, da CF. Propôs que nas hipóteses regulamentadas pelos artigos 64, IV, da Portaria 158/2016 do MS, e 25, XXX, “d”, da Resolução RDC 34/2014 da ANVISA, o material coletado seja identificado e submetido aos testes sorológicos apenas depois do período de “janela sorológica” ou “janela imunológica”. Cumprindo essa diretriz, o doador HSH pode exercer seu direito de doar sangue, o receptor terá acesso ao sangue de melhor qualidade possível e os responsáveis pela área da saúde cumprirão regras que minimizam o risco de transmissão de doenças pela transfusão sanguínea, afastando eventual responsabilização profissional e judicial.
Votou, portanto, pelo julgamento parcialmente procedente a ADI, para declarar a inconstitucionalidade do ar. 64, inciso IV, da Portaria n. 158/2016 do MS, e aplicar o instituto da interpretação conforme a Constituição, com redução de texto, quanto à alínea “d” do inciso XXX do art. 25 da Resolução da Diretoria Colegiada 34/2014, da ANVISA, para excluir a expressão “e os candidatos nestas condições devem ser considerados inaptos temporariamente por um período de 12 (doze) meses após a prática sexual de risco”, entendendo que o material coletado seja devidamente identificado e submetido aos testes sorológicos somente depois do período de “janela imunológica”, a ser definido pelos órgãos competentes (BRASIL, 2020, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017c).
O Ministro Luís Roberto Barroso acompanhou o voto do relator e utilizou na fundamentação do seu voto argumentos das categorias sociojurídico e histórico-sociológico. Ao final, votou pela procedência da ação, pois considera os atos normativos inconstitucionais por importarem em restrição discriminatória desproporcional a um grupo estigmatizado, registrando a possibilidade de normatização de mecanismos de prevenção não discriminatórios pelos órgãos de saúde referente à janela imunológica (BRASIL, 2020; SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017d).
A Ministra Rosa Weber também acompanhou o relator e votou pela procedência da ADI. Apoiou seu voto em argumentos vinculados ao aspecto sociojurídico (BRASIL, 2020; SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017d).
O Ministro Luiz Fux acompanhou o voto do Ministro relator e se manifestou pela inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados. Para fundamentar seu voto utilizou argumentos das categorias sociojurídico e técnico-científico (BRASIL, 2020; SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017d).
O Ministro Gilmar Mendes igualmente acompanhou o voto do relator e votou pela inconstitucionalidade material dos atos impugnados, por violarem o objetivo constitucional de promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Em seu voto apresentou argumentos das categorias jurídico, comparativo, técnico-científico e sociojurídico (BRASIL, 2020).
O Ministro Marco Aurélio divergiu do relator e votou pela improcedência do pedido formulado na ADI. Em seu voto apresentou argumentos das categorias jurídico e técnico-científico (BRASIL, 2020).
O acórdão que reúne todos os votos não registra o nome do Ministro que proferiu o último voto que lá consta (BRASIL, 2020). Contudo, da leitura da Certidão de Julgamento (eDOC 288) verifica-se que, além do Ministro Marco Aurélio, os Ministros Ricardo Lewandowski e Celso de Mello votaram pela improcedência dos pedidos iniciais.
Da Certidão de Julgamento (eDOC 288) (BRASIL, 2020) extrai-se:
O Tribunal, por maioria, julgou procedente o pedido formulado na ação direta para declarar a inconstitucionalidade do art. 64, IV, da Portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde, e do art. 25, XXX, “d”, da Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e, parcialmente, o Ministro Alexandre de Moraes. Plenário, Sessão Virtual de 1.5.2020 a 8.5.2020.
Observa-se que não se logrou êxito em localizar a sessão de julgamento virtual de 1/5/2020 a 8/5/2020 na página oficial do YouTube do Supremo Tribunal Federal6. Outrossim, em contato com o órgão, obteve-se a informação de que o ato não foi gravado7.
Tendo em vista que o voto proferido julga improcedente a ação, por exclusão, verifica-se que somente pode ter sido proferido pelo Ministro Ricardo Lewandowski ou pelo Ministro Celso de Mello. No entanto, não é possível apurar com certeza qual entre os dois Ministros o proferiu. A despeito disso, o voto enfatiza argumentos da categoria técnico-científico e vota pela improcedência do pedido inicial.
Ao analisar o contido na Certidão de Julgamento (eDOC 288) (BRASIL, 2020), por exclusão, percebe-se que o Ministro Dias Toffoli votou pela procedência da ação. Contudo, o inteiro teor do voto não integra o Acórdão. Além disso, conforme justificado acima, não se logrou êxito em localizar a sessão de julgamento virtual de 1.5.2020 a 8.5.2020 na página oficial do YouTube do Supremo Tribunal Federal. Outrossim, em contato com o Órgão, obteve-se a informação de que o ato não foi gravado.
Tal qual destacado acima, verifica-se, por exclusão, que a Ministra Cármen Lúcia votou pela procedência da ação. Contudo, o inteiro teor do voto não consta no acórdão. Além disso, não se logrou êxito em localizar a sessão de julgamento virtual de 1/5/2020 a 8/5/2020 na página oficial do YouTube do Supremo Tribunal Federal. Outrossim, em contato com o órgão, obteve-se a informação de que o ato não foi gravado.
As circunstâncias descritas apontam uma limitação material do trabalho que não se consegue suprir utilizando métodos ou técnicas auxiliares de pesquisa. Apesar dessa limitação, os elementos colhidos apresentam robustez suficiente para alcançar o objetivo final da pesquisa e formar a resposta ao problema de pesquisa proposto.
Identificada a composição dos votos dos Ministros e Ministras do Supremo Tribunal Federal dentro das possibilidades materiais da pesquisa, no tópico seguinte se abordará a tese firmada na decisão e como se distribuíram os votos dos Ministros e Ministras nos argumentos categorizados pela Tabela 1.
