https://doi.org/10.18593/ejjl.30792

CORTES E TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS: O USO DOS TRIBUNAIS PARA FAZER AVANÇAR REFORMAS SOCIAIS SIGNIFICATIVAS

COURTS AND SOCIAL CHANGE: THE USE OF COURTS TO ADVANCE SIGNIFICANT SOCIAL REFORMS

Irene Jacomini Bonetti1

Resumo: O uso de litígios como estratégia para fazer avançar mudanças sociais ensejou produção acadêmica sob diversos sentidos ao longo das últimas décadas. O debate sobre o que se convencionou chamar “cortes e transformações sociais” envolve uma vasta gama de questões que vão desde a separação de poderes e ativismo judicial até análises sobre os efeitos dos litígios e diagnósticos sobre quais condições favorecem ou mitigam a implementação de sentenças. O presente artigo retoma as principais reflexões sobre o papel dos tribunais na produção de mudanças sociais, buscando reconstruir o avanço do debate e apresentar sua configuração atual. Para tanto, são abordados os motivos que levaram a busca pela mudança aos tribunais, as questões democráticas relacionadas e duas abordagens diversas para o estudo sobre estes tipos de litígios. Por fim, apresentam-se os termos atuais do debate. A conclusão do artigo argumenta pela importância do estudo sobre cortes e transformações sociais considerando não apenas a permanência da temática na produção acadêmica, mas sobretudo a continuidade da litigância nesse sentido ao redor do mundo.

Palavras-chave: Cortes e Transformações Sociais; Efetivação de Direitos; Direitos Econômicos e Sociais.

Abstract: The use of litigation as a strategy to advance social change has prompted a diverse range of academic production over the past decades. The debate on what is conventionally called “courts and social change” involves a wide range of issues from the separation of powers and judicial activism to the analysis of the effects of litigation and the diagnosis of which conditions favour or mitigate the implementation of sentences. This article reviews the main reflections on the role of the courts in the production of social change, seeking to reconstruct the progress of the debate and present its current configuration. To this end, it addresses the reasons that led the search for change to the courts, the related democratic issues and two different approaches to the study of these types of litigation. Finally, the current terms of the debate are presented. The conclusion of the article argues for the importance of the study on courts and social transformations considering not only the permanence of the theme in academic production, but especially the continuity of litigation in this sense around the world.

Keywords: Courts and social change; Enforcement of Rights; Social and Economic Rights.

Recebido em 23 de agosto de 2022

Avaliado em 08 de novembro de 2022 (AVALIADOR A)

Avaliado em 16 de dezembro de 2022 (AVALIADOR B)

Aceito em 22 de fevereiro de 2023

Introdução

Em 1991, Gerald R. Rosenberg publicou uma das mais controversas obras sobre o papel das cortes na produção de mudanças sociais. Sob o provocativo título “A esperança vazia: podem as cortes realizar mudanças sociais?” (“The Hollow Hope: Can courts bring about social change?, em inglês), o autor americano se debruçou sobre evidências empíricas para avaliar a capacidade da Suprema Corte norte-americana para realizar “reformas sociais significativas”. O início do livro apresenta diálogo capaz de sintetizar o problema a partir do qual diversos teóricos dedicariam-se ao longo dos anos. Trata-se de debate ocorrido durante o julgamento do caso Briggs v. Elliot (1952), que buscava contestar a segregação racial em escolas na Carolina do Sul. Segundo retoma Rosenberg (2008, p. 1):

Juiz Jackson: Suponho que, realisticamente, a razão pela qual este caso está aqui é que não foi possível obter uma ação do Congresso. Certamente, [o caso] estaria aqui de maneira muito mais forte do seu ponto de vista se o Congresso agisse, não é verdade?

Sr. Rankin: Isso é verdade, mas... se a Corte delegasse de tempos em tempos ao Congresso a questão de decidir o que deveria ser feito em relação aos direitos... as partes [que se socorrem à Corte] ficariam privadas por esse procedimento de obter seus direitos constitucionais por causa da atual adesão do Congresso a essa questão específica (tradução livre).

Decidido três anos antes do famoso caso Brown v. Board of Education, Briggs v. Elliot (1952) foi apresentado por Thurgood Marshall, principal advogado da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (National Association for the Advancement of Colored People, em inglês, comumente referenciada pela sigla NAACP)2. Ao decidir o caso, o Tribunal Distrital considerou que as disposições constitucionais e estatutárias do estado norte-americano da Carolina do Sul que exigiam escolas separadas para negros e brancos não violavam, por si só, a Décima Quarta Emenda da Constituição dos Estados Unidos3. Apesar disso, a corte distrital ordenou que os funcionários da escola fornecessem instalações educacionais iguais e comunicassem ao tribunal, no prazo de seis meses, as medidas tomadas4.

O recurso às cortes para a proteção e efetivação de direitos por grupos cujos interesses não são assegurados pelos Poderes Legislativo e Executivo não se restringiu aos Estados Unidos e aos anos 1950. Na África do Sul, no ano 2000, Irene Grootboom buscou a Corte Constitucional para ter seu direito à moradia garantido, obtendo como resposta uma declaração de que o Estado deveria elaborar e implementar, dentro de seus recursos, um Programa de Moradia, que deveria “prover alívio àqueles que não possuem acesso à terra ou teto sob suas cabeças, e que estejam vivendo sob condições intoleráveis” (DUGARD; ROUX, 2006, p. 114). Na Colômbia, grupos sofrendo com o deslocamento forçado em decorrência de conflitos armados nacionais se socorreram à Corte Constitucional Colombiana (CCC) buscando amparo. Em resposta, o Tribunal considerou haver um Estado de Coisas Inconstitucional, tendo ordenado às autoridades nacionais a reformulação das políticas ligadas ao grupo, tudo com o objetivo de garantir seus direitos (YEPES, 2006, p. 135). No Brasil, também o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a existência de um Estado de Coisas Inconstitucional, desta vez no que tange ao sistema prisional do país. Ao julgar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, a Corte ouviu um apelo para que o tribunal “a voz daqueles que não têm voz, o bastião de defesa dos mais excluídos dentre os excluídos”, sendo que parte relevante da argumentação apresentada pela petição inicial centrava-se no fato de que, dadas as omissões inconstitucionais do Estado brasileiro, caberia à Suprema Corte um papel contramajoritário de proteção dos direitos fundamentais das pessoas presas, reiteradamente ignoradas pelos demais Poderes (BRASIL, 2015).

Esse tipo de litigância foi acompanhado por produção acadêmica que, sob diferentes aspectos, passou a investigar o papel dos tribunais na produção de mudanças e transformações sociais. Segundo Siri Gloppen (2006, p. 38), a transformação social pode ser definida como a alteração das desigualdades estruturais e das relações de poder na sociedade de forma a reduzir o peso de circunstâncias moralmente irrelevantes, tais como classes sociais, gênero, raça, religião ou orientação sexual. Em sentido semelhante, Gerald R. Rosenberg define a relação entre cortes e reformas sociais como os casos nos quais os tribunais são chamados a decidir sobre a ampliação e equalização da posse e desfrute daquilo que é percebido como os bens básicos da sociedade americana. O autor utiliza a definição elaborada por Rawls sobre quais seriam os bens considerados básicos, sendo eles os “direitos e liberdades, poderes e oportunidades, renda e riqueza”, bem como a dignidade, adicionada posteriormente (RAWLS apud ROSENBERG, 2008, p. 04, tradução livre). Nesse sentido, contribuições para mudanças políticas e sociais realizadas pelos tribunais levariam tais benefícios a pessoas que antes não o possuíam.

O debate sobre o que se convencionou chamar “cortes e transformações sociais” envolve uma vasta gama de questões que vão desde a separação de poderes e ativismo judicial até análises sobre os efeitos dos litígios e diagnósticos sobre quais condições favorecem ou mitigam a realização de mudanças sociais por parte dos tribunais. O presente artigo realiza breve sobrevoo sobre as principais questões abordadas durante a evolução das discussões acerca do papel dos tribunais na produção de transformações sociais. Trata-se de retomada relevante pois, conforme será demonstrado, há permanência não apenas das temáticas relacionadas na produção acadêmica atual, mas também da litigância nesse sentido ao redor do mundo.

Apesar de haver produção acadêmica específica sobre a evolução e os efeitos da litigância individualizada5, as construções apresentadas a seguir concentram-se na litigância coletiva e politizada (MCCAMMON; MCGRATH, 2015). Desse modo, para os propósitos deste artigo, consideram-se tentativas de mudança social aquelas que buscam afetar grandes grupos de pessoas. Seguindo elaboração de Rosenberg ora adotada “No centro do debate [sobre cortes e transformações socais] estão aquelas reformas sociais específicas que afetam grandes grupos de pessoas como negros, ou trabalhadores, ou mulheres, ou partidários de uma determinada persuasão política; em outras palavras, mudanças políticas com impacto em todo o país.” (ROSENBERG, 2008, p. 4 e 5).

O artigo está organizado em quatro seções, organizadas a partir da reconstrução do debate sobre cortes e transformações sociais. A primeira seção busca retomar o conceito de mobilização jurídica e as análises sobre as motivações que levaram à busca pela efetivação de direitos por meio dos tribunais. A segunda dedica-se a retomar os debates sobre a legitimidade democrática para a atuação das cortes neste tipo de litigância. Superadas as discussões sobre a judicialização das questões ora analisadas, passa-se à análise sobre a real capacidade das cortes constitucionais em realizar as mudanças sociais almejadas. Desse modo, a terceira seção recupera o debate entre os construtivistas e os neorrealistas. Por fim, a quarta parte apresenta de modo breve os debates atuais na área, que têm se concentrado na fase posterior aos julgamentos. Por fim, a conclusão do artigo argumenta pela importância do estudo sobre das cortes e transformações sociais considerando não apenas a permanência das temáticas na produção acadêmica, mas sobretudo a continuidade da litigância nesse sentido ao redor do mundo.

1 A busca de mudanças por meio dos litígios: como a demanda pela mudança social chegou às Cortes?

O uso do direito para promover justiça social e para proteger os direitos dos grupos mais vulneráveis na sociedade é visto como parte de uma tradição política e jurídica estadunidense, cujo ápice ocorreu durante a Warren Court Era6, entre os anos 1953 e 1969 (VIEIRA, 2008, p. 219). Nesse sentido, o uso do direito como um instrumento para mudanças sociais se baseia em uma suposição fundamental de que o direito é relativamente independente da política. Sob esta hipótese, os tomadores de decisão estariam presos às regras jurídicas, de modo que tais atores supostamente poderiam tomar decisões independentemente de suas consequências políticas. Baseados nesta leitura, advogados partes do movimento denominado de “direito de interesse público” apostaram nas cortes como um caminho viável para proteção de direitos de grupos excluídos e vulneráveis, considerando tal hipótese particularmente relevante nos casos em que outros canais de influência não estariam disponíveis (CUMMINGS; RHODE, 2009, p. 606).

Desse modo, o movimento do direito de interesse público surgiu nos Estados Unidos e ganhou força nas décadas de 1960 e 1970, tendo feito avançar a visão de uma “mudança social focada nas cortes” (court-centered social change, em inglês). Neste contexto histórico, as primeiras vitórias judiciais garantiram às organizações atuantes nesta área recursos e status, o que, aliado à uma série de fatores estruturais, como um sistema de justiça federal receptivo a reclamações de direitos civis, agências administrativas centralizadas abertas a serem reformadas por meio de processos judiciais de impacto e um sistema de direitos sociais abertos à aplicação e expansão, fizeram com que esta estratégia fosse encorajada (CUMMINGS; RHODE, 2009, p. 606).

O movimento do “direito de interesse público” é historicamente relacionado ao acesso à justiça por pessoas marginalizadas política ou economicamente. Ainda que o movimento não estivesse restrito às táticas de litigância, um de seus mais relevantes desdobramentos é o chamado litígio estratégico. Segundo Évorah Cardoso (2012, p. 41), “litígio estratégico”, “litígio de alto impacto”, “litígio paradigmático” e “litígio de caso-teste” são expressões equivalentes que se referem a práticas diferenciadas de litígio que buscam, por meio do uso do Judiciário e de casos paradigmáticos, alcançar mudanças sociais. A técnica consiste em escolher casos como ferramentas para realizar a transformação da jurisprudência dos tribunais e formação de precedentes com o objetivo de provocar mudanças legislativas ou de políticas públicas. Nesse sentido, mais do que realizar a solução do caso concreto, o objetivo de quem litiga estrategicamente está ligado ao impacto social que o caso pode trazer, como o avanço jurídico em um determinado tema7.

