https://doi.org/10.18593/ejjl.30782
A INTERPRETAÇÃO EVOLUTIVA NO ÂMBITO DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
THE EVOLUTIONARY INTERPRETATION IN THE FRAMEWORK OF THE INTER-AMERICAN SYSTEM OF HUMAN RIGHTS
João Daniel Vilas Boas Taques1
Melina Girardi Fachin2
Resumo: Com base em referenciais nacionais e estrangeiros, a presente investigação, tem como objetivo precípuo analisar a utilização da técnica da interpretação evolutiva no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Almejou-se demonstrar, primeiramente, que os instrumentos de direitos humanos, dada a sua natureza especial, permitem uma interpretação dinâmica, a fim de alcançar a sua concretização. Após, buscou-se analisar como essa técnica vem sendo utilizada na interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos e a sua importância para a construção do corpus iuris interamericano. Por fim, a fim de demonstrar como se dá essa atividade hermenêutica, analisou-se alguns dos casos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em que a interpretação evolutiva foi utilizada.
Palavras-chave: Direitos humanos; Interpretação evolutiva; Sistema Interamericano de Direitos Humanos; Convenção Americana de Direitos Humanos.
Abstract: Based on national and foreign references, this research has, as its main object, the goal to study how the evolutive interpretation technique is being used by the Inter-American System of Human Rights. The aim was to demonstrate, firstly, that human rights, due to their special nature, do allow a dynamic interpretation in order to achieve their implementation. Afterwards, it was sought to analyze how this technique has been used in the interpretation of the American Convention on Human Rights and its importance for the construction of the inter-American corpus iuris. Finally, in order to demonstrate how this hermeneutic activity takes place, the study analyzes some of the cases judged by the Inter-American Court of Human Rights in which the evolutionary interpretation was used.
Keywords: Human rights; Evolutive interpretation; Interamerican System of Human Rights; American Convention of Human Rights.
Recebido em 19 de agosto de 2022
Avaliado em 22 de agosto de 2022 (AVALIADOR A)
Avaliado em 13 de abril de 2023 (AVALIADOR B)
Aceito em 15 de maio de 2023
Introdução
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, deu-se início a uma nova fase na ordem internacional. Pautada na proteção da pessoa humana, essa nova fase se destaca pela adoção de diversos instrumentos internacionais de direitos humanos, bem como pela criação dos sistemas global e regionais de proteção desses direitos.
Dentre esses sistemas merece destaque o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), criado pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Seu nascedouro se deu em uma época em que a região se encontrava dominada por governos autoritários, com sistemáticas violações dos direitos humanos, o que, somado à histórica desigualdade social e econômica, tornava imperativa a adoção de um sistema regional de proteção.
Desde então, seus órgãos – a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CoIDH) – vêm despendendo esforços com o intuito de criar uma cultura de proteção e promoção dos direitos humanos na região, a fim de estabelecer um patamar mínimo de proteção a ser observado pelos Estados membros.
Todavia, a região passou por profundas mudanças nesses mais de cinquenta anos desde a adoção da CADH. Não apenas a situação política e a sociedade se alteraram como, também, as ameaças que obstam a concretização dos direitos humanos, trazendo consigo novos desafios para o sistema. Assim, como pode o SIDH continuar sua missão de proteção dos direitos humanos na região? É, precisamente, essa a pergunta que se pretende responder.
Esta investigação, desenvolvida por meio da análise de bibliografia nacional e estrangeira, bem como da análise dos julgados e opiniões emitidos pela CIDH e CoIDH, tem como objetivo precípuo analisar a forma como o SIDH vem superando os limites textuais e temporais que lhe foram impostos, a fim de continuar a exercer sua função primordial.
A primeira parte da presente investigação objetiva demonstrar que os tratados de direitos são instrumentos vivos, de modo que sua interpretação deve se dar, à vista dos fundamentos e princípios que lhe regem, de forma dinâmica, atualizada, ao revés de uma interpretação originalista que poderia acabar por comprometer a proteção dos direitos lá tutelados.
Em seguida, almeja-se demonstrar que essa forma de interpretação, à vista dos dispositivos constantes da CADH, é não apenas possível e desejável no SIDH como, também, uma realidade, vez que o princípio do living instrument já foi incorporado ao corpus iuris interamericano.
Por fim, busca-se ilustrar como o SIDH vem aplicando a referida técnica em seus julgados, demonstrando a sua sobrelevada importância para a tutela dos direitos humanos na região.
1 A interpretação evolutiva dos direitos humanos
Ao tratar sobre o surgimento dos direitos humanos como conhecemos hoje, em especial a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), Bobbio estabelece que esses direitos são essencialmente históricos, isto é, são resultados da reação humana às condições existentes em um determinado momento (BOBBIO, 2004, p. 19). Para o autor, a ideia de que os direitos humanos podem escapar do fluxo da história represente um equívoco, mormente porque não são um produto natural, intrínseco à natureza humana, mas uma criatura da sociedade e, portanto, mutável como esta (BOBBIO, 2004, p. 20).