4 A tese firmada na decisão final
A Tabela 3 abaixo mostra a distribuição de argumentos nos votos dos Ministros e Ministras. Entre os Ministros e Ministras que votaram pela procedência da ADI n. 5.543, verifica-se que se sobressaíram os argumentos de ordem sociojurídica, que apontam a existência de discriminação na previsão de grupo de risco em detrimento de conduta de risco. Os argumentos de natureza prático-moral, que trata da importância da doação de sangue para a saúde pública, e histórico-sociológica, que refuta as justificativas utilizadas pelos órgãos governamentais para embasar a restrição de doação de sangue por HSHs, especialmente vinculados à incidência maior de contaminação por DST entre homens homossexuais e à existência de normas proibitivas semelhantes à brasileira em diversos países, apareceram em menor incidência nos votos dos Ministros e Ministras que foram favoráveis à procedência da ação.
Já os decanos que votaram pela improcedência da ADI vincularam-se aos argumentos de ordem técnico-científica, e jurídica, que reúnem o período da janela imunológica e a pretensão da norma brasileira de proteger o receptor do sangue doado em virtude da janela imunológica, bem como a possibilidade de responsabilização jurídica dos profissionais e instituições de saúde.
Tabela 3 – Categorias de argumentos utilizados nos votos dos Ministros e Ministras na ADI n. 5.543
Edson Fachin |
Alexandre de Moraes |
Luís Roberto Barroso |
Rosa Weber |
Luiz Fux |
Gilmar Mendes |
Marco Aurélio |
Celso de Mello ou Ricardo Lewandowski |
Dias Toffoli |
Cármen Lúcia |
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Prático-moral |
- |
- |
|||||||||
Sociojurídico |
|
- |
- |
||||||||
Histórico-sociológico |
- |
- |
|||||||||
Técnico-científico |
- |
- |
|||||||||
Jurí dico |
Tratados internacionais |
- |
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Proteção do receptor |
- |
||||||||||
Responsabilidade civil profissionais e instituições |
- |
- |
|||||||||
Científico-sociológico |
- |
- |
|||||||||
Comparativo |
- |
- |
Fonte: os autores.
Ao final, em maio de 2020, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.543 foi julgada procedente, por maioria de votos, declarando-se a inconstitucionalidade do art. 64, IV, da Portaria n. 158/2016 do Ministério da Saúde, e do art. 25, XXX, “d”, da Resolução da Diretoria Colegiada - RDC n. 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Alexandre de Moraes, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello, que julgavam improcedente o pedido.
5 Crítica
O Supremo Tribunal Federal exerce um papel importante na interpretação e aplicação da Constituição Federal brasileira. A Corte utiliza mecanismos variados que conferem autoridade às suas decisões, as quais têm um forte poder vinculante dos demais tribunais, juízes, órgãos da administração pública e cidadãos de um modo geral.
Tamanha força vinculante e de autoridade não pode vir desacompanhada de responsabilidades. Suas decisões não se restringem a uma mera análise de adequação de constitucionalidade. As decisões de constitucionalidade oriundas do STF interferem no cenário social, político e econômico do país. Também por isso os julgados não podem refletir as convicções morais, filosóficas, religiosas ou quaisquer outras dos julgadores, mas devem se preocupar com a perspectiva que melhor se ajusta aos anseios da sociedade.
Tramontina e Parreira (2014) destacam que as deliberações do Supremo Tribunal Federal, enquanto uma instituição que integra a estrutura básica da sociedade, devem se basear em critérios rigorosamente estabelecidos, orientandos, portanto, pela razão pública8, a fim de resguardar os princípios da justiça de influências ideológico-partidárias.
Uma das dificuldades de justificação de exercício do poder enfrentadas por cortes constitucionais, como é o caso do Supremo Tribunal Federal brasileiro, é o argumento de falta de legitimidade política ou legitimidade social pela ausência de representação, uma vez que o acesso aos cargos públicos não se dá por voto popular. Contudo, Alexy (2007) desenvolve a tese de que a representação argumentativa é característica da jurisdição constitucional e supre a (falta de) representação eleitoral.
Consoante Alexy (2007, p. 41-54), no âmbito da jurisdição constitucional, a representação se identifica com a argumentação. O exercício argumentativo é característico da jurisdição constitucional e, também por isso, ela se caracteriza como o local exemplar de exercício da razão pública. Na jurisdição constitucional pode-se identificar o papel da razão pública no modelo argumentativo racional. Por isso é utilizada como parâmetro para a análise aqui proposta.
Quando Alexy (2007, p. 53-54) destaca que a racionalidade argumentativa da jurisdição constitucional atua em nome do povo e contra seus representantes políticos, está trazendo uma perspectiva aproximada daquela que Rawls (2005, p. 233-234) expressa em “Political Liberalism”, quando indica que o tribunal constitucional atua para evitar que a lei seja corroída por maiorias transitórias ou que corresponda a interesses bem posicionados.
A jurisdição constitucional argumentativa pode desempenhar o papel de trazer ao debate público reflexões que não encontram espaço aberto para discussão na arena política, seja porque não satisfazem interesses bem posicionados, seja porque não têm repercussão positiva no próprio processo eleitoral.
Neste tópico, dividido em três partes, serão abordados o papel da razão pública em decisões proferidas por cortes constitucionais, a justificação democrática da atuação da sociedade em fóruns públicos de deliberação e, em seguida, far-se-á uma análise da construção do raciocínio dos votos proferidos na ADI n. 5.543 à luz da razão pública, com inspiração na proposta rawlsiana, a fim de identificar se e como a participação da sociedade por meio da atuação de amici curiae contribuiu para construir a razão de decidir.
5.1 O papel da razão pública em decisões de cortes constitucionais
Cortes constitucionais modernas, em regra, exercem a parcela do Poder do Estado destinada a revisar atos dos Poderes Legislativo e Executivo, que tradicionalmente têm liberdade decisória forte sobre os rumos da sociedade. Partindo da premissa de que as cortes constitucionais têm poder de avaliar as leis e atos normativos adotados por agentes com um poder de alteração legislativa forte, é prudente que os tribunais considerem a justificabilidade pública das motivações e razões oferecidas para revisar atos e medidas contestadas.
Um modelo tradicional de justificação do poder deriva da representação eleitoral. Contudo, conforme destacado acima, esta não é única forma de justificar o exercício do poder. Em casos de deliberações de cortes constitucionais a representação deriva da argumentação (ALEXY, 2007).