Michael McCann (2009) identifica que o legado do chamado “litígio de alto impacto” ou “litígio de alto perfil” (high profile litigation, em inglês) utilizado para mudança social se iniciou a partir do caso Brown v. Board of Education em 19548, tendo continuado nos Estados Unidos em questões relacionadas aos direitos dos acusados, das mulheres, de privacidade, sobre ações afirmativas, política ambiental e outras demandas. Segundo o autor, a década de 1960 viu crescer o número de escritórios de advocacia criados para a promoção do uso de litigância de interesse público que realizavam especificamente a litigância estratégica para promover mudanças sociais9.

Este tipo de litigância contribuiu para um movimento mais amplo denominado de “mobilização jurídica” (legal mobilization, em inglês). Segundo Michael McCann, o conceito de mobilização jurídica foi explorado por uma série de acadêmicos durante os anos de 1960 e 1970. Contudo, o autor considera que a primeira versão mais bem trabalhada deste conceito surgiu apenas em 1983, em definição elaborada por Zemans, que teria influenciado e antecipado a maior parte das pesquisas na área. Segundo a autora: “Há mobilização jurídica quando um desejo ou uma necessidade é traduzido em uma demanda como uma reivindicação de direitos”. (MCCANN, 2009, p. 04). Em 2015, McCammon e McGrath (2015, p. 128-129) afirmaram que há mobilização jurídica quando grupos de defesa jurídica de movimentos sociais apresentam casos jurídicos muitas vezes projetados para desafiar suposições básicas sobre a extensão dos direitos de um grupo social.

De fato, muitos movimentos sociais e coalizões de grupos de interesse que divulgaram o litígio e a defesa dos direitos como um recurso estratégico central surgiram entre o final dos anos 1950 e a década de 1970. De acordo com McCammon e McGrath (2015, p. 128-129), exemplos históricos incluem a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (National Association for the Advancement of Colored People, em inglês) que atuou no caso Brown v Board of Education, e a União Americana pelas Liberdades Civis (American Civil Liberties Union, em inglês, comumente referida pela sigla ACLU) que, em parceria com o Projeto de Direito das Mulheres (Women’s Rights Project, em inglês, comumente referido pela sigla WRP), atuou na busca pela igualdade para mulheres por meio do caso Reed v. Reed10.

McCann alerta que a criação de tal estratégia, aliada a diversos eventos políticos, como a guerra no Vietnã e o caso de Watergate, alimentou o desencanto com políticas eleitorais partidárias e contribuiu para uma crescente fé alternativa em advogados, processos e discursos jurídicos para cumprir promessas de justiça social. A este cenário, o autor inclui ainda a existência de importantes figuras públicas, como Martin Luther King e Ralph Nader, que não apenas exaltaram o litígio e a linguagem sobre direitos, mas também pressionaram diretamente pela “judicialização” generalizada dos processos governamentais (MCCAN, 2009, p. 3).

Contudo, o uso da mobilização jurídica para mudança social não ficou restrito aos Estados Unidos e aos direitos civis e políticos. O transplante do movimento de “direito de interesse público”, que importa a aplicação desta estratégia em países com culturas jurídicas distintas e contextos políticos e sociais diversos, foi criticado. No entanto, deve-se levar em consideração que tal movimento se desenvolveu de maneira diversa em cada país. Nesse sentido, Évorah Cardoso aponta que, enquanto nos Estados Unidos a atuação principal do “direito de interesse público” estava voltada à proteção dos direitos civis, outras regiões estiveram mais focadas em fazer avançar também os direitos econômicos, sociais e culturais (CARDOSO, 2011, p. 47-49).

Do mesmo modo, Siri Gloppen (2006, p. 35-36) identifica que, com o passar dos anos, diversos grupos desfavorecidos em diferentes partes do mundo optaram por buscar a efetivação de seus direitos sociais por meio dos tribunais e, em alguns casos, conquistaram importantes vitórias jurídicas, como ilustrado pelos casos frequentemente citados da Suprema Corte da Índia, que se ocupou de casos relacionados à fome e à desnutrição, e da Suprema Corte da África do Sul, que se dedicou a casos de moradia e saúde11. A autora atribui tal incidência a dois fatos que, em conjunto, contribuíram para a expansão da litigância ora analisada: (i) o fato de que muitos dos países mais pobres do mundo passaram por amplas reformas jurídicas como parte de um processo de democratização, refletindo e dando ênfase sem precedentes ao Direito e aos direitos como forças motrizes da mudança social e; (ii) apesar da incorporação de direitos econômicos e sociais nos ordenamentos jurídicos da maioria destes países, houve pouco progresso para suas efetivações12.

Em comparação aos Estados Unidos, a difusão do “direito de interesse público” na América Latina tardou a chegar. Segundo Évorah Cardoso, a existência de regimes autoritários na região teria dificultado a atuação de centros voltados para a prática, dado que advogados e organizações ativistas estiveram concentrados na atuação pela democratização, que só começou a partir da década de 1980, permitindo só então a adoção de novas atividades por estes grupos. Ademais dos regimes autoritários existentes, a autora aponta também que o direito positivado à época não permitia às organizações a busca pela aplicação da lei, já que ela mesma era responsável por agravar a violação de direitos humanos. De modo complementar, o Judiciário conservador da região também teria dificultado o trabalho de reconhecimento de direitos13.

Rebecca Groterhorst (2020, p. 25-27) argumenta pela necessidade de compreensão dos traços do constitucionalismo na América Latina para o aprofundamento das reflexões sobre o surgimento e a evolução do protagonismo das Cortes Constitucionais da região na proteção e efetivação de direitos. Nesse sentido, aponta ser necessária a consideração tanto da experiência do neoconstitucionalismo quanto das ideias sobre constitucionalismo transformador no continente sul-americano. Mesmo reconhecendo o fato de que comumente os acadêmicos estudam o constitucionalismo transformador dentro do guarda-chuva teórico do novo constitucionalismo latino-americano, a autora aborda as correntes de forma separada, o que se replicará neste texto.

Segundo Groterhorst, o neoconstitucionalismo latino-americano contou com a promulgação de novas constituições com amplo catálogo de direitos e os mecanismos para assegurar seus respectivos cumprimentos, o que, em conjunto, acarretou uma renovação na jurisprudência constitucional, permitindo ao Poder Judiciário a análise de atos dos Poderes Legislativo e Executivo e o amparo não apenas de direitos civis, mas também de direitos sociais. De outro lado, o constitucionalismo transformador é considerado um projeto normativo que busca a efetividade dos compromissos constitucionais latino-americanos, oferecendo um importante papel ao Poder Judiciário nessa concretização. Desse modo, o constitucionalismo transformador esteve centrado em assegurar regionalmente a implementação das decisões e o cumprimento dos princípios centrais das Constituições14, insistindo na efetivação das promessas feitas aos povos latino-americanos em relação aos direitos sociais (GROTERHORST, 2020, p. 31-32).

Daniel Brinks e William Forbath (2010, p. 1943) chegam a comparar a extensa carta de direitos prevista nestas novas constituições, especialmente no que tange aos direitos sociais e econômicos, às “notas promissórias” tais como mencionadas por Martin Luther King. Em 1963, King afirmou que o princípio da igualdade era uma “nota promissória para a qual todo americano deveria ser herdeiro”, postulando que “esta nota é uma promessa de que todos os homens, sim, tanto os negros como os brancos, possuem a garantia de usufruir dos direitos inalienáveis da vida, da liberdade e da busca pela felicidade”. A escolha pela figura da nota promissória estava associada à uma promessa não cumprida de gozo dos direitos pelos cidadãos negros americanos e, como visto acima, a figura de Martin Luther King teve bastante importância para que os litígios fossem vistos como instrumentos capazes de fazer valer a promessa de igualdade realizada pela carta constitucional. Nesse sentido, King segue o discurso afirmando:

Hoje é óbvio que os Estados Unidos não cumpriram esta nota promissória no que diz respeito a seus cidadãos de cor. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, os Estados Unidos deram ao negro um cheque mal-passado, um cheque que voltou marcado com ‘insuficiência de fundos’ (...). Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça está falido15.

Do mesmo modo, diversos atores latino-americanos passaram a apostar no Poder Judiciário como possível locus concretizador desses direitos. Além da carta de direitos ter sido expandida, as reformas constitucionais em diversos países da região também ampliaram a legitimação para litigar e facilitaram, assim, o acesso aos tribunais. Sob estas novas dinâmicas, as Cortes passaram aos poucos a serem percebidas como agentes de transformação social e inclusão de grupos marginalizados, impulsionando a opção pelo canal judicial para a promoção de direitos ao invés da busca por canais políticos. Desse modo, pontua Groterhorst que muitas sentenças que, perante o velho paradigma, poderiam ser lidas como um ativismo judicial questionável, passaram a ser entendidas como catalisadoras da promoção dos novos projetos constitucionais do continente latino-americano. Assim, como parte deste processo, e, na tentativa de realizar uma transformação social por meio do direito, os juízes passam a assumir maiores responsabilidades e compromisso judicial com os textos constitucionais (GROTERHORST, 2020, p. 31- 41).

Com o tempo, esta jurisprudência dos direitos sociais na América Latina inspirou um rico debate entre juízes, acadêmicos e litigantes sobre o impacto do enforcement judicial dos direitos sociais e econômicos sobre a distribuição de bens sociais como assistência médica e educação, bem como sobre os efeitos que o envolvimento dos tribunais possuem sobre as políticas públicas e sobre as práticas de provisão social, além de discussões sobre os métodos para avaliação destas dinâmicas (BRINKS; FORBATH, 2010, p. 1943).

Considerações semelhantes podem ser realizadas especificamente sobre o Brasil. Em nosso país, Oscar Vilhena Vieira (2008) aponta que o desenvolvimento do direito de interesse público é resultado de uma série de forças e tradições. Nesse sentido, o autor reconstrói a influência de segmentos liberais e progressistas da comunidade jurídica que, desde o movimento abolicionista, resistiram à opressão por meio de estratégias e instrumentos jurídicos, utilizando tais ferramentas para promover direitos e fazer avançar questões de justiça social16-17-18-19. Tais experiências, ainda que não propriamente identificadas como parte do “movimento de interesse público”, contribuíram para o desenvolvimento deste tipo de litigância no país. Contudo, Vilhena pontua que a forma atual do movimento de direito de interesse público no Brasil é primordialmente moldada pela Constituição Federal de 1988.

A Constituição Federal de 1988, enquanto dirigente e aspiracional, buscou coordenar mudanças políticas, sociais e econômicas. Nesse sentido, atribuiu ao Estado um papel central na promoção do bem-estar social e do desenvolvimento econômico. No que tange ao direito de interesse público, a principal característica desta Constituição a propulsionar tal ferramenta foi sua extensa carta de direitos, composta não apenas por direitos civis e políticos, mas também por direitos econômicos, sociais e culturais, além de direitos expressamente positivados com vistas à proteção de grupos vulneráveis, como os povos indígenas, os idosos e as crianças (VIEIRA, 2008, p. 232). Segundo Évorah Cardoso (2011, p. 51), esta extensa previsão de direitos fundamentais foi essencial para o desenvolvimento de uma “cultura de direito de interesse público” no país, agora sim identificada como tal.

Vieira (2008, p. 233-234) aponta ainda outras características da Constituição Federal de 1988 que contribuíram para que demandas relacionadas ao direito de interesse público pudessem ser levadas aos tribunais. A primeira delas é a previsão constitucional de que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais possuem aplicação direta20, que, acompanhada do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional21, permitiu que demandas sobre violações de direitos fundamentais por ações ou omissões dos Poderes Executivos ou Legislativos fossem analisadas pelo Poder Judiciário, passando este a ser um ator político. A este cenário jurídico deve ser adicionada, ainda, a previsão constitucional de remédios para a promoção da implementação da extensa carta de direitos, tais como o mandado de injunção e o habeas data, além da expansão do escopo de remédios já tradicionais como o mandado de segurança e a ação civil pública.

Apesar desta expansão no uso destes tipos de litígios, o entendimento sobre a legitimidade democrática desta estratégia de efetivação de direitos nem sempre foi pacífico. Na próxima seção serão retomados brevemente os debates sobre a adequação do Poder Judiciário como locus para a transformação social.

2 O Poder Judiciário como locus para a transformação social e questões democráticas relacionadas

O uso de litígios para a promoção de mudanças sociais fomenta discussões sobre a legitimidade democrática de tal estratégia e suas possíveis consequências. Segundo Gloppen (2006, p. 39), a ideia de que os tribunais sejam orientados para a transformação social abre controvérsias fundamentais sobre o papel adequado das cortes e a demarcação entre direito e política. Tais considerações fazem parte de um debate de longa data sobre revisão judicial e a questionada legitimidade de juízes não eleitos para anular as decisões dos representantes do povo. Mais do que isso: em muitos casos que envolvem transformações sociais, os juízes podem não apenas invalidar decisões políticas e legislações elaboradas, mas também impor medidas e políticas públicas, exercendo, assim, a função típica do Poder Executivo.