No entanto, a simples argumentação, sem estar conectada com um critério específico, não é capaz de produzir a justificação necessária para a decisão que possui um grau de interferência elevado na realidade social. Uma das formas de pensar a justificação do poder, nesse caso, decorre da razão pública. A proposta de razão pública pensada por Rawls é, assim, uma forma de justificar o poder nesse sentido, pois aloca a razão pública como a única que pode emanar do decisor em deliberações no fórum público.
O conceito de razão pública integrante da teoria da justiça como equidade de John Rawls busca a justificabilidade das motivações e razões oferecidas no processo de tomada da decisão pública. É um apelo moral à argumentação dos motivos que conduzem às decisões no âmbito público, para que se justifiquem aos outros, na busca de um consenso razoável. Parte do pressuposto de que os indivíduos que agem na sua capacidade pública têm um compromisso de tomar decisões com base em razões que cidadãos que não necessariamente compartilham das mesmas visões filosóficas, religiosas e morais que o tomador da decisão possam razoavelmente aceitar. É uma forma de respeito aos outros como agentes racionais, razoáveis e membros livres e iguais de um sistema social cooperativo e justo (RAWLS, 1999; 2005).
Vista sob a perspectiva da filosofia normativa, a razão pública é uma justificação moral dirigida aos outros do que está sendo decidido no âmbito público, na busca de um consenso razoável (DE VITA, 2021). Ao propor a argumentação com base em uma razão pública, Rawls está fazendo um apelo moral à argumentação dos motivos que conduzem as decisões, para que se justifiquem aos outros; não está criando um modelo de como efetivamente deveriam ser os debates e as deliberações.
Nesse sentido, a motivação do agente é relevante para tornar a razão justificável aos outros. Schwartzman (2020, p. 45-65) aborda essa questão relacionada às leis, refutando a objeção de admissibilidade, que sustenta que a motivação das leis e das decisões políticas está fora do âmbito da decisão judicial. O autor defende que a motivação é relevante para a justificação pública – como aquela dirigida aos outros – das decisões políticas informadas.
Essa perspectiva de que as motivações podem ser relevantes para saber se os atos são permitidos, estrutura a razão pública na ideia de que, quando agem na sua capacidade pública, seja como cidadãos ou funcionários públicos, os indivíduos têm uma responsabilidade, um compromisso, de tomar decisões com base em razões que os demais cidadãos que não necessariamente compartilham das mesmas visões filosóficas, religiosas e morais de mundo do decisor possam razoavelmente aceitar. Essa exigência de uma justificativa pública demanda respeito aos outros como agentes racionais e razoáveis e como membros livres e iguais de um sistema justo de cooperação social. Disso se extrai o exercício do poder (ou parte dele) com base na razão pública e no cumprimento do dever de civilidade.
O exercício da razão pública, em caso de tribunais constitucionais, dá-se por meio da justificação pública dos motivos que conduzem às decisões, de onde se extrai a razão pública. Rawls faz uma distinção entre o poder constituinte ordinário e constitucional, no qual revela o papel central e contramajoritário da tomada de decisão por cortes constitucionais. Segundo Rawls (2005, p. 233-234), uma democracia constitucional caracteriza-se como dualista, na medida em que distingue o poder constituinte do poder ordinário e a constituição da lei ordinária. Quando cortes constitucionais decidem, buscam conciliar as leis ordinárias com a constituição. Por isso, ao exercer seu poder para proteger a constituição, o tribunal supremo age de modo a “[...] evitar que a lei seja erodida pela legislação de maiorias transitórias ou, o que é mais provável, que corresponda a interesses estreitos, organizados e muito bem posicionados para fazer valer seus pontos de vista” (RAWLS, 2005, p. 233-234).
Dizer que os agentes públicos devem agir com base em uma razão pública, como aquela dirigida aos outros, significa que, ao elaborar o raciocínio de suas decisões, o tribunal deve argumentar com base nos valores políticos que formam a razão pública, de modo a expressar a melhor interpretação da constituição política elaborada sob a base dos princípios fundamentais de justiça, coadunando-os com a realidade sociocultural do momento histórico a que se aplica. Isso significa que os magistrados não devem fundamentar as decisões com base em suas convicções pessoais, filosóficas, morais, religiosas, ou seja, em suas doutrinas particulares abrangentes, sob pena de deturpar a essência do Estado Democrático e de Direitos (RAWLS, 2005, p. 236).
Nesse sentido, Rawls (2005, p. 236) assevera que o papel de um tribunal supremo é o de fazer valer a razão pública, no sentido de torná-la continuamente apropriada, servindo de modelo da razão pública. Assim, as decisões dos magistrados não podem dispor de nenhuma outra razão que não seja a razão pública, de índole política. Para além desses casos, “[...] devem decidir de acordo com o que pensam que os casos precedentes, as práticas e tradições constitucionais e os textos históricos constitucionalmente importantes exigem.” (RAWLS, 2005, p. 236).
Ao exercer o papel de fundamentar suas decisões com base em razões políticas, o tribunal desempenha um importante papel educativo acerca da razão pública, construindo o seu conteúdo e estabilizando os princípios de justiça na dinâmica social do seu tempo e local.
Rawls (2005, p. 225) aponta, ainda, que a razão pública depende de uma base pública de justificação. Uma forma de conferir essa base pública de justificação poderia partir da consideração das forças políticas e sociais das doutrinas abrangentes e do consenso sobreposto da sociedade, respeitando seu ideal histórico e cultural. Para tal desiderato, a realização de fóruns públicos com a sociedade civil pode ser um meio eficiente para formar a fundamentação de suas decisões e, assim, conferir a elas legitimidade social. Neste ponto, a pesquisa avança para além da ideia de razão pública estritamente vinculada à proposta rawlsiana, para compor a formação da razão pública com a participação ativa da sociedade.
O que um tribunal constitucional faz é justificar uma interpretação que se deve dar à norma constitucional e o porquê essa interpretação deve prevalecer sobre outras formas de se compreender a questão. Quando um tribunal decide sobre a interpretação de um direito fundamental, deve fazê-lo sob a égide da razão pública, mesmo que isso represente uma interferência no interesse de maiorias e mesmo que não haja uma concordância absoluta sobre o tema.
Convém lembrar que a busca pelo consenso é um objetivo da justificação moral e não uma característica da deliberação política democrática. De Vita (2021) destaca a ausência de ganho normativo ou analítico em supor que a justificação moral proposta por Rawls possa servir como um modelo para deliberação política. O peso, se houver, que for atribuído às razões a favor de determinados princípios ou argumentos vai depender da construção feita no âmbito do conflito e da competição democráticos.