A questão é controversa. Jeremy Waldron (2006), por exemplo, sustenta que a revisão judicial é um modo inapropriado de se tomar decisões em uma sociedade livre e democrática, não oferecendo a melhor maneira para proteger direitos e para discuti-los quando há grande desacordo sobre eles. Se considerarmos a judicialização apoiada em direitos sociais a questão pode se tornar ainda mais espinhosa.

Segundo linha argumentativa retomada por Gloppen, direitos sociais levantam questões nas quais o espaço para desacordo racional é particularmente amplo. Nesse sentido, estes tipos de direitos correspondem a assuntos inerentemente políticos e, portanto, não adequados para os tribunais. Por isso, há um temor de que o uso dos tribunais como uma arena para travar disputas politize o Poder Judiciário e mine sua capacidade de interferir com a independência que este poder deveria ter. Portanto, segundo esta visão, os tribunais deveriam limitar-se a um papel de transformador indireto, garantindo apenas as “regras do jogo político” e mantendo abertos outros canais nos quais tais questões podem ser debatidas (GLOPPEN, 2006, p. 39).

Por outro lado, argumentos favoráveis ao ativismo judicial e à realização de revisão judicial apontam que a democracia não é o simples predomínio da vontade da maioria, mas um sistema político que se assenta também no respeito aos direitos fundamentais, tidos como pressupostos inafastáveis para o adequado funcionamento do regime democrático.

À vista disso, um contra-argumento apresentado por Gloppen (2006) em relação à legitimidade da judicialização dos direitos sociais é que estes são necessários para assegurar o igual valor dos direitos políticos, permitindo aos grupos marginalizados lutar efetivamente pela transformação social em outras arenas. A autora pontua que o papel adequado dos tribunais deve ser considerado a partir do contexto do sistema político mais amplo, levando em conta quais outros canais existem para abordar tais preocupações, quão eficazes eles são e as oportunidades disponíveis aos grupos vulneráveis para que suas demandas sejam consideradas. No mesmo sentido, Oscar Vilhena Vieira (2018) relembra que mesmo constitucionalistas mais reticentes em relação a uma atuação proativa da jurisdição constitucional, como John Hart Ely, defendem que a proteção de direitos de minorias “insulares e discriminadas”, mesmo em contradição com as decisões da maioria, são compatíveis com a democracia.

Garavito e Franco (2010) enfrentam a questão trazendo um novo ponto. Os autores afirmam que, frente às críticas segundo as quais o ativismo judicial invadiria as competências dos funcionários do Executivo e do Legislativo, eleitos popularmente, deve-se levar em conta que frequentemente as democracias contemporâneas “entram em situações de estancamento estrutural que frustram a realização dos direitos constitucionais” (GARAVITO; FRANCO, 2010, p. 17). Essas circunstâncias de bloqueio institucional geram profundas deficiências ou mesmo a inexistência de políticas públicas para atender problemas sociais urgentes. Neste cenário, apontam, as Cortes seriam as instâncias adequadas para destravar o funcionamento do Estado e promover a proteção dos direitos. Assim, sob esta perspectiva, defendem que tais tipos de intervenções judiciais aprofundariam a democracia ao invés de violá-la.

Trata-se de visão semelhante à defendida por Gloppen. Segundo a autora, é dever dos tribunais reparar o mau funcionamento do processo democrático quando este último prejudica sistematicamente os interesses dos grupos marginalizados. Contudo, isso não exclui um papel para os outros ramos do poder, dado que garantir a igualdade social é principalmente uma tarefa para os políticos eleitos.

Gerald R. Rosenberg considera que a análise normativa relacionada à pergunta sobre se os tribunais devem agir nas questões relacionadas às transformações sociais corresponde a uma questão relevante e útil sobre a perspectiva da teoria democrática. Contudo, o autor pontua ser necessário que o debate avance para os reais impactos causados pela contestada ação dos tribunais. Para Rosenberg, levando-se em conta que grande parte da política é sobre quem recebe o quê, quando e como, e como essa distribuição é mantida ou alterada, o entendimento sobre até que ponto, e sob que condições, os tribunais podem produzir mudanças políticas e sociais é de fundamental importância (ROSENBERG, 2008, p. 2).

Desse modo, garantida a jurisdição constitucional, o debate sobre cortes e transformações sociais passou a analisar a capacidade dos tribunais de realizarem mudanças sociais por meio de suas sentenças. A seção a seguir retomará profícuo debate acerca de duas visões sobre a capacidade das cortes de realizar mudanças sociais.

3 Podem as Cortes realizar transformações sociais?

O uso de litígios estratégicos - também sob a forma de litígios estruturais - aposta no potencial das Cortes em realizar mudanças sociais. Ignorados pelos demais Poderes, grupos vulneráveis se voltam aos tribunais em busca da efetivação de seus direitos ou da garantia destes.

Segundo Garavito e Franco (2010, p. 20), a extensa bibliografia sobre a aplicação judicial dos direitos constitucionais na América Latina e em outras regiões do mundo tem sido dominada por dois ângulos de análise. De um lado, alguns aportes essenciais ao debate têm se concentrado no marco teórico sobre como fundamentar a justiciabilidade desses direitos, especialmente dos direitos sociais, à luz da teoria democrática e da realidade de contextos sociais atravessados por profundas desigualdades econômicas e políticas22. De outro lado, muitos trabalhos têm abordado a discussão a partir da dogmática dos direitos humanos, com o objetivo de dar maior precisão aos estândares judiciais de aplicação dos direitos sociais e para impulsionar sua utilização por parte dos órgãos judiciais e de monitoramento, tanto em âmbito nacional como internacional23.

Segundo os autores, as perspectivas teóricas e dogmáticas dominantes fizeram progressos consideráveis na elucidação conceitual e no impulso prático da justiciabilidade dos direitos constitucionais. Contudo, a ênfase quase exclusiva no estágio de produção de julgamentos teria criado um ponto cego tanto sob a perspectiva analítica quanto sob a perspectiva prática: o estágio de implementação de julgamentos. Assim sendo, de acordo com diagnóstico realizado por Garavito e Franco (2010), faltariam estudos sistemáticos sobre o destino das “decisões ativistas” uma vez que estas passam a ser “impressas em papel oficial”.

Compõe também o problema o fato de que, nos últimos anos, a quantidade de julgamentos sobre direitos econômicos, sociais e culturais teria aumentado consideravelmente, apesar das tradicionais reservas sobre justiciabilidade, viabilidade e legitimidade da efetivação destes tipos de direitos pela via judicial. Apesar deste aumento, alguns litigantes e acadêmicos passaram a levantar o alarme de que um número significativo de julgamentos sobre os DESC permaneceria sem ser implementado após as decisões (LANGFORD; GARAVITO; ROSSI, 2017, p. 03).

Partindo desta constatação, Garavito e Franco (2010) indicam que seria necessário ao campo a realização de perguntas como as seguintes: O que se passa com as ordens contidas nas sentenças uma vez que estas deixam as Cortes? Em que medida os funcionários cumprem as sentenças e adotam novas condutas para proteger os DESC? Que impacto possuem essas decisões no Estado, na sociedade civil, nos movimentos sociais e na opinião pública? Em última instância, tais sentenças contribuem para tornar os direitos econômicos e sociais uma realidade?

Os autores levantaram estas perguntas ao voltar o olhar para a análise da experiência de julgamentos de litígios estruturais por parte da Corte Constitucional Colombiana. Ao analisar o caso denominado Sentença T-025, sobre o caso dos deslocados forçados internos colombianos24, Garavito e Franco buscaram trazer à realidade latino-americana uma lente analítica cuja fonte encontra-se em estudos sociojurídicos internacionais que investigaram o impacto de grandes casos do ativismo judicial em questões tão variadas como desigualdade de gênero no mercado de trabalho25, discriminação racial26 e condições de prisões superlotadas27. Sob diferentes perspectivas, estes estudos teorizaram e avaliaram empiricamente os efeitos da “revolução dos direitos” provocada pela crescente intervenção dos juízes na gestão dos problemas sociais estruturais. Nesta literatura, a questão mais recorrente (e controversa) pode ser apresentada da seguinte maneira: como avaliar o impacto de uma decisão judicial? Mais amplamente, como determinar os efeitos da judicialização dos problemas sociais? Como medir o impacto da transformação de uma controvérsia política, econômica ou moral em uma disputa jurídica? (GARAVITO e FRANCO, 2010, p. 21).

As próximas seções se destinarão a teóricos que têm refletido sobre estas perguntas. Iniciaremos com uma breve retomada sobre um embate existente acerca do potencial das cortes para realizar mudanças sociais. Nesta seção, indicaremos visões mais reticentes sobre o potencial transformativo dos tribunais, buscando apontar características previamente identificadas pela literatura como limitadoras das mudanças possíveis. Em um segundo momento, apresentaremos abordagens que se propuseram a olhar para estes tipos de litígio de outra maneira, entendendo que as contribuições deste tipo de litigância podem ser lidas a partir de uma perspectiva mais ampla.

3.1 A esperança vã e o olhar mais além do litígio

Apesar de sua importância duradoura, as principais reivindicações feitas sobre Brown são altamente questionáveis: que a decisão fez a diferença em acabar com (....) a discriminação racial de forma mais ampla (...). Estas são questões enfaticamente empíricas, não questões de ideologia, ou desejos fervorosos de um mundo melhor. São perguntas sobre o que Brown realmente realizou. E a resposta é: não muito”.

Gerald R. Rosenberg, 2004, sobre o caso Brown v. Board of Education, tradução livre.

Na área específica do T-025, nosso estudo concluiu que, nos seis anos seguintes à decisão (2004-2010), o caso teve um grande impacto no desbloqueio do aparato estatal e no posicionamento da questão no centro do debate público e cidadão. Também teve um efeito notável, embora parcial, na democratização da questão, na medida em que criou espaços de participação e controle cidadão que permitiram que as vozes das organizações da sociedade civil com força jurídica fossem ouvidas, mas não foram igualmente eficazes na inclusão das vítimas do deslocamento forçado interno.

César Rodríguez Garavito e Diana Rodríguez Franco, 2010, sobre o caso dos deslocados forçados internos na Colômbia (Sentença T-025), tradução livre.

Quando Chayes (1976) abordou a existência de litígios de interesse público, o autor argumentou que este novo tipo de litígio teria enriquecido o repertório institucional da democracia estadunidense. Segundo sua defesa, as alegadas independência, flexibilidade e acessibilidade dos tribunais os tornariam capazes de responsabilizar instituições com problemas crônicos. Isso porque as cortes seriam menos suscetíveis de serem capturadas por interesses egoístas e mais capazes de induzir discussões frutíferas entre as partes envolvidas (SABEL; SIMON, 2004, p. 1017).

Segundo Sabel e Simon (2004, p. 1017), embora a descrição analítica feita por Chayes sobre o litígio de interesse público tenha se tornado canônica, suas defesas sobre a utilização desta forma de litígio e sobre as capacidades das cortes permaneceram controversas. Nesse sentido, críticos duvidaram que os tribunais tivessem as informações necessárias para supervisionar a reestruturação institucional almejada de forma eficaz. Ademais, pontuaram também que, mesmo que os tribunais fossem suficientemente informados, ainda assim o poder das cortes seria “muito estreito” e “superficial” para a nova tarefa. Segundo argumentaram, a estreiteza estaria ligada ao fato de que os problemas dos órgãos públicos a serem “reformados” estariam ligados a uma miríade de outras instituições e práticas sociais, enquanto o poder de um tribunal se estenderia apenas às partes que procuraram a corte. Em segundo lugar, o poder seria “demasiadamente superficial” porque as operações das agências dependeriam da conduta “a nível de rua” dos subordinados, cuja análise escaparia ao tribunal, dado que a autoridade de suas sentenças operaria principalmente contra altos funcionários (e, mesmo assim, com limitações severas).

Um dos principais desconfiados sobre a capacidade dos litígios para verdadeiramente fazer avançar os interesses dos grupos vulneráveis, Gerald R. Rosenberg (2008) elaborou dois tipos ideais a partir de duas visões contrapostas sobre os potenciais das Cortes ao lidarem com estas questões. Com o objetivo de investigar a capacidade da Suprema Corte estadunidense de realizar reformas sociais significativas, especialmente a partir de casos como Brown v. Board of Education, o autor reuniu em duas categorias os argumentos comumente utilizados por entusiastas deste tipo de uso dos tribunais e por aqueles mais reticentes quanto aos potenciais desta prática.