O autor ilustra essa situação exemplificando o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal – STF da união homoafetiva como entidade familiar, em decisão de 2011, complementada por uma Resolução do Conselho Nacional de Justiça – CNJ em 2013, que autoriza cartórios a registrarem casamentos de pessoas do mesmo sexo e proíbe a recusa em fazê-lo. Embora o tema tenha sido discutido e decidido judicialmente, a discussão pública sobre a questão não se encerrou, tanto que tramitam no Congresso Nacional pautas promovidas por parlamentares religiosos conservadores que buscam afastar o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como uma entidade familiar (DE VITA, 2021).
Os argumentos utilizados nessas proposições religiosas conservadoras baseiam-se em perspectiva sectária relacionada aos valores do cristianismo conservador em relação à família: uma doutrina particular religiosa. Partindo da suposição de que os argumentos que defendem a extensão dos mesmos direitos dos casamentos heterossexuais a uniões homoafetivas utilizam critérios de justificação com base na razão pública, argumenta De Vita (2021), seus adeptos terão que se empenhar em persuadir uma maioria de cidadãos e de seus representantes de que é melhor viver sob instituições que se fundam em uma moralidade política justificável, do que viver sob instituições que somente são aceitáveis do ponto de vista sectário de doutrinas abrangentes específicas.
A decisão sobre a questão vai decorrer, portanto, do voto dos cidadãos e de decisões majoritárias tomadas por seus representantes eleitos. Embora se espere que as decisões sobre as questões sociais importantes sejam tomadas com suporte em uma razão pública, as discussões e deliberações na política pública democrática debatem também com diversos aspectos de doutrinas particulares.
Na perspectiva que se busca com a pesquisa, a justificação pública é, assim, voltada à manifestação dos cidadãos, por meio da sociedade civil, acerca das razões que envolvem decisões de questões políticas públicas e que confere legitimidade à ideia da razão pública. Essa construção é coerente com a concepção de John Rawls de uma ideia política de justiça, pois a legitimidade da razão pública formada nas decisões tomadas pelas instituições públicas, nesse cenário, provém de deliberações democráticas com doutrinas abrangentes que compõem a cultura de fundo da sociedade.
No tópico seguinte, aborda-se brevemente a justificação democrática da atuação da sociedade em fóruns públicos de deliberação. Alega-se que um mecanismo para formar a base pública de justificação da razão pública na jurisdição constitucional decorre da atuação de amici curiae em processos que questionam a constitucionalidade de leis e de atos normativos.
5.2 Justificação democrática da atuação da sociedade em fóruns públicos de deliberação
Rawls (2005, p. 225) refere que a razão pública depende de uma base pública de justificação. Assim, as decisões dos tribunais constitucionais devem considerar as forças políticas e sociais capazes de formar um consenso sobreposto entre as perspectivas variadas de doutrinas abrangentes existentes na sociedade, respeitando o ideal social, histórico e cultural.
Uma das perspectivas contidas nesta análise concentra-se na questão: de onde o tribunal constitucional pode extrair o suporte histórico-cultural necessário para formar a razão pública e torná-la ajustada aos anseios sociais? Para tal desiderato, um caminho viável seria recorrer à realização de debates em fóruns públicos com a sociedade civil para formar a fundamentação de suas decisões e, assim, conferir a elas legitimidade social.
Nesse ponto evidencia-se a importância da intervenção de amici curiae no processo constitucional, como uma forma de integrar o raciocínio da decisão judicial. No direito brasileiro, a justificação pública em instituições da sociedade civil pode ser encontrada pela aplicação do instituto do amicus curiae, incluído expressamente no exercício da jurisdição pelo artigo 138 do Código de Processo Civil, como uma modalidade de intervenção de terceiros no processo judicial (BRASIL, 2015).
O instituto representa uma forma de construir a razão pública pelos tribunais por meio de fóruns públicos de debate com instituições da sociedade civil que comportam doutrinas abrangentes capazes de fornecer uma base de justificação social que legitima a razão pública das decisões judiciais.
No Supremo Tribunal Federal, tribunal que, na jurisdição brasileira, tem entre suas funções a de julgar a conformação constitucional da legislação e dos atos normativos federais, é crescente o auxílio de amicus curiae, por meio de audiências públicas que promovem o debate entre as instituições da sociedade civil para decidir casos de avaliação da conformidade de leis ou atos normativos com a Constituição Federal ou de qual a interpretação adequada desta.
A intervenção de terceiros na modalidade de amicus curiae pode representar um modo de coadunar as decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal com os interesses e perspectivas dos cidadãos, legitimando social e culturalmente a razão pública do tribunal e fazendo com que corresponda efetivamente aos interesses da sociedade e à promoção do bem comum, entendido como o bem de todas as parcelas representativas.
Na perspectiva acima descrita, a razão pública integra o ideal de cidadania e de democracia como deliberação sobre a justiça e sobre o bem comum. É, assim, um modo de discurso em uma democracia deliberativa e é também uma de suas características mais essenciais, traduzindo-se no fórum principal no qual se realiza o raciocínio público.
Para compor a ideia de democracia deliberativa acima descrita, é importante, antes, esclarecer e diferenciar alguns conceitos importantes para esta composição, como Estado, Estado de Direito, Democracia e deliberação.
O Estado como unidade política e com poder soberano surgiu no continente europeu nos séculos XVI e XVII como uma nova forma de governo político, no qual os governantes uniram os poderes dispersos e condensaram-nos em um poder público abrangente, que incluía o direito de fazer leis sem qualquer limitação imposta por uma lei derivada de um nível divino superior. (GRIMM, 2016, p. 4-5).
O Estado não se fundou de modo uniforme em todos os locais. Costa e Zolo (2006, p. 11-26) estudam quatro experiências que foram significativas para construção do que hoje se entende por Estado de Direito, identificando as diferenças existentes entre elas: o Rechtsstaat, da Alemanha, Rule of law inglês, Rule of law norte americano e L’État de droit, da França,
Buscando conferir um quadro coerente e unitário às experiências que elenca, a fim de fornecer uma identidade conceitual mais precisa ao Estado de Direito, Costa e Zolo (2006, p. 31-32) referem que o Estado de Direito é uma versão do Estado moderno europeu, na qual o ordenamento jurídico tem a atribuição de tutelar os direitos subjetivos, destoando da tendência expansiva e arbitrária do poder político. Costa e Zolo (2006) traduzem essas características em dois princípios fundamentais: da difusão do poder e da diferenciação do poder.