Construídas enquanto tipos ideais, as visões das cortes são criadas como instrumentais para a análise que o autor empreende sobre a capacidade da corte constitucional estadunidense para realizar mudanças sociais. Assim sendo, as restrições listadas estão ligadas à realidade norte-americana, evidentemente. Contudo, trata-se de argumentos reunidos que exemplificam de maneira sintética as maiores objeções quanto a atuações efetivas por parte dos tribunais. Por esse motivo, a presente pesquisa adota a descrição elaborada como exemplicativa dos embates teóricos relacionados ao potencial das cortes para transformação social.

De um lado, Rosenberg descreve uma “Visão Restrita dos Tribunais” (Constrained Court View, em inglês), que seria contraposta pela “Visão Dinâmica dos Tribunais” (Dynamic Court View, em inglês). Enquanto a primeira corrente entende as Cortes como fracas, ineficazes e impotentes em relação à produção de mudança social, a segunda enxerga as Cortes como capazes de produzir efetivas e significativas mudanças sociais.

A Visão Restrita dos Tribunais sugere que as condições necessárias para que as cortes produzam mudanças sociais raramente existirão, e, portanto, as Cortes geralmente não serão produtoras efetivas de mudança social. Elencam-se três razões para tanto: (i) a limitada natureza dos direitos constitucionais28, (ii) a falta de independência judicial29 e (iii) a inabilidade do Judiciário para desenvolver políticas públicas apropriadas, bem como a sua inata falta de poderes para implementá-las30.

Em síntese, portanto, a Visão Restrita dos Tribunais sustenta que os litigantes que buscam por mudanças sociais significativas a partir da atuação das Cortes enfrentam restrições relevantes. Inicialmente, eles devem convencer que os direitos pleiteados possuem fonte constitucional ou normativa. Ainda, devem enfrentar a reticência das Cortes em tomar posições muito distintas das correntes dominantes na política, haja vista que os tribunais seriam usualmente deferentes aos governos federais e potencialmente limitados pelo Congresso. Por fim, caso as restrições anteriores sejam superadas e os casos sejam decididos favoravelmente aos litigantes, ainda assim restariam as dificuldades de implementação. (ROSENBERG, 2008, p. 10-21)31.

A Visão Dinâmica dos Tribunais, de outro lado, afirma que a Visão Restrita dos Tribunais ignoraria as vantagens das Cortes. A teoria defende que as Cortes estariam livres de amarras eleitorais e arranjos institucionais que não permitiriam mudanças. Desse modo, os tribunais teriam capacidade para agir quando outras instituições políticas não desejassem ou fossem incapazes estruturalmente de fazê-lo. A habilidade para ação das Cortes, segundo essa linha de pensamento, reside na possibilidade de enfrentar a oposição da opinião pública e poder proteger causas impopulares e direitos de minorias desprivilegiadas, sem sofrer com a accountability eleitoral e com a dependência de fontes econômicas e políticas. Defensores dessa visão alegam que as Cortes ofereceriam as melhores possibilidades para os pobres, pessoas sem influência e para grupos desorganizados, justamente aqueles que mais precisariam de reformas sociais significativas. Por fim, aponta-se, também, que as Cortes podem servir como catalisadoras e apontar os caminhos para efetivação de direitos, além de possuir um papel educacional capaz de gerar, com suas decisões, importantes efeitos simbólicos (ROSENBERG, 2008 p. 22-25).

Como se vê, a academia passou a dedicar considerável atenção à análise da “utilidade do litígio” como recurso para a reforma social. Nos Estados Unidos, é possível dizer que, de modo geral, o teor destas produções acadêmicas se alterou em resposta a mudanças nas correntes políticas mais amplas. Em breve síntese histórica, Michael McCann (1992, p. 715) aponta que, do final dos anos 1950 até meados dos anos 1970, muitos estudos realizados por intelectuais de mentalidade liberal celebraram a crescente capacidade de resposta dos tribunais aos grupos minoritários desfavorecidos e às causas progressivas dentro da sociedade. Contudo, durante meados dos anos 1970 e início dos anos 1980, esse otimismo deu lugar a perspectivas mais críticas, refletindo a desilusão com o litígio como uma ferramenta para avançar na transformação social.

A primeira produção a questionar os resultados dos litígios enquanto verdadeiramente aptos para garantir as mudanças sociais almejadas foi o inovador livro de Stuart Scheingold denominado The Politics of Rights (1974), que passou a informar de maneira veemente a literatura crítica que se seguiu a este autor. Segundo a linha de pensamento construída por Scheingold, as avaliações otimistas da ação judicial em nome de grupos há muito desfavorecidos e privados de direitos frequentemente refletiriam uma fé ingênua no que ele chama de “mito dos direitos” - isto é, o mito de que todas as vítimas que possuem “seu dia no tribunal” e que possuem vitórias judiciais decorrentes teriam seus direitos assegurados, como se os direitos afirmados judicialmente fossem uma espécie de mudança social “auto-implementável”, implicando na “remoção automática” das restrições do poder político. Desse modo, estudos acadêmicos a partir dos anos 1970 passaram a explorar e a demonstrar muitas das limitações ideológicas, organizacionais e financeiras sobre o litígio utilizado para a mudança social que foram originalmente identificados por Scheingold (MCCAN, 1992, p. 715).

Contudo, desde o final da década de 1970, outros tipos de estudos nesse campo passaram a florescer. De forma variada, estudos sobre resolução de disputas, táticas de mobilização jurídica e discurso jurídico desenvolveram outras perspectivas sobre o impacto das normas e práticas jurídicas sobre conflitos sociais. Questões como os efeitos indiretos do litígio para as partes relacionadas com o conflito social e o papel ambíguo do direito que poderia funcionar tanto como ferramenta como limitador para cidadãos situados de maneira distinta no tecido social passaram a ser abordadas. No centro destas novas contribuições estão estudos que passaram a dar muito mais atenção a como os efeitos indiretos e indeterminados gerados pelas decisões judiciais se reconstroem em padrões bastante diversos de atividade e disputas jurídicas estratégicas em toda a sociedade (MCCAN, 1992, p. 715 e 716).

Com o passar dos anos, portanto, passou a ser possível diferenciar dois tipos de respostas à questão central sobre como avaliar o impacto de uma decisão judicial, que implica também no questionamento sobre como determinar os efeitos da judicialização dos problemas sociais e sobre qual seria a maneira adequada para medir o impacto da transformação de uma controvérsia política, econômica ou moral em uma disputa política.

Segundo Garavito e Franco (2010, p. 21) as respostas a estas perguntas podem ser classificadas em dois grupos, de acordo com o tipo de efeitos que privilegiam. Por um lado, alguns autores concentram sua atenção nos efeitos diretos e palpáveis das decisões judiciais. A partir de uma perspectiva neorrealista, que vê a lei como um conjunto de regras que molda o comportamento humano, eles aplicam um rigoroso teste de causalidade para medir o impacto de uma intervenção judicial. Nesse sentido, um julgamento será tido como eficaz se tiver gerado uma mudança observável no comportamento de seus destinatários imediatos, ou seja, os indivíduos, grupos ou instituições que os litigantes e juízes procuram influenciar com suas estratégias e decisões.

Para os autores, o trabalho seminal desta corrente foi elaborado por Gerald Rosenberg, em 1991 (ROSENBERG, 2008), sobre os efeitos da conhecida decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Brown vs Board of Education, em 1954, que iniciou uma onda de intervenções judiciais para desmantelar a segregação racial em escolas, instalações públicas e outros espaços. Ao contrário da visão dominante sobre Brown - que compreende que a decisão revolucionou as relações raciais nos EUA e contribuiu para a ascensão do movimento de direitos civis dos anos 1970 - o estudo empírico de Rosenberg concluiu que a decisão tinha tido pouco efeito, e que a fé nos tribunais como motores da mudança social era uma “esperança vazia”. (GARAVITO e FRANCO, 2010, p. 22). A próxima seção tratará do tema de maneira mais aprofundada.

De outro lado, autores inspirados por uma visão construtivista da relação entre direito e sociedade criticaram Rosenberg e os neorrealistas por se concentrarem apenas nos efeitos instrumentais e diretos dos julgamentos deste tipo de litígio. Segundo a crítica, o direito e as decisões judiciais geram transformações sociais não apenas quando induzem mudanças no comportamento de indivíduos e grupos diretamente envolvidos no caso, mas também quando provocam transformações indiretas nas relações sociais, ou quando modificam as percepções dos atores sociais e legitimam as visões de mundo promovidas por ativistas e litigantes que comparecem aos tribunais (GARAVITO e FRANCO, 2010, p. 22 e 23)

Para Garavito e Franco (2010, p. 23) a contribuição fundamental para esta abordagem construtivista foi realizada pelo estudo de Michael McCann (1994) sobre os efeitos das estratégias jurídicas do movimento feminista que buscava por equidade salarial nos Estados Unidos. Em contraposição à Rosenberg, McCann argumenta que os efeitos indiretos do litígio e do ativismo judicial são frequentemente mais importantes do que os efeitos diretos que os neorrealistas enfocam. Neste sentido, embora as vitórias judiciais possam muitas vezes não se traduzir automaticamente nas mudanças sociais desejadas, elas poderiam ajudar a redefinir os termos das disputas entre grupos sociais tanto a curto como a longo prazo. Além disso, poderiam possuir profundos efeitos simbólicos ao mudar a percepção do problema e as soluções alternativas detidas por diferentes atores sociais como funcionários públicos, vítimas da violação dos direitos em questão, opinião pública etc. Seção mais à frente também trará de maneira mais aprofundada as questões levantadas por McCann em contraposição à abordagem neorrealista.

Os próximos subtópicos abordarão de maneira mais aprofundada tanto as leituras que compreendem o uso das cortes como uma esperança vã quanto abordagens que defendem um olhar mais amplo sobre esse tipo de tática e seus diferentes resultados. A diferenciação entre os tipos de efeitos também será trazida nos tópicos que se seguem.

3.1.1 A esperança vã

Intrigado pela admissão quase inquestionada sobre a contribuição que a Suprema Corte norte-americana teria realizado no avanço de reformas sociais significativas, especialmente a partir de casos como Brown v. Board of Education e Roe v. Wade, Rosenberg dedicou-se ao estudo empírico sobre a capacidade da referida Corte Constitucional de realizar mudanças sociais (ROSENBERG, 2008, p. 09).

Segundo o autor apesar da importância comumente atribuída ao caso Brown, a maior parte das afirmações sobre este litígio seria altamente questionável, especialmente considerações como as que pontuam que essa decisão fez diferença no fim da segregação racial em escolas públicas e acabou com a discriminação racial em termos mais amplos. Segundo o autor, essas conclusões deveriam decorrer de análises empíricas, e não demonstrarem proposições ideológicas ou mesmo serem o reflexo do que desejariam os autores ou de reflexões sobre o que a decisão deveria ter feito ao afirmar que a segregação era inconstitucional. Para Rosenberg, a análise deveria se concentrar no que Brown realmente teria conseguido, é dizer, sobre as alterações existentes que teriam decorrido diretamente da decisão judicial (ROSENBERG, 2004, p. 205).

Após a realização de seus estudos e, apoiado fortemente em dados empíricos, o autor concluí ter encontrado resultados decepcionantes derivados das tentativas de usar as cortes estadunidenses para produzir reformas sociais significativas em direitos civis, em relação ao aborto, aos direitos das mulheres, ao meio ambiente, aos direitos criminais e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Suas conclusões o levaram a afirmar que as restrições levantadas pelo tipo ideal da “Visão Restrita das Cortes”, abordadas na seção anterior, capturariam melhor a (in)capacidade dos tribunais para produzir mudanças sociais significativas. Isso ocorreria pois, no nível mais fundamental, os tribunais dependeriam de apoio político para produzir tais mudanças (ROSENBERG, 2008, p. 420).

Especificamente no que tange à Brown v. Board of Education, Rosenberg pontua que apesar do grande reconhecimento dado à decisão deste caso, a análise dos efeitos reais da decisão produziria certa surpresa. Segundo o autor, uma década após a decisão, praticamente nada havia mudado para os estudantes afroamericanos que viviam nos onze estados da antiga Confederação que exigiam por lei a “segregação escolar baseada na raça”. Baseando-se em dados estatísticos sobre a presença de estudantes negros em escolas que não realizavam a segregação durante os anos 1963-1964, o autor afirma que “a constatação de um direito constitucional não mudou nada.” (ROSENBERG, 2004, p. 205)

Para o autor, a decisão de Brown não foi implementada por não ter havido uma pressão política para tanto, ao passo em que, de outro lado, houve uma grande pressão para que a decisão não fosse executada. No âmbito do Poder Executivo, segundo a análise de Rosenberg, tanto os Presidentes da República quanto os governadores eleitos naquele período pouco fizeram para fazer avançar os direitos civis, sendo que alguns destes últimos chegaram a desafiar a decisão da corte por diversas vezes. Desse modo, não houve apoio político para a dessegregação. Para completar o cenário que impediu a efetivação da sentença, muitos congressos estaduais começaram a aprovar leis pró segregação: Até 1957, três anos após Brown, pelo menos 136 novas leis e emendas constitucionais foram feitas para preservar a separação dos locais por raças.