Enquanto o princípio da difusão do poder inclina-se a limitar os poderes do Estado para dilatar as liberdades individuais, o princípio da diferenciação do poder distingue o sistema político jurídico de outros subsistemas, como o ético-religioso e o econômico, e atua como um critério de delimitação, coordenação e regulamentação jurídica das distintas funções estatais.
A maior relevância que o Estado de Direito construiu foi a garantia das liberdades fundamentais do indivíduo por meio de uma organização do poder político, traduzido na invenção do direito subjetivo como expressão jurídica da liberdade individual. O Estado de Direito levou ao centro da vida política a necessidade de ordem, de segurança, a reivindicação de liberdades civis e políticas, configurando-se como uma condição de racionalidade, modernidade e progresso na atualidade (COSTA; ZOLO, 2006, p. 51).
No escopo de solidificar o consenso social sobre as liberdades fundamentais dos indivíduos, surgiu o movimento de constitucionalização, impulsionado pelas grandes revoluções do século XVIII (americana e francesa). Como o poder não se legitimava mais por uma revelação divina, a legitimação do governo de pessoas por outras pessoas migrou para o estabelecimento de um acordo por todos. Assim, o princípio de legitimação do governo político e do poder tornou-se o consentimento por parte dos governados. Este acordo de consentimento precisava se tornar permanente e adquirir legitimidade para obrigar as gerações futuras, o que foi solucionado pela hierarquização constitucional-legal (GRIMM, 2016, p. 8-12).
A partir de uma perspectiva constitucional liberal, o Estado deve justificar adequadamente o exercício da força e do poder coercitivo que caracterizam sua autoridade. Em razão disso, é necessário que se forneçam razões justificáveis aos outros, suficientes para que o Estado exerça a autoridade. Faz-se isso por meio da razão pública, com justificativas destinadas a garantir que o uso do poder político seja legítimo a partir de todos os pontos de vista razoáveis.
Otter (2020, p. 66-89) argumenta que o exercício da autoridade do Estado é limitado pela Constituição, que fornece razões adequadas para cada ação. É a Constituição que dá ou não permissão para que os agentes do poder façam o que querem fazer. Se agem sem encontrar as bases adequadas na Constituição, estão agindo inconstitucionalmente. Desse modo, o próprio requisito de constitucionalidade das leis e atos normativos é em si mesmo uma espécie de exigência de razão pública, que exclui a razão não pública dos processos legislativos e judiciais. Ela é projetada para limitar agentes que têm um poder político, para que usem apenas uma certa classe de razões quando se trata da justificativa de leis e atos públicos.
Aliado a isso, não se pode olvidar que, na perspectiva analisada neste trabalho, a Constituição em um Estado Democrático traduz a ideia de fornecer uma base para acordos livremente aceitáveis e para desacordos políticos intratáveis entre cidadãos. Para atender a essas condições, Rawls (1999) explica que poderia ser suficiente a convergência dos cidadãos razoáveis do conjunto de significados centrais para uma lista de garantias constitucionais essenciais, bem como um judiciário constitucional poderia ser utilizado para compreender e compartilhar esses significados centrais práticos convergentes.
Acontece que tratar o desacordo razoável não é tarefa fácil. Nesse sentido, Michelman (2020, p. 90-114) interpreta Rawls para propor que qualquer Constituição figure para os cidadãos como um acessório e um projeto. Nesse sentido, os cidadãos razoáveis aceitam a escolha de incluir uma declaração de direitos constitucionais, desde que possam considerá-la suportável por um equilíbrio razoável de valores políticos. Ao aceitar que se estabeleça um conjunto de significados centrais para tais garantias, o autor destaca que lê Rawls para dar aos cidadãos uma licença para protestar contra atribuições judiciais de significados centrais que admitem estar dentro da razoabilidade, mas que não aceitam como corretos ou os mais razoáveis. Com isso, identifica uma necessidade percebida por Rawls de que qualquer Constituição que suporte uma carga de justificativa figure simultaneamente para os cidadãos como um acessório e um projeto. Nessa perspectiva, a Constituição é um projeto político em constante discussão. Suas garantias respeitam os resultados políticos e um processo dialético permanente de ajustamento de suas garantias.
Contudo, a constitucionalização não explica, por si só, toda a complexidade da organização política da sociedade atual e com a qual se trabalha neste texto. Além de um Estado, de Direito e Constitucional, outro elemento importante para a análise que aqui se faz é o conceito de democracia.
Estado de Direito e democracia não são sinônimos. Costa e Zolo (2006, p. 52-53) destacam que o Estado de Direito não exige a presença de aspectos imprescindíveis à concepção democrática do Estado, como a soberania popular, representatividade, pluralismo e a participação dos cidadãos nas decisões coletivas. Para os autores (2006, p. 53) o Estado de Direito pode estar presente em sociedades despolitizadas.
Por isso, a ideia subjacente a um Estado Constitucional e Democrático moderno necessariamente está vinculada ao fornecimento de condições para que haja um debate público no qual se possa discutir e decidir sobre os rumos da sociedade. Cidadãos livres e iguais são peças-chave nessa perspectiva para a formação democrática da opinião e da vontade.
Assim, de um modo geral, em um Estado Democrático, os poderes de governo do Estado que estabelecem leis e cuidam da sua aplicação originam-se no povo e permanecem sob seu comando. Em uma Democracia Constitucional, quem participa do exercício cotidiano dos poderes do Estado o faz sob a restrição da fidelidade ao conjunto de termos previamente estabelecidos e publicamente reconhecidos de suas direções e controle.
Conforme o debate proposto nesta pesquisa, ouvir as pessoas que discordam ou afirmam uma faixa central de aplicação de um direito constitucionalmente previsto é importante para manter o texto constitucional adequado com a realidade social.