Contudo, entre os anos 1972 e 1973 seria possível verificar a mudança que havia sido buscada por meio da atuação das Cortes. Para o autor, contudo, tal alteração decorreu da atuação do Congresso e do Poder Executivo. Nesse sentido, mais do que a decisão de Brown v. Board of Education, para Rosenberg o que permitiu a superação da segregação racial nas escolas teria sido o Título VI do Civil Rights Act publicado em 1964, que realizou um corte orçamentário contra as escolas que praticavam a discriminação racial. Desse modo, o autor afirma que estas duas medidas teriam propiciado ao Poder Executivo ferramentas para induzir a dessegregação, o que ocorreu apenas quando o Poder Executivo decidiu que queria fazê-lo (ROSENBERG, 2004, p. 206)

Segundo o autor, o direito e as decisões jurídicas operam em um determinado ambiente cultural, e as normas desse ambiente influenciam as decisões que são tomadas e o impacto que elas têm. Para Rosenberg, no caso de Brown e em outros casos relacionados aos direitos civis, as decisões foram anunciadas em uma cultura na qual a escravidão havia existido e o apartheid existia, não tendo conseguido superar essas condicionantes.

Apesar de, na leitura do autor, não ter sido a decisão judicial propriamente dita que contribuiu de maneira mais enfática para a dessegregação racial no sistema educacional estadunidense, Rosenberg considera que o caso Brown é celebrado por dois motivos, sendo que o primeiro está ligado ao fato de que desde meados dos anos ١٩٦٠ os Estados Unidos se tornaram oficialmente comprometidos com uma sociedade não segregada, de modo que Brown vs Board of Education seria um símbolo constitucional desse compromisso. A segunda razão, segundo o autor, seria muito menos nobre (ROSENBERG, 2004, p. 207-208).

Para Rosenberg, a celebração de Brown teria a função ideológica de assegurar aos americanos que eles viveriam de acordo com seus princípios constitucionais sem realmente exigir que eles o fizessem. Desse modo, Brown e a segregação de fato teriam vivido lado a lado. Para o autor, o perigo de celebrar um símbolo, tal como feito com o caso, é que a celebração pode levar a um sentimento de autossatisfação e a uma falta de vontade de examinar a prática. Desse modo, o autor afirma que os americanos celebram Brown não pelo que ele teria efetivamente feito, mas pelo que é declarado oficialmente que ele teria feito. Tal celebração aliviaria os Estados Unidos da obrigação de enfrentar os preconceitos raciais sistemáticos que permeiam a sociedade norte-americana ao mesmo tempo em que incentivaria diversos atores a buscar soluções jurídicas para problemas políticos e culturais. Desta forma, segundo o autor, Brown serviria a uma função profundamente conservadora de desviar recursos de batalhas políticas substantivas, nas quais o sucesso seria possível, para batalhas jurídicas, nas quais não haveria possibilidade de sucesso (ROSENBERG, 2004, p. 207-208).

Desse modo, da leitura do autor sobre a análise de seus objetos de estudo, uma das mais importantes conclusões que se pode retirar é a importância do estudo empírico sobre os impactos destes tipos de litígio32. Segundo Rosenberg:

É claro que o direito importa e é claro que as pessoas reagiram à Brown, mas isso não significa automaticamente ou necessariamente que Brown tenha promovido a causa dos direitos civis. Tal alegação assume a importância de uma determinada instituição (a Suprema Corte dos Estados Unidos), e resultados particulares dessa instituição em vez de tratar a importância dessa instituição e resultados como uma questão para investigação empírica. No caso de Brown, este argumento credita sem qualquer crítica à Suprema Corte um grau de influência e poder que lhe falta (ROSENBERG, 2004, p. 207).

Cabe ressaltar que Rosenberg não considera que Brown foi decidido de maneira errônea. Também não afirma que o direito é irrelevante e que os tribunais nunca podem promover os interesses dos vulneráveis. O autor indica, no entanto, que nos casos em que o fizeram as cortes retiraram sua eficácia de um movimento político mais amplo que estava forçando as mudanças sociais almejadas. Nesse sentido, sua análise aponta que os tribunais, atuando sozinhos, como em Brown, estão estruturalmente impedidos de promover os objetivos das pessoas relativamente desfavorecidas. Isso porque as cortes teriam sido concebidas com severas limitações e estariam inseridas em um sistema político de poderes divididos. Por isso, para o autor, aqueles que celebram acriticamente decisões como a de Brown entenderam de maneira equivocada tanto os limites inerentes dos tribunais quanto as lições da história, e estariam turvando a visão dos demais com uma crença ingênua e romântica no triunfo dos direitos sobre a política (ROSENBERG, 2004, p. 208).

3.1.2 Mais além da decisão

Em resenha crítica sobre o livro The Hollow Hope - Can courts bring about social change? (1991), de Gerald R. Rosenberg, Michael McCann, autor tido por Garavito e Franco (2010) como um dos maiores representantes da corrente construtivista, realiza afirmação que sintetiza o calibre de lente proposto para uma abordagem mais ampla dos estudos sobre o uso de litígios para realização de mudanças sociais. O trecho - quiçá longo - é bastante elucidativo:

O argumento conclusivo de Rosenberg de que os limitados impactos judiciais identificados pelo autor confirmariam a pobreza das táticas jurídicas não é demonstrado por seu estudo empírico. A razão é que, mesmo que se aceite seu argumento de que os tribunais por si só raramente ‘produzem mudanças sociais significativas’ - como, literalmente, eu aceito -, isto não é muito revelador sobre como ou porquê as pessoas litigam e empregam táticas jurídicas. Seu estudo não se concentra nem nas práticas reais de advocacia jurídica nem nas intenções, entendimentos e projetos táticos daqueles que se envolvem em tais práticas. Seus dados agregados sobre os efeitos das políticas nacionais podem ser reveladores sobre alguns tipos de impactos, mas deixam os atores jurídicos - especialmente os não judiciais - e os próprios movimentos de reforma sem serem examinados. Rosenberg oferece pouca avaliação sobre as opções concorrentes disponíveis para as táticas de movimento, tampouco discorre sobre efeitos potencialmente empoderadores para além das mudanças políticas almejadas, ou variações de impacto em diferentes arranjos que podem qualificar as estatísticas de massa agregadas” (MCCANN, 1992, p. 728).

McCann segue afirmando que Rosenberg pode estar certo em suas conclusões sobre a capacidade das cortes em realizar mudanças sociais e sobre quais condições favorecem tais transformações. Contudo, pontua que ele apresenta seus achados a partir de poucas páginas de análise política sem considerar um estudo detalhado sobre os contextos específicos que envolvem o litígio. Segundo o autor, Rosenberg consideraria de maneira muito precipitada todos os litigantes envolvidos nestes tipos de litígio como vítimas do “mito dos direitos” mencionado na seção anterior. Além disso, o autor de Hollow Hope consideraria frequentemente que os advogados ativistas desviariam as lutas de reforma para infrutíferas campanhas de litígio, mas não examinaria nenhum advogado ativista em detalhe, além de ignorar a literatura acadêmica contrária e deixar de lado as muitas maneiras que o litígio poderia complementar ou mesmo competir com outras táticas dos movimentos. Como resultado, as conclusões de Rosenberg sobre os julgamentos chegariam perto de “culpar a vítima” - ou pelo menos seus advogados - por não alcançarem seus objetivos sem examinar as razões que os levaram a agir do modo como o fizeram (MCCAN, 1992, p. 729).

Para McCann, não se trata de se contrapor à Visão Restrita dos Tribunais e nem de se posicionar como partidário da Visão Dinâmica das Cortes. De fato, o autor indica que já há algum tempo a Visão Dinâmica, que teria estado em alta nos anos 1960, havia sido superada, tendo as percepções muito otimistas em relação aos benefícios dos tribunais ativistas ficado para trás. Nesse sentido, as décadas que se seguiram à esta aura esperançosa em torno do uso das cortes teriam, graças à experiência política local e aos estudos empíricos realizados, alimentado uma espécie de desilusão generalizada sobre a utilidade limitada das táticas jurídicas para “o avanço da justiça” (MCCANN, 1992, p. 730).

A divergência entre os autores é sobretudo metodológica. Para McCann, o modelo elaborado por Rosenberg para a compreensão dos impactos judiciais na luta política e na mudança social é limitado. Para compreender a distinção de abordagens propostas, o autor distingue dois tipos de análises sobre estes tipos de litígio: a “centrada na corte” (court centered) e “centrada na disputa” (dispute-centered). Nos termos utilizados por Garavito e Franco (2010), podemos tratar as abordagens “centradas na corte” como neorrealistas e as análises “centradas na disputa” como construtivistas.

Para McCann (1992, p. 731), é possível classificar a análise empreendida por Rosenberg como parte de uma abordagem “centrada na corte”. Sob esta perspectiva, há grande ênfase na análise da causalidade entre a decisão, seu cumprimento e a consideração da transformação social decorrente. Assim, considera-se que a mudança social poderia ser avaliada a partir da reação dos agentes diretamente afetados pelo caso, notadamente a partir do respeito às ordens emanadas pela corte. Sob esta visão, portanto, a avaliação da mudança social “efetiva” está estritamente ligada à ideia de cumprimento dos objetivos estabelecidos pelo tribunal33. Nesta leitura, então, as decisões judiciais fornecem seus próprios critérios de avaliação determinantes e conhecidos, e toda avaliação sobre o impacto de um caso está ligada diretamente ao cumprimento (compliance) das decisões34.

A análise “centrada na disputa”35 segue caminhos distintos em relação a alguns destes pontos. Assim como Rosenberg e como a abordagem centrada na corte, esta perspectiva defende uma abordagem cética, contingente, empiricamente fundamentada e que tome em conta o contexto específico do caso para a análise. Contudo, diferente da perspectiva adotada pelo autor de Hollow Hope, a visão centrada na disputa se baseia em premissas básicas e percepções que Rosenberg ignora. A primeira delas está em focar a atenção também em atores que não estão envolvidos diretamente no litígio como partes integrantes da relação processual, considerando também aqueles que estão lidando com o conflito em questão em relações de disputas duradouras. Assim sendo, as lutas sociais passam a ser elas próprias o centro da análise, o que transforma os atores em algo maior do que apenas “indivíduos que reagem às ordens judiciais” (MCCAN, 1992, p. 731)36.

Apesar desta leitura compartilhar a visão de que as cortes podem possuir pouco impacto direto na mudança e de que os tribunais quase nunca causarão a mudança de modo unilateral, a abordagem sobre a “visão centrada na disputa” não considera que os tribunais não geram qualquer tipo de consequência. Esta alteração de leitura se dá pelo sopesamento diverso dado pelas abordagens aos efeitos diretos e ao cumprimento como principal fator para avaliação da mudança social:

A corajosa conclusão formulada por Rosenberg de que os tribunais têm pouco impacto direto - e que quase nunca “causam” unilateralmente - a maioria dos aspectos do comportamento dos cidadãos é, portanto, uma suposição rotineira nesta estrutura alternativa.

Que os tribunais só raramente se envolvem diretamente na maioria das disputas dificilmente significa que sejam inconsequentes, no entanto. Se os efeitos diretos importam muito menos do que o modelo (...) do tribunal de Rosenberg sugere, então os efeitos indiretos importam muito mais na estrutura descentralizada. E estes últimos são mais significativos em grande parte porque envolvem uma ampla gama de manifestações desprezadas pelo foco de Rosenberg no cumprimento (...). Como John Brigham conclui sobre o primeiro ponto, o simples “cumprimento é uma parte muito pequena das consequências políticas das decisões da Suprema Corte” (MCCAN, 1992, p. 732).

Em síntese, sendo uma análise cujo foco está para além da verificação do “cumprimento” das decisões, a visão descentralizada enfatiza que as normas jurídicas articuladas judicialmente tomam vida própria à medida em que são implementadas na ação social prática. Isto aponta para o que muitos acadêmicos se referem como “a capacidade constitutiva do direito”: O conhecimento jurídico prefigura em parte os termos simbólicos das relações materiais e se torna um recurso potencial em lutas contínuas para reconfigurar essas relações (MCCAN, 1992, p. 733).

Segundo McCann (1992, p. 735), a maioria dos estudos acadêmicos centrados em disputas têm se concentrado em táticas jurídicas e limitações existentes a partir de análises feitas sobre conflitos civis de pequena escala entre indivíduos e pequenos grupos. Alguns estudos, no entanto, aplicaram a abordagem a conflitos públicos de maior escala e campanhas de reforma.

Este segundo tipo de estudos normalmente focaliza menos sua análise na pergunta sobre se os tribunais “produzem” as mudanças pretendidas e mais em uma avaliação sobre as várias maneiras pelas quais os ativistas que buscam a transformação social empregam os recursos jurídicos para realizar suas campanhas em múltiplos locais para além dos tribunais. O resultado, na maioria dos casos, é um olhar mais complexo sobre as implicações da ação jurídica para a definição da agenda política, construção de movimentos, esforços de negociação, desenvolvimento de programas de soluções mais amplos, e até mesmo avaliações sobre a transformação pessoal dos atores envolvidos. Esta abordagem distinta evidentemente implica em uma compreensão diferente do papel do litígio na reforma almejada (MCCAN, 1992, p. 736).

No que tange ao caso Brown v. Board of Education, por exemplo, McCann apresenta análises distintas das realizadas por Rosenberg. Não porque Rosenberg ignorasse os efeitos indiretos do litígio, mas porque os aborda e avalia de modo diferente. Em sua análise, Rosenberg considera que Brown poderia ter gerado uma contribuição para a promoção dos direitos civis de duas maneiras: (i) De modo mais direto, poderia ter acabado diretamente com a segregação racial nas escolas públicas - uma abordagem de cumprimento, portanto - e (ii) De modo mais sutil, a decisão poderia ter contribuído indiretamente para a mudança, no sentido de que Brown poderia ter inspirado indivíduos para agir ou persuadi-los a examinar e mudar suas opiniões sobre a discriminação racial. Nesse âmbito sutil, a decisão poderia, ainda, ter atribuído importância aos direitos civis ao colocá-los na agenda política, ou ter proporcionado legitimação ao movimento de direitos civis, ou, ainda, ter criado pressão para a ação governamental. Em outras palavras, segundo Rosenberg, Brown poderia ter servido como um símbolo poderoso, podendo ser fonte e ferramenta para a mudança. Estes seriam os efeitos indiretos a serem analisados pelo autor (ROSENBERG, 2004, p. 205).

Ocorre que, segundo a avaliação de Rosenberg (2004, p. 206), há pouca ou nenhuma evidência a corroborar as alegações de que Brown teria dado destaque e saliência aos direitos civis, ou de que tenha pressionado as elites políticas a agir, ou que, finalmente, tenha instigado a consciência dos brancos e legitimado as queixas dos negros. Para o autor, também não haveria evidências suficientes a comprovar que o caso teria inspirado os ativistas da sociedade civil ou outros movimentos de direitos.

Para sustentar tais afirmações, Rosenberg afirma que a cobertura da imprensa sobre os direitos civis não aumentou de uma maneira sustentada até os anos 1960. Além disso, o aumento da legislação sobre direitos civis no Congresso teria ocorrido não em resposta ao caso Brown, mas sim às preocupações eleitorais decorrentes dos anos 1950 levadas a cabo pelos movimentos de direitos civis dos anos 1960. Além disso, as ações presidenciais que colaboraram para a dessegregação teriam ocorrido em resposta às ameaças de violência, e não a partir das afirmações constitucionais de um princípio. Finalmente, o autor pontua que não haveria evidências de que Brown tenha influenciado a opinião pública e nem, surpreendentemente - afirma o autor - haveria muitas evidências que apoiassem a alegação de que Brown tenha instigado o movimento de direitos civis. Em síntese, portanto, Rosenberg conclui que os dados sugeririam que o grande impacto positivo de Brown teria se limitado a reforçar a crença em uma estratégia jurídica de mudança daqueles já comprometidos com tal tática (ROSENBERG, 2004, p. 206)37.

Contudo, para McCann (1992, p. 736), uma análise a partir da visão centrada na disputa consideraria que pouco importariam muitos dos dados juntados pelas fontes de Rosenberg. Isso porque, sob esta perspectiva, o foco inicial na análise sobre o impacto judicial deveria se dar especificamente sobre as partes primárias no conflito inicial - ou seja, sobre brancos e negros organizados no Sul dos Estados Unidos. Nesse sentido, segundo o autor, os principais estudiosos sobre os movimentos locais contariam uma história que não só diferiria um pouco da apresentada por Rosenberg, mas também teria paralelos com narrativas de outros analistas com perspectivas “orientadas para a disputa” que analisaram os mesmos fatos.

Estes estudiosos teriam documentado longamente o impacto significativo de Brown sobre a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP), sobre os negros localizados no Sul dos Estados Unidos e sobre a classe média, enfatizando especialmente o papel crucial de liderança da NAACP para a posterior mobilização política em torno dos direitos civis. McCann cita ainda o trabalho do sociólogo Aldon Morris, que teria demonstrado, por exemplo, que os ativistas locais da NAACP “foram os líderes que encabeçaram a resistência da comunidade negra”, tendo Brown sido crucial para este papel de liderança e para a evolução do radicalismo de duas maneiras. Primeiro, o caso teria demonstrado que a estrutura do poder branco no sul dos EUA era vulnerável em alguns pontos, além de ter fornecido alguns recursos práticos - ainda que escassos - para a ação desafiadora. Segundo Morris

A vitória da decisão de 1954 foi o tipo de vitória que a organização precisava para reunir as massas negras por trás de seu programa; ao apelar para o desejo generalizado dos negros de matricular seus filhos nas escolas brancas mais bem equipadas, ela alcançou os lares de negros e teve significado para a vida pessoal das pessoas (MCCANN 1992, p. 736).

Em segundo lugar, a crescente pressão sobre a estrutura de poder branca do Sul para abolir a dominação racial levou a um ataque maciço e altamente visível contra a NAACP, incluindo investidas jurídicas contrárias à associação e mesmo a intimidação violenta. Estas reações, por sua vez, forçaram uma divisão entre os líderes locais da NAACP filiados à igreja, que buscavam formas mais radicais de ação de protesto, e a organização nacional burocrática com atuações voltadas ao mundo jurídico. O resultado foi um aumento acentuado tanto no ímpeto da campanha de protesto popular entre os negros do Sul em geral quanto na frustração sobre a eficácia das táticas jurídicas por si só. Segundo Morris: “As duas abordagens - ação jurídica e protestos de massa - entraram em um casamento turbulento e funcional”. Ademais, segundo as análises pontuam, foi o aumento do conflito entre brancos e negros decorrente de ambas as táticas que permitiu a expansão do escopo da disputa para incluir outros tribunais, a mídia do norte do Estados Unidos e, finalmente, mobilizar a opinião pública nacional (MCCANN 1992, p. 736).

Como se pode notar, estes seriam impactos para além da análise sobre eventual cumprimento das ordens dadas pela corte. Nesse sentido, McCann (1992, p. 737) reconhece que Rosenberg pode ter acertado ao argumentar que as decisões judiciais não “causaram” unilateralmente apoio para a agenda dos direitos civis. Mas, para McCann, esta alegação estreita dificilmente refutaria que a tática jurídica pioneira da NAACP tenha figurado de forma proeminente na definição das disputas em torno dos direitos civis e na intensificação dos termos iniciais do conflito racial no Sul. Ao mencionar uma vez mais Morris, o autor retoma que “Seria enganoso apresentar as batalhas do tribunal sob uma luz estritamente jurídica”. Assim, a ação judicial teria sido um dos muitos fatores que desempenharam um papel na mudança almejada, mas isto dificilmente significaria que o litígio e as grandes vitórias judiciais foram uma dimensão sem consequências diretas na luta.

Ainda a partir de uma perspectiva mais ampla sobre as consequências dos litígios, a análise “centrada na disputa” sobre os casos que buscavam a equalização de salários para mulheres e homens nos Estados Unidos realizada por McCann trás outros achados importantes. Utilizando desta metodologia, que considera questões mais amplas do que o mero cumprimento, o autor observou que os atores sociais envolvidos nesta disputa sofreram com consequências relevantes a partir de outras interações com o direito. Nesse sentido, para McCann, o próprio enquadramento jurídico direcionado à busca por uma remuneração equitativa ao invés de uma remuneração igual teria sido desenvolvida por advogadas feministas, sindicalistas e agentes governamentais a partir da busca por novos direitos que teria se inspirado no legado de outros litígios antidiscriminação. Ao mesmo tempo, aponta o autor que as líderes do movimento nunca confiaram nos tribunais como os únicos ou os principais agentes de mudança, mas teriam se comprometido desde o início a usar táticas jurídicas para catalisar uma campanha de base entre as mulheres trabalhadoras de todo o país. Nesse sentido, segundo o autor:

Processos-chave nos tribunais (...) foram criativamente usados para campanhas de construção de “curto-circuito” no movimento de base. As principais decisões de apelação foram manipuladas para gerar um enorme grau de publicidade nacional para a causa - muito mais do que por qualquer outra tática - (...) dezenas de ações judiciais (...) foram efetivamente usadas como ferramentas de organização primária por sindicatos e grupos feministas” (MCCAN, 1992, p. 738).

Assim, para além de eventuais casos ganhos, McCann observou, a partir de entrevistas com líderes sindicais, trabalhadoras, aliadas feministas e advogadas, que a ação jurídica foi “uma das táticas políticas mais eficazes” e que “sua contribuição mais importante foi em relação à conscientização e organização política” (MCCAN, 1992, p. 738). Além disso, as entrevistas demonstraram também que as táticas jurídicas de alavancagem se mostravam como um componente crucial para uma atividade de negociação eficaz, propiciando às litigantes um maior poder para negociar com atores centrais para a efetivação da equalização de salários almejada38.

Apesar destas análises, McCann (1992, p. 739-740) ressalta que as abordagens centradas na disputa não são inerentemente mais otimistas ou pessimistas acerca das possíveis contribuições da ação jurídica para a justiça social em comparação à abordagem adotada por Rosenberg. Nesse sentido, muitos estudos centrados na disputa têm oferecido grandes motivos para o ceticismo sobre as potenciais contribuições da ação jurídica para as lutas específicas pela justiça na sociedade moderna.

Os debates sobre as abordagens distintas para avaliação dos litígios ressoaram para além dos Estados Unidos. Ao realizaram estudo de caso da Sentença T-025/2004, julgada pela Corte Constitucional Colombiana à respeito da situação sobre os deslocados forçados internos, Garavito e Franco (2010, p. 18 e 19) seguiram a mesma linha de McCann e passaram a defender uma aproximação teórica e metodológica mais ampla que considerasse não apenas os efeitos materiais imediatos, mas também as consequências indiretas e os efeitos simbólicos decorrentes das decisões em litígios estruturais. A escolha metodológica adotada pelos autores é inclusive informada pelo debate supracitado entre McCann e Rosenberg e se estabelece em diálogo com ambas linhas de pesquisa. Segundo Garavito e Franco (2010, p. 18), esta interação proposta teria recebido pouco destaque na literatura latino-americana até então.

De acordo com os autores, o estudo de caso sobre a T-025 tomou como ponto de partida a crítica construtivista da teoria neorrealista do direito e da sociedade, e os resultados da pesquisa teriam oferecido razões empíricas e metodológicas para apoiar tal decisão. Do ponto de vista empírico, entrevistas com os atores do caso, documentos analisados e a observação do processo de implementação da decisão teriam demonstrado que, assim como McCann sugere, os efeitos indiretos e simbólicos possuem consequências jurídicas e sociais tão profundas quanto os efeitos instrumentais diretos (GARAVITO; FRANCO, 2010, p. 27).

No caso em questão, a situação da população deslocada não teria mudado substancialmente no período entre 2004 e 2010, e as autoridades apenas teriam desempenhado de forma pouco convicta as tarefas ordenadas pela Corte Constitucional Colombiana. Neste sentido, um neorrealista - ou analista “centrado na disputa - como Rosenberg poderia concluir que a esperança que ativistas e deslocados depositaram no Tribunal teria sido em vão. Esta conclusão, no entanto, deixaria de fora consequências importantes da decisão que seriam repetidamente invocadas pelos entrevistados, tais como o aparecimento do problema do deslocamento interno na agenda pública, a mobilização social em favor dos direitos dos deslocados, a mudança na percepção da urgência e da gravidade do deslocamento na opinião pública e a transformação gradual do aparato estatal que atendia a população deslocada, entre outros (GARAVITO; FRANCO, 2010, p. 27).