Rawls aborda especificamente a questão da democracia quando trata da razão pública em 1997, no trabalho “The Idea of Public Reason Revisited”. Nessa abordagem, Rawls (2005, p. 447-450) indica partir de uma concepção deliberativa de democracia. Na perspectiva do liberalismo político, uma democracia deliberativa possui três elementos essenciais: uma ideia de razão pública, uma estrutura de instituições democráticas constitucionais que especifique a moldura do legislativo e o conhecimento e desejo dos cidadãos de seguir a razão pública e de concretizar seu ideal na conduta política.
A inclusão da razão pública como elemento da democracia deliberativa é importante na abordagem deste trabalho e possui dois vieses centrais que merecem atenção. Em primeiro lugar, a razão pública pressupõe que as posições políticas fundamentais razoáveis sejam adotadas mediante justificação aos outros em termos políticos, cumprindo um dever de civilidade. A deliberação que compõe o cerne de uma democracia é essencial nesse aspecto. Isso ocorre na medida em que os cidadãos trocam pontos de vista enquanto deliberam e debatem as razões que sustentam suas questões políticas fundamentais. Em uma perspectiva de razão pública, como seres razoáveis e racionais, estão dispostos a refletir e revisar suas próprias opiniões políticas por meio da discussão com outros cidadãos. Isso se deve ao fato de que suas opiniões não são movidas por interesses privados ou não políticos, mas por uma razão pública razoável e justificada aos outros em termos políticos.
Em segundo lugar, a razão pública limita as razões que os cidadãos podem oferecer para apoiar sua posição política. Essas devem considerar as opiniões dos demais cidadãos como iguais. Logo, não são quaisquer razões que podem servir de suporte à deliberação democrática, mas tão somente a razão pública, aquela dirigida ao outro.
A própria abertura ao fórum público para deliberação com representantes de categorias/grupos da sociedade é um elemento importante para formar a razão pública. Nesse sentido, as reivindicações de grupos ou de interesses que são resultado das mudanças sociais ao longo do tempo ganham uma voz adequada com a razão pública que é ajustada a uma ideia de democracia deliberativa.
É importante ressaltar que essa perspectiva pressupõe que quando um cidadão participa de fato da razão pública, expressa e delibera com base naquilo que entende ser sinceramente a concepção mais razoável em termos políticos. É, por isso, razoável esperar que outros cidadãos livres e iguais também possam razoavelmente concordar. Note-se que essa ideia não impede que o cidadão tenha suas doutrinas abrangentes religiosas, morais e/ou filosóficas variadas. No entanto, devem ser oferecidas razões adequadamente públicas (políticas) para apoiar os princípios e as políticas sustentadas.
Esses termos reforçam a ideia dos cidadãos como livres e iguais, racionais e razoáveis, dispostos a cooperar mutuamente, e pode fortalecer uma abordagem da democracia deliberativa, na qual o debate dos elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica está aberto ao ingresso de variantes novas que pulsam na sociedade.
Para isso, o debate em fóruns públicos com a sociedade é importante para as bases da democracia, no intuito de alcançar a razão pública efetiva, servindo como um intermediador das relações tensionais entre a sociedade e o Estado.
Essas relações tensionais em uma perspectiva democrática são resolvidas pelo alcance de um consenso sobreposto entre as diversas formas de bem. O consenso sobreposto é resultado de uma razão pública justificada e bem-informada. Desse modo, um Estado Democrático tem ínsito entre seus deveres a garantia da pluralidade do debate
No caso do Tribunal Constitucional o debate é parte integrante da própria lógica da formação do raciocínio judicial. Contudo, quanto mais plural for o debate, maior será a capacidade de a decisão alcançar visões diferentes e conflitantes de bem e de vida boa.
No tópico seguinte, analisa-se a decisão proferida na ADI n. 5.543 à luz da razão pública. Para alcançar o que se pretende com a pesquisa, faz-se esta análise com suporte na contribuição dos argumentos levados ao debate em fórum público pelas instituições que compõem a cultura de fundo da sociedade e atuaram como amici curiae para formar a razão pública do Supremo Tribunal Federal.
5.3 A decisão proferida na ADI n. 5543 à luz da razão pública
Tendo em vista que ao mesmo tempo em que forma, também dá publicidade à razão pública, o Tribunal se torna um local educativo acerca da razão pública. Ao convidar os cidadãos, representados pelas instituições da sociedade civil, para participarem do debate em fóruns públicos acerca da melhor interpretação da constituição política, o Tribunal Supremo adquire uma base pública de justificação que legitima suas escolhas políticas. Esse mecanismo é capaz de formar um consenso sobreposto entre doutrinas abrangentes.
Partindo dos pressupostos da justiça como equidade, essa perspectiva orienta que as decisões oriundas do STF refletem uma razão pública porque são construídas com base em argumentos que são dirigidos ao outro. Ao manusear os argumentos utilizados pelos Ministros e Ministras em seus votos no caso paradigmático selecionado, nota-se que as justificativas utilizadas como razão de decidir guardam o caráter público, de argumentação dirigida ao outro em termos públicos. Além disso, a atuação dos amici curiae que intervieram no feito teve uma importância significativa na construção do raciocínio em termos públicos.
Na ADI n. 5.543, a argumentação dos Ministros e Ministras que votaram pela inconstitucionalidade dos dispositivos normativos questionados, girou em torno de argumentos de natureza sociojurídica, sob dois aspectos principais. Primeiro, o argumento que os atos normativos promovem discriminação quando elegem grupo de risco ao invés de comportamento de risco como parâmetro para estabelecer as situações nas quais é vedada a doação de sangue. Este é, sem dúvida, o argumento central do debate nesta ação. O segundo argumento a sobressair-se está relacionado à origem histórica da proibição discriminatória e à não justificabilidade das diretrizes adotadas pelo MS e pela ANVISA na realidade atual, diante da evolução dos estudos sobre o tema e esclarecimento das formas de contágio.
Além disso, o argumento relacionado à evolução na qualidade e precisão dos testes sorológicos realizados no sangue doado resultou na exclusão da restrição a doadores HSHs em diversos países nos quais antes era proibida a doação de sangue, sob a justificativa de que compunham um grupo de risco.
Esses argumentos centrais guardam relação com a razão pública, pois são justificativas dirigidas aos outros, no intento de buscar um consenso entre as diversas doutrinas professadas sobre o tema.