4 Impactos e cumprimento: as questões atuais

O debate sobre cortes e transformações sociais permanece relevante. Nos últimos anos, as reflexões sobre a capacidade das cortes em realizar transformações sociais parecem ter mais reflexo nas questões relacionadas à judicialização de direitos econômicos, sociais e culturais (DESC). Apesar da existência de estudos que comprovem não haver grande diferença entre a implementação de sentenças em casos de direitos civis e políticos em comparação aos casos de direitos econômicos e sociais (ÇALI; KOCH, 2017), são os casos que buscam a atuação judicial para implementação e efetivação de direitos sociais que mais têm sido confrontados em termos de utilidade.

Em obra recente, Langford, Garavito e Rossi (2017) buscaram avaliar a denúncia realizada por alguns acadêmicos e advogados de que um número significativo de julgamentos sobre os DESC permaneceria não implementado. Partindo desta constatação, os autores buscaram avaliar qual o nível de cumprimento das decisões nestes tipos de casos, com o objetivo de verificar quais arranjos políticos e jurídicos e quais estratégias contribuiriam para promover o impacto e a implementação destas sentenças. De fato, trata-se de ponto de interesse relevante dado que, conforme afirma Daniel Brinks (2017, p. 475): “Ganhar não é tudo. Em verdade, ganhar uma sentença de um tribunal pode ser apenas a abertura numa campanha prolongada para fazer valer os direitos econômicos, sociais e culturais” (2017, p. 475).

Como se vê, as mesmas questões que ensejaram a evolução do debate sobre cortes e transformações sociais permanecem vivas. A partir de investigações empíricas, autores seguem investigando quais os fatores capazes de influenciar os níveis de cumprimento das decisões judiciais em casos que buscam a alteração das desigualdades estruturais e das relações de poder na sociedade (GOPPLEN, 2006) ou, de outro modo, a ampliação e equalização da posse e desfrute daquilo que é percebido como os bens básicos da sociedade (ROSENBERG, 2008).

Também segue atuante, de alguma maneira, a distinção entre as abordagens neorrealistas e construtivistas sobre a avaliação do impacto de litígios que buscam mudanças sociais. Isso porque, atualmente, difere-se de maneira explícita o cumprimento das decisões judiciais do impacto judicial. Segundo Kapiszewski e Taylor (2013, p. 807) “o impacto judicial é mais amplo do que o cumprimento: diz respeito ao efeito das decisões judiciais, além das ações ou mudanças de política que resultam diretamente delas”. No mesmo sentido, Langford, Garavito e Rossi (2017, p. 08) também diferenciam os termos ao afirmar que o impacto judicial significaria “a influência total ou o efeito de uma decisão, que pode ser maior do que a mera implementação da ordem”.

As avaliações sobre o impacto, contudo, evoluíram para além da tipografia que dividia os efeitos entre diretos e indiretos, instrumentais e simbólicos. Daniel Brinks e Sandra Botero trabalham de maneira mais aprofundada o conceito de impacto gerado pelas cortes, o definindo a partir de três lentes: (i) o que configura o impacto (what); (ii) como o impacto é criado (how) e (iii) onde está o impacto (where).

Em relação ao primeiro ponto, o impacto é tido pelos autores como composto por mudanças nos âmbitos ideacional, discursivo, organizacional e material atribuíveis a uma decisão judicial, além de compreender também alterações nos modos de vida que se seguem a essas mudanças primárias. Segundo Brinks e Botero, o impacto de uma decisão judicial é coproduzido pelo Estado e por atores sociais em interação com as cortes, em uma dinâmica que pode se iniciar antes mesmo da sentença (BRINKS; BOTERO, 2021, p. 1)39.

Sobre o modo de geração do impacto, Brinks e Botero afirmam que os tribunais e suas decisões não são capazes de gerar impacto e mudanças a ele relacionadas por si mesmos, apenas por meio de interações com outros atores sociais e políticos. Assim, no que tange à efetivação dos DESC, a contribuição das cortes seria transformar a estrutura normativa, tornando-se um ponto focal capaz de facilitar a coordenação entre os atores, remodelando assim as relações entre aqueles que realizarão o trabalho para além das paredes da sala de audiências. Desse modo, é a resposta desses atores à contribuição do tribunal, ou seja, a política que se segue a uma decisão, que produziria a mudança social (BRINKS, BOTERO, 2021, p. 04).

Finalmente, em relação ao terceiro ponto, Brinks e Botero afirmam que as decisões judiciais transformariam as relações entre atores em três diferentes campos: o social, o político e o jurídico (BRINKS, BOTERO, 2021, p. 04). Partindo desta análise, a dupla identifica tipos possíveis de impactos e relaciona as mudanças possíveis com os campos de atuação, considerando que o impacto é um fenômeno com dimensões múltiplas e consequências por vezes involuntárias (BRINKS, BOTERO, 2021, p. 05).

Interessante notar, ademais, que questões levantadas por Rosenberg ainda em 1991 permanecem sob outras roupagens. Daniel Brinks (2017) também se dedicou a refletir sobre as condições capazes de gerar desafios ou oportunidades para que os litigantes tornassem suas vitórias relacionadas aos DESC verdadeiramente efetivas. Tomando estudos empíricos como base para suas análises, o autor buscou organizar as diferentes variáveis que poderiam influenciar na implementação de casos desses tipos, chegando à uma máxima que expressaria uma espécie de teoria do cumprimento (theory of compliance, em inglês). Segundo o autor, haverá implementação das sentenças quando o custo do cumprimento das ordens for menor do que o custo do não cumprimento (BRINKS, 2017, p. 480).

Considerações finais

Desde a década de 1950 e, sob diferentes perspectivas, diversos autores refletiram sobre o impacto dos tribunais na realização de transformações sociais. A reconstrução realizada por este artigo buscou apresentar os motivos que levaram a busca pela mudança social às cortes, bem como procurou demonstrar diferentes abordagens para estudo sobre estes tipos de litígio. Ao final, o texto procurou demonstrar que há permanência destas temáticas na produção acadêmica recente, dado que há também a continuidade da litigância nesse sentido ao redor do mundo.

Com o aumento dos litígios deste tipo no Brasil, com a proposição de ações como as Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, que buscou o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional do Sistema Prisional Brasileiro, e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709, que buscou a determinação pelo Supremo Tribunal Federal de uma série de medidas a serem tomadas pelo Governo Federal para equacionamento do manejo da pandemia no Brasil no que tange aos povos indígenas, faz-se necessário o aprofundamento dos estudos nesta área. O presente artigo apresenta-se enquanto um esforço inicial neste sentido.

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1 Mestre em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas; Especialista em Direitos Humanos e Lutas Sociais pela Universidade Federal de São Paulo; Atua na área de Direitos Humanos, com particular interesse em questões relacionadas ao Direito Constitucional e ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9313-6924. E-mail: irene.bonetti@hotmail.com.

2 BROWN FOUNDATION. Brown Case – Briggs v. Elliott. Disponível em: https://brownvboard.org/content/brown-case-briggs-v-elliott. Acesso em: 17 mai. 2022.

3 A Décima Quarta Emenda aborda muitos aspectos da cidadania e dos direitos dos cidadãos.  A frase mais comumente mencionada do texto legal - e frequentemente utilizada em litígios - é a “proteção igualitária das leis”, que figura de forma destacada em uma grande variedade de casos de referência, incluindo Brown v. Conselho de Educação (discriminação racial), Roe v. Wade (direitos reprodutivos), Bush v. Gore (recontagem de eleições), Reed v. Reed (discriminação de gênero), e Universidade da Califórnia v. Bakke (cotas raciais na educação). Disponível em: https://www.law.cornell.edu/constitution/amendmentxiv . Acesso em 17 mai. 2022.9b.

4 JUSTIA. US Supreme Court. Briggs v. Elliott, 342 U.S. 350 (1952). Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/342/350/. Acesso em: 17 maio 2022.

5 A principal obra neste sentido é de Marc Galanter (1974). Para um panorama maior, ver McCammon e McGrath (2015).

6 A expressão “The Warren Court” refere-se ao período em que Earl Warren atuou enquanto Chief Justice nos Estados Unidos da América. Horwitz (1993) aponta que, durante estes anos, houve a segunda “revolução constitucional” da história estadunidense, precedida apenas pela New Deal Revolution que, em 1937, alterou fundamentalmente a relação entre o Governo Federal e os estados federados, bem como modificou as relações entre o governo e a economia naquele país. A revolução constitucional ocorrida na Warren Court Era estava baseada em duas concepções gerais: a primeira era ligada à ideia de “constituição viva”, uma constituição que evolui de acordo com as mudanças nos valores e nas circunstâncias, já a segunda era marcada pelo ressurgimento do discurso dos direitos como o modo constitucional dominante. Segundo o autor, a Warren Court foi a única configuração da Suprema Corte norte-americana a ter empatia com o que Horwitz denomina de “excluídos” (outsiders no termo por ele empregado): “ A Corte Warren era única. A Corte Warren foi a primeira Corte na história americana que realmente se identificou com (...) os excluídos, os marginais, os estigmatizados (...) Além disso, não apenas os negros, mas outras minorias - minorias religiosas, dissidentes políticos, ilegítimos, pessoas pobres, prisioneiros e criminosos acusados - receberam um tratamento simpático” (HORWITZ, 1993, p. 10).

7 Desse modo, enquanto a forma tradicional de advocacia seria “orientada ao cliente” (client-oriented, em inglês), isto é, voltada ao amparo de demandas individuais independentemente da análise de impactos mais amplos, o uso de litígios estratégicos está ligado à uma advocacia voltada à temas específicos ou política (issue-oriented ou policy-oriented, em inglês), no âmbito da qual serão avaliados os potenciais de determinado caso em uma perspectiva mais ampla (CARDOSO, 2011).

8 Ao refletir sobre sobre a Warren Court Era, Horwitz (1993, p. 07) avalia que, à época do julgamento de Brown pela Suprema Corte dos Estados Unidos, a probabilidade de uma decisão unânime da Corte para que a doutrina do “separate but equal” estabelecida no caso Plessy v. Ferguson fosse julgada inconstitucional era extremamente baixa. Segundo o autor, a decisão deste caso não pode ser avaliada como uma expressão inevitável dos ideais americanos à época: “Assim, a probabilidade de que a Suprema Corte reafirmasse a doutrina separados, mas iguais (separate but equal), sob um padrão muito rigoroso que, na maior parte da história americana, nunca havia sido aplicado, parecia bastante elevada. Consequentemente, Brown v. Conselho de Educação não era uma expressão inevitável dos ideais americanos. Ao contrário, foi um momento bastante surpreendente e talvez até milagroso na história constitucional americana”.

9 Évorah Cardoso (2011, p. 43 e 44) aponta que a cada momento do movimento do “direito de interesse público” é possível atribuir uma prática diferente de advocacia e litígio. Segundo a autora, o formato tradicional das entidades de interesse público são escritórios de assistência judiciária gratuita, nos quais não havia a seleção de casos paradigmáticos ou mesmo uma seleção temática para atuação, mas apenas uma atendimento às demandas apresentadas de acordo com limites orçamentários existentes; em uma atuação mais próxima à advocacia client-oriented, mas com objetivos que não se restringiriam à satisfação do interesse do indivíduo, buscando também a transformação social trazida pelo acesso ao direito por parte desses grupos marginalizados. De outro lado, entidades policy-oriented também fizeram parte do movimento de direito de interesse público, mas a partir da seleção de casos paradigmáticos que gerassem o máximo de impacto dentro dos objetivos traçados pela entidade, com benefícios estendidos a uma coletividade. Ambas as frentes de advocacia são reconhecidas como parte do movimento de direito de interesse público, embora tenha sido a partir da segunda que se desenvolveu a prática de litígio estratégico. Contudo, é preciso ressaltar que o litígio é apenas uma das ferramentas utilizadas pelos centros de direito de interesse público, que também podem atuar, por exemplo, via lobby legislativo ou por meio de campanhas públicas de reconhecimento de direitos.

10 Segundo Strossen (1991, p. 1951), o WRP foi um dos principais atores no campo do litígio sobre os direitos das mulheres, tendo participado, entre 1969 e 1980, de sessenta e seis por cento dos casos ligados à discriminação em razão do gênero decididos pela Suprema Corte. O caso Reed v. Reed foi o primeiro apresentado pela organização a chegar à Suprema Corte. Nele, o WRP questionou legislação estatal que estabelecia que homens teriam prioridade para administrar bens de herdeiros em casos de sucessões. Nesta decisão histórica, a Suprema Corte decidiu que o tratamento diferenciado entre homens e mulheres, baseado unicamente no gênero, viola a cláusula de proteção igualitária da décima quarta emenda da Constituição dos Estados Unidos da América.