Mesmo nas manifestações favoráveis à constitucionalidade das normatizações, os argumentos utilizados para fundamentar os votos centraram-se em duas linhas centrais. Primeiro, de natureza técnico-científica, justificado em dados de pesquisas que apontam uma incidência maior de contágio por DSTs entre HSHs. Segundo, de ordem jurídica, fundado na escolha feita pelos órgãos administrativos com suporte na baliza legal para os procedimentos hemoterápicos de proteger o receptor e promover a segurança elevada do sangue doado.
É importante notar que independentemente de os votos direcionarem-se à constitucionalidade ou à inconstitucionalidade dos dispositivos normativos questionados, os argumentos utilizados pelos julgadores afastam-se de doutrinas abrangentes professadas na cultura de fundo da sociedade civil. Não se fundam, assim, em visões parciais do bem, seja com base em doutrinas religiosas, morais ou filosóficas. Centram-se, pois, em formas de argumentação que não expressam doutrinas abrangentes professadas na cultura de fundo ou pelos próprios julgadores em suas crenças particulares.
Os Ministros e Ministras não utilizaram em seus votos quaisquer argumentos trazidos por amici curiae que tenham raiz direta em doutrinas razoáveis abrangentes, como, por exemplo, a perspectiva religiosa acerca da homoafetividade. Basearam-se em outros argumentos vinculados a dados estatísticos e de ordem jurídica.
Não se desconsidera também que as vivencias individuais, de formação, culturais, o ambiente econômico, social e cultural, a formação acadêmica, relações interpessoais, têm alguma influência na tomada de decisões. No entanto, quando se fala em argumentação em termos de razão pública, as razões utilizadas para alcançar a conclusão não devem se encontrar em uma esfera particular dos julgadores. Elas devem se sobrepor à esfera particular e alcançar o estágio de argumentação dirigida ao outro.
De certo modo, para formar o consenso sobreposto mediante o equilíbrio reflexivo, a pluralidade de ministros e ministras reflete a ideia de promover um debate entre vertentes filosóficas, morais, religiosas, acadêmicas, culturais etc. variadas nos julgamentos. Não deixam de ser representantes de perspectivas da sociedade que têm convicções diversificadas.
Contudo, quando vão decidir no fórum público, não podem argumentar com base na sua perspectiva de bem. Devem buscar argumentos que se sobreponham a isso (que sejam maiores). Esse exercício não garante que uma decisão será acertada, correta ou bem fundamentada. Esta é uma análise diferente da aqui realizada. Argumentar em termos públicos, de modo justificável a doutrinas variadas, garante a existência de uma razão pública na decisão. E, no caso paradigmático analisado, a atuação dos amici curiae que intervieram teve uma influência significativa e positiva para formar a razão pública do STF.
Percebe-se que os argumentos apresentados pelos amici curiae ouvidos no curso da ação, sejam pela constitucionalidade ou não dos atos normativos questionados, foram relevantes para construir a razão pública que fundamenta os votos dos decanos. Tanto é assim que os votos abarcaram em algum momento a totalidade de argumentos apresentados pelos amici curiae.
Dessa feita, nota-se que os amici curiae atuaram significativamente na atividade de interpretação e aplicação constitucional. Trouxeram argumentos que foram efetivamente considerados nos votos dos Ministros e Ministras e tiveram relevância para o resultado das ações analisadas.
Independente de representarem argumentos favoráveis ou contrários à decisão final, a interação e diálogo entre o STF e as entidades que atuaram como amici curiae apresentaram perspectivas, interesses e elementos variados e que possivelmente não chegariam ao fórum de deliberação da Corte Constitucional por outros meios. Esse fluxo mais livre de experiências, vivências, ideias e teorias que os amici curiae trouxeram ao diálogo da Corte Constitucional, tem um poder argumentativo forte e é capaz de migrar ideias para construir argumentos e decisões mais bem estruturadas e legítimas em um Estado Democrático e de Direitos.
A atuação dos amici curiae promoveu um diálogo constitucional efetivo. Perspectivas e ideologias variadas foram ouvidas e consideradas pelos Ministros e Ministras no fórum público de deliberação, de onde se extraíram o cerne da racionalidade de cada um dos votos.
Convém destacar que, em termos de argumentos, os amici curiae ouvidos defenderam sua perspectiva sobre o tema em debate no fórum público de deliberação sem utilizar questões vinculadas às suas visões parciais de bem. Instituições religiosas, por exemplo, não necessariamente levaram ao debate argumentos que tratam a conduta individual como violadora de algum princípio ou valor sectário por eles defendidos.
Esse conjunto de informações levadas com suporte em uma racionalidade ao fórum público de deliberação desempenha um papel importante para formar um consenso sobreposto entre doutrinas abrangentes variadas. Ao passo que se aceita a argumentação em termos de razão pública como compatível com uma doutrina abrange específica, é possível afastar do âmbito específico da doutrina parcial aquilo que não é compatível com o que a doutrina professa.
A distribuição de justiça pelo STF no caso paradigmático selecionado contou, portanto, com a atuação inclusiva da sociedade por meio da atuação de amici curiae. A variedade de entradas de informações oriunda da atuação da sociedade civil nos fóruns públicos de deliberação foi relevante para a construção da racionalidade dos julgados. A razão pública, nesses casos, formou-se com suporte democrático em diversas perspectivas sobre os temas debatidos. Isso contribuiu sobremaneira não somente para formar, mas também para informar a razão pública do Tribunal e alcançar um consenso sobreposto entre doutrinas razoáveis abrangentes que atuam na cultura de fundo da sociedade civil, conciliando em algum aspecto o desacordo razoável presente na sociedade sobre as perspectivas variadas do tema.
Considerações finais
O Poder Judiciário exerce parcela do Poder do Estado. Na atividade judiciária a deliberação e a altercação de ideias desenvolvem-se naturalmente, como consequência da própria atividade judicante. Em razão de tal característica, Rawls assegura que o tribunal constitucional é o local exemplar de desenvolvimento da razão pública.
Ouvir os interesses da sociedade para formar a razão pública do tribunal constitucional confere um aspecto de legitimidade social à razão pública formada no fórum público de deliberação: aproxima os julgadores dos debates travados na cultura de fundo da sociedade. A proposta coloca o cidadão em um papel mais ativo e responsável na tomada de decisões sobre a interpretação que se deve dar à Constituição Federal. Na dinâmica moderna brasileira, o amicus curiae tem se revelado um instrumento capaz de exercer essa atividade.
A intervenção de amicus curiae em processos de jurisdição constitucional permite o acesso da sociedade aos fóruns públicos de deliberação. No entanto, a simples participação da sociedade não é suficiente para ampliar o poder democrático do fórum público. Para tal, é imprescindível que os argumentos trazidos pelas instituições e pessoas ouvidas em fóruns públicos de deliberação sejam considerados na formação da razão pública do Tribunal. Isso significa que a efetividade da atuação da sociedade vai depender da influência que os argumentos lançados pelas instituições exercerão nas deliberações dos Ministros e Ministras.
Diante da necessidade de compreender como os argumentos levados ao Supremo Tribunal Federal pelas instituições de fundo da sociedade na condição de amici curiae são considerados pelos Ministros e Ministras em seus votos e quais influências têm sobre o resultado final da demanda para a distribuição de justiça, utilizou-se como caso paradigmático de análise a ADI n. 5.543, na qual foram ouvidos diversos amici curiae no curso da ação, que trouxeram perspectivas diversas sobre o tema.
No caso paradigmático selecionado, os amici curiae atuaram efetivamente na atividade de interpretação e aplicação constitucional. Diz-se isso porque, independente de representarem argumentos favoráveis ou contrários à decisão final, a interação e diálogo entre o STF e as entidades que atuaram como amici curiae apresentaram perspectivas, interesses e elementos variados e que possivelmente não chegariam ao fórum de deliberação da Corte Constitucional por outros meios.
Argumentos da ADI n. 5.543 categorizados como sociojurídico e histórico-sociológico trazidos pelos amici curiae, relacionados principalmente à discriminação promovida pela eleição de grupo de risco ao invés de comportamento de risco para determinar as situações de vedação à doação de sangue, da impropriedade da justificativa utilizada pelos órgãos governamentais, seja decorrente da origem histórica da proibição e a não justificabilidade das diretrizes discriminatórias na realidade atual, ou diante da evolução na qualidade e precisão dos testes sorológicos na atualidade, foram o fio condutor do raciocínio de Ministros e Ministras que votaram pela inconstitucionalidade dos atos normativos impugnados.
De outra banda, argumentos das categorias jurídico e científico-sociológico trazidos por amici curiae, baseados respectivamente na proteção do receptor do sangue e na garantia de segurança do sangue doado, com suporte na baliza legal para os procedimentos hemoterápicos, e na maior incidência de contágio entre HSHs encontram-se no cerne da argumentação dos Ministros que votaram pela constitucionalidade dos atos normativos questionados.
Nota-se que independentemente de os votos direcionarem-se à constitucionalidade ou à inconstitucionalidade dos dispositivos normativos questionados, os argumentos utilizados pelos julgadores apoiaram-se significativamente nos elementos levados ao fórum público de deliberação pelos amici curiae.
A atuação dos amici curiae promoveu a ampliação do diálogo constitucional. Transportou-o das perspectivas dos Ministros e Ministras para um campo social e antropológico de ponderação dos direitos fundamentais em debate. Ao passo que perspectivas e ideologias variadas foram ouvidas e consideradas pelos Ministros e Ministras no fórum público de deliberação, de onde se extraíram o cerne da racionalidade de cada um dos votos, efetivou-se o debate constitucional amplo e agregador.
Dessa feita, no caso paradigmático analisado, a atuação dos amici curiae que intervieram na ação tiveram uma influência significativa e positiva para formar a razão pública do STF, contribuindo para que estivesse conformada com os interesses da coletividade. Isso permite que a razão pública formada e informada pelo Tribunal seja capaz de formar um consenso sobreposto entre doutrinas razoáveis abrangentes que atuam na cultura de fundo da sociedade civil, conciliando em algum aspecto o desacordo razoável inerente às sociedades humanas.
Referências
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1 Doutorado em andamento em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina; Mestrado em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina. https://orcid.org/0000-0002-0826-3994. E-mail: ire.tressoldi@hotmail.com.
2 Coordenador do Programa de Pós - Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor de Filosofia do Direito, Argumentação Jurídica e Teorias da Justiça. https://orcid.org/0000-0002-1852-4983. E-mail: robison.tramontina@unoesc.edu.br
3 Os documentos identificados como “eDOC” referem-se às peças processuais apresentadas pelo autor da ação e pelos amici curaie na ADI n. 5.543. Os documentos são de acesso público na página oficial do STF, na aba “peças”, e estão disponíveis no link https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=4996495.
4 Categorizou-se o argumento como prático-moral porque ele é composto por uma dupla dimensão. Uma dimensão relaciona-se com o estímulo à solidariedade, em uma perspectiva de auxílio a quem necessita. A outra dimensão aproxima-se de uma demanda da saúde pública, relacionada à necessidade de ter-se sangue à disposição. Possui, assim, características tanto de ordem prática, quanto de natureza moral.
5 Optou-se por categorizar o argumento de redução da janela imunológica como técnico-científico em razão de observação feita em banca de defesa do trabalho de dissertação acerca da cientificidade de outros argumentos categorizados. Incluir o verbete “científico” nesta categoria não representa uma proposta reducionista das ciências sociais e humanas categorizadas. A categoria refere-se aos avanços alcançados na identificação de contaminação pelo vírus HIV e nas consequências dessas descobertas para a eficiência temporal de identificação da doença no sangue.
6 Acessível em https://www.youtube.com/channel/UCsW4QSB1USsu9ouuFUWe4Iw.
7 Encaminhou-se e-mail ao STF explicando o propósito da pesquisa e solicitando permissão para acessar a sessão de julgamento. Em resposta, o Órgão informou que o julgamento da ADI n. 5.543 ocorreu em ambiente virtual, iniciou 1/5/2020 e finalizou em 9/5/2020, cujas reuniões não estão gravadas. Em resposta ao e-mail, sugeriu-se, também, o acesso ao canal do STF no YouTube para localizar a sessão. No entanto, ao acessar o canal do STF no YouTube não se logrou êxito em localizar o vídeo com a reunião da sessão plenária do período indicado.
8 O conceito de razão pública na perspectiva abordada será trabalhado no item seguinte.