11 Ao lado das Cortes Constitucionais da Índia e da África do Sul, Garavito e Franco (2010, p. 16) apontam a jurisprudência da Corte Constitucional Colombiana, que, nos últimos anos, tem se afirmado enquanto uma exportadora de jurisprudência constitucional e de inovações institucionais para assegurar o cumprimento de decisões ambiciosas de garantia de direitos. Experiências deste tipo são categorizadas por Garavito (2009) como partes de uma tendência internacional que atribui um protagonismo aos juízes constitucionais na realização dos direitos, identificados pelo autor a partir de um “neoconstitucionalismo progressista”. Além da experiência indiana com temas sociais estruturais como a fome e o analfabetismo, e africana, que converteu a Corte Constitucional em um espaço institucional fundamental para a promoção de direitos e para obrigar o Estado sulafricano a tomar ações contra o legado social e econômico do apartheid, Garavito e Franco citam também algumas cortes argentinas, que teriam agido em casos como a seguridade social e questões conexas à área da saúde.

12 De fato, no Brasil, conforme se verá a seguir, após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e sua extensa carta de direitos, houve uma alteração significativa do mapa da advocacia de interesse público, que passou a se concentrar na efetividade e implementação dos direitos amparados pela Carta (VIEIRA e ALMEIDA, 2011).

13 Groterhorst aponta que durante o período de transição constitucional de regimes autoritários para regimes democráticos na América Latina as reformas constitucionais causaram grande impacto nos diversos países do continente, que foram diversos em cada localidade. Enquanto na Bolívia a criação do Estado Plurinacional gerou grande impacto político, a Argentina, o Brasil e a Colômbia tiveram consequências mais ligadas à nova forma de agir do Poder Judiciário, que passou a discutir especialmente questões de políticas públicas (implementação, dotação orçamentária, responsabilidade institucional, público-alvo), antes delegadas prioritariamente à esfera eminentemente política (GROTERHORST, 2020, p. 39).

14 Espécie de constituição diretiva, a constituição transformadora difere-se por estabelecer um programa vinculante de transformação social, incluindo, em sua forma ideal (i) formas de ação das autoridades do Estado para mudanças sociais; (ii) prazos para atender a certos objetivos (execução de partes dos programas sociais) e (iii) ações jurídicas que objetivam assegurar a efetividade das regras de transformação (VIEIRA; DIMOULIS, 2018).

15 BILL OF RIGHTS INSTITUTE. Handout: I Have a Dream: Martin Luther King, Jr. and Identity. Disponível em: https://billofrightsinstitute.org/activities/i-have-a-dream-handout-a-narrative. Acesso em: 25 maio 2022.

16 Segundo Oscar Vieira Vilhena (2008, p. 223-225), uma série de leis promulgadas antes da abolição final ocorrida em 1888 teria oferecido a advogados e a ativistas políticos algumas possibilidades para a luta pela liberdade individual de pessoas escravizadas, o que teria reforçado a luta pela abolição. Tais “batalhas jurídicas” ocorriam em paralelo a rebeliões e às fugas generalizadas e formação dos Quilombos. Neste contexto, apresenta-se como fundamental a atuação de Luiz Gama.

17 Além do uso do direito para proteção da liberdade de pessoas escravizadas realizada por Luís Gama, Oscar Vieira Vilhena (2008, p. 226) aponta medidas jurídicas utilizadas por Ruy Barbosa para promoção dos direitos e garantias individuais como uma das forças que contribuíram para o desenvolvimento do direito de interesse público no Brasil. Como resultado da atuação jurídica de Barbosa, o Supremo Tribunal Federal superou a tradição americana denominada de “Questão Política”, que era utilizada pelo judiciário para evitar suas responsabilidades na invalidação de leis e atos administrativos que restringissem direitos fundamentais. Ainda, Barbosa teria influenciado diretamente o então Ministro do Supremo Tribunal Federal Pedro Lessa no aceite da ideia de revisão judicial constitucional, o que garantiu a cada juiz do país o poder de declarar a inconstitucionalidade de uma lei na análise de casos.

18 Períodos autoritários também assistiram a práticas que, posteriormente, puderam ser lidas como ligadas ao movimento do direito de interesse público. Durante a Era Vargas, entre 1930 e 1945, diversos advogados utilizaram táticas jurídicas para proteger dissidentes políticos e líderes sindicais contra o regime. Durante o Regime Militar (1964-1985), uma experiência mais orgânica da experiência da advocacia de interesse público e ligada à proteção dos direitos humanos tornou-se visível. Como exemplo de organização ligada a estas práticas, cita-se a Comissão de Justiça e Paz criada pelo Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo (VIEIRA, 2008, p. 227-228).

19 Movimentos sociais também são indicados como partes deste processo de retomada das forças que ajudaram a contribuir para o desenvolvimento de um movimento de direito de interesse público no Brasil. Nesse sentido, Vieira (2008, p. 228 e 229) aponta a importância do Movimento Sem Terra (MST) que, ao final da década de 1980, criou um departamento jurídico dentro do movimento para apoiar suas atividades e proteger suas lideranças, bem como da Central Única dos Trabalhadores (CUT), cujo departamento jurídico atuava para garantir a realização de manifestações e a organização de sindicatos.

20 Segundo o Art. 5º, parágrafo primeiro da Constituição Federal de 1988: “§ ١º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” (BRASIL, 1988).

21 Segundo o Art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 1988).

22 Garavito e Franco indicam as obras de Arango (2005), Bilchitz (2007), Gargarella (2007) e Fredman (2008).

23 Garavito e Franco indicam as obras de Abramovich e Courtis (2004), Abramovich Añon e Courtis (2003), Coomans (2006) e Langford (2008).

24 Ao reconhecer o Estado de Coisas Inconstitucional dos deslocados forçados internos colombianos, a Sentença T-025 obrigou o Estado Colombiano a formular programas e políticas de assistência e atenção integral à população deslocada por força dos conflitos internos naquele país (RUSCHEINSKY, 2016, p. 154).

25 A principal obra de referência é de McCann (1994).

26 A principal obra de referência é de Rosenberg (1991).

27 A principal obra de referência é de Feeley e Rubin (2000).

28 Tal obstáculo está relacionado ao fato de que a judicialização das demandas requer o enquadramento jurídico daquilo que se pede aos tribunais. Segundo Rosenberg (2008, p. 10-11), a Constituição, e o conjunto de crenças que a rodeiam, não é ilimitada, de modo que há uma série de demandas que não são amparadas pelas normas jurídicas e tampouco pelas construções jurisprudenciais. Dado que a maioria da litigância para mudança social se apoia em reivindicações constitucionais de que os direitos estão sendo negados, pode haver grande dificuldade em transformar as mudanças almejadas em um argumento jurídico válido, impedindo os tribunais de ouvirem as reivindicações apresentadas.

29 Considerando que aqueles que buscam reformas sociais por meio dos tribunais muitas vezes o fazem devido à oposição existente às reformas nos demais Poderes, há a necessidade de independência judicial para a efetivação da mudança. Contudo, os afiliados à Visão Restrita apontam para uma ampla gama de evidências que sugeririam que não há um isolamento suficiente por parte dos tribunais para garantir tal eficácia. (ROSENBERG, 2008, p. 13).

30 O raciocínio considera que para que os tribunais, ou qualquer outra instituição, produzam efetivamente uma reforma social significativa, eles devem ter a capacidade de desenvolver políticas apropriadas e o poder de implementá-las. Isto, por sua vez, requer uma série de ferramentas que os tribunais, de acordo com os defensores da Visão Restrita, não possuem. Em particular, a implementação bem-sucedida de uma decisão requer poderes de execução e, dado o fato de boa parte das decisões dos tribunais em casos mudanças sociais requer a ação de outras pessoas, não há que se falar em autoexecução, o que gera um grande problema para a implementação (ROSENBERG, 2008, p. 15).

31 Desse modo, Rosenberg elabora três restrições às mudanças sociais que decorreriam da Visão Restrita dos Tribunais. A primeira afirma que a natureza limitada dos direitos constitucionais impede que os tribunais possam ouvir ou agir efetivamente sobre muitas reivindicações significativas de reforma social, além de diminuir as chances de mobilização popular (ROSENBERG, 2008, p. 13). A segunda aponta que falta ao Poder Judiciário a independência necessária em relação aos outros Poderes do governo para produzir uma mudança social significativa (ROSENBERG, 2008, p. 15). Por fim, a terceira considera que os tribunais não dispõem de ferramentas para desenvolver prontamente políticas apropriadas e implementar decisões que ordenem uma reforma social significativa (ROSENBERG, 2008, p. 21).

32 Sobre o tema, Michal McCann (1992, p. 721) comenta: “Em termos de coleta de dados, o trabalho (realizado por Rosenberg) reflete um nível de comprometimento e rigor por parte do autor que é exemplável no campo. Rosenberg possui grande base para desafiar seus colegas acadêmicos que estudam o poder das Cortes - tanto apoiadores quanto desconfiados - a comparar seus achados com novos estudos empíricos que possam enriquecer o debate sobre como e quando a ação jurídica importa”.

33 Segundo McCann (1992, p. 731), em tradução livre: “Se os juízes são os agentes legais e aspirantes a produtores de mudança a serem escrutinados, as reações dos cidadãos-alvo (massas e elites oficiais) são as principais medidas de quão eficazes tais ações são. Presume-se que a causalidade é iniciada no topo em uma fonte judicial discreta, e escorre para baixo sem direção na sociedade, se é que é alguma coisa. Este impacto [para Rosenberg], já vimos, pode ser direto (coerção) ou indireto (persuasão moral). Em ambas as formas de impacto, no entanto, o padrão primário de mudança efetiva é o cumprimento, ou ação afirmativa para os objetivos do tribunal pelas populações-alvo”.

34 Segundo Garavito e Franco (2010, p. 28), do ponto de vista metodológico, a epistemologia positivista dos neorrealistas implicaria uma ênfase quase exclusiva em técnicas de pesquisa quantitativa para medir os efeitos instrumentais diretos privilegiados por esta visão.

35 Segundo McCann (1992, p. 730), a abordagem centrada na disputa tem sido denominada a partir de diversos conceitos nas últimas décadas: “Entre as abordagens mais interessantes e proeminentes do estudo do direito que se desenvolveram nas últimas duas décadas estão as que poderiam ser chamadas de perspectivas “centradas em disputas” (ou descentralizadas). Embora tais estudos tenham sido identificados por vários rótulos - incluindo estudos de resolução de disputas, mobilização jurídica, ideologia jurídica e direito e sociedade - e divirjam em alguns aspectos, eles compartilham alguns entendimentos conceituais básicos”.

36 Segundo Garavito e Franco (2010, p. 28), contra a “metodologia unidimensional” neorrealista, a abordagem construtivista abre o leque de pesquisas para incluir, além de técnicas quantitativas (por exemplo, no Estudo de Caso realizado pelos autores, a análise de indicadores sociais sobre a população deslocada, a medição da cobertura da imprensa sobre o assunto antes e depois da sentença, etc.), a análise construtivista utilizaria técnicas qualitativas que capturariam os efeitos indiretos e simbólicos da sentença (por exemplo, entrevistas em profundidade com funcionários públicos, ativistas e pessoas deslocadas para investigar o impacto da sentença sobre suas percepções do deslocamento e suas estratégias em resposta a ele).

37 Michael McCann (1992, p. 722) critica os achados de Rosenberg. Segundo o autor: “Além disso, Rosenberg usa apenas citações seletivas de ativistas e observadores que apoiam seu posicionamento sobre a falta de efeitos indiretos do litígio, ignorando outros dados abundantes. Por exemplo, minha própria leitura de escritos e entrevistas com ativistas e líderes de direitos civis revelou muitas atribuições que contradizem a opinião de Rosenberg de que as decisões judiciais eram irrelevantes”.

38 Segundo McCann (1992, p. 738-739): “Tanto meus estudos de caso quanto minhas entrevistas demonstraram claramente que as táticas de alavancagem jurídica foram um componente crucial da atividade de negociação eficaz. ‘Nunca teríamos conseguido o plano de barganha sem esses processos estarem pendentes’, uma organizadora sindical feminina local resumiu em termos repetidos para mim infinitamente. Novamente, ativistas em todos os níveis classificaram a ação jurídica como uma das duas táticas mais eficazes para a mudança da política de negociação”.

39 O texto em questão denomina-se “A Matter of Politics: the Impact of Courts in Social and Economic Rights Cases” foi elaborado por Sandra Botero Cabrera e Daniel M. Brinks e disponibilizado em versão pre-print no curso Ph.D course University of Bergen (AORG908-H21) – Effects of Lawfare – Courts and law as battlegrounds for social change em agosto de 2021.