Nesse mesmo sentido, Lafer argumenta que os direitos humanos não são resultado da “coerção imposta pela natureza ou pela evidência racional, mas sim dos fatos históricos que tornaram politicamente viável e intelectualmente razoável a powerful eloquence que anima a tutela dos direitos humanos” (LAFER, 1988, p. 124-125).
Assim, pode-se compreender os direitos humanos como o resultado de um processo histórico de luta, afirmação, negociação e renegociação que acaba, consequentemente, por situá-los historicamente, interligando-os com um determinado momento no fluxo da história.
A própria DUDH, que inaugurou essa nova fase de proteção à pessoa humana, representa para Bobbio apenas um “ponto de partida para uma meta progressiva” (2004, p. 20), e não um instrumento definitivo e exaustivo para a proteção dos direitos humanos, vez que, em razão das mudanças operadas na sociedade, sua redação e proteção correm o risco de se tornarem defasadas e insuficientes. Sua atualização, por outro lado, representa um desafio para a ordem internacional (BOBBIO, 2004, p. 21).
Assim, apresenta-se a seguinte questão: como evitar que os instrumentos de direitos humanos – e seu arcabouço protetivo – se tornem obsoletos?
Pergunta semelhante foi levantada em 1975, ano em que se comemorava os 25 anos da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), por Max Sørensen, então juiz da Corte Europeia de Direitos Humanos (CoEDH), que proferiu um discurso com base na seguinte problemática: os direitos protegidos pela CEDH, redigida em 1950, possuem a mesma relevância em 1975? (DJEFFAL, 2016, p. 276).
Para o magistrado, a Europa sofreu, nesse ínterim, profundas mudanças de ordem social, política e econômica, de modo que os direitos estabelecidos na CEDH – redigida em um ambiente pós-guerra – não seriam de todo adequados para o momento histórico então vivenciado. Para Sørensen, a resposta residia na interpretação evolutiva dos tratados. O magistrado, logo na primeira linha da conclusão do seu discurso, afirmou que “a Convenção Europeia de Direitos Humanos é um instrumento vivo” (tradução nossa) (SØRENSEN, 1975 apud DJEFFAL, 2016, p. 277), vez que seu sentido, quando da interpretação e aplicação pela CoEDH, torna-se passível de mudanças, mudanças estas que tem o condão de manter a eficácia desse instrumento.
Três anos depois, em 1978, referida tese veio a ser colocada em prática pela primeira vez. No caso Tyrer vs. Reino Unido, alegava-se que a administração da Ilha de Man, ao impor castigos físicos ao peticionante, teria incorrido em violação dos artigos 3º, 8º, 13º e 14º da Convenção Europeia (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 1978).
A Corte decidiu que, diante dos avanços ocorridos nos Estados signatários da Convenção, punições físicas não poderiam mais ser entendidas como razoáveis, ainda que leves. E, nessa linha, a Convenção e suas disposições deveriam se tornar mutáveis, vivas, a fim de abarcar esse novo entendimento:
[...] A Convenção é um instrumento vivo, como sublinhou com razão a Comissão, e deve ser interpretada à luz das condições atuais. No caso em tela, a Corte não pode deixar de ser influenciada pelos desenvolvimentos e padrões comumente aceitos na política penal dos Estados Parte do Conselho da Europa (tradução nossa) (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 1978).
Com esse julgamento, inaugurou-se, então, a doutrina do living instrument no âmbito dos tratados de direitos humanos – doutrina esta que, como se verá adiante, mostra-se de extrema importância na atuação dos sistemas internacionais de direitos humanos.
O referido princípio, contudo, não foi apresentado de forma suficientemente clara, não tendo a Corte definido o que seria tal modalidade de interpretação, como esta se dá e, principalmente, quais seriam os seus fundamentos (MAROCHINI, 2014, p. 78). Surgiu, portanto, uma nova questão: o que é a interpretação evolutiva? E como esta se dá no âmbito do corpo iuris dos direitos humanos?
Muito embora possuam características que lhe são particulares e, portanto, o diferenciam dos demais tratados (MCGROGAN, 2014, p. 347-348), os tratados de direitos humanos, enquanto instrumentos firmados por Estados, pertencem ao plano internacional e devem obediência às normas e princípios que o regem, em especial a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT) (MCGROGAN, 2014, p. 349-350).
Para McGrogan, a observância dessas normas internacionais, em especial da CVDT, tem como objetivo fortalecer o regime internacional dos direitos humanos, conferindo-lhe verdadeiro status de norma internacional e, consequentemente, a legitimidade necessária para que os Estados se vejam obrigados a observar e respeitar essas normas (2014, p. 349-350).
Com relação à CVDT, esta estabelece, em seu artigo 31, que um tratado deve ser interpretado de boa-fé, segundo o sentido comum dos termos lá constantes e, ainda, à luz de seu objetivo e finalidade.
E é nesta parte final que reside o fundamento precípuo da interpretação evolutiva. Se quando da interpretação dos tratados há que se observar o seu objetivo e finalidade, a interpretação dos instrumentos de direitos humanos deve se dar à vista, por óbvio, da proteção da pessoa humana, posto que se trata do objetivo único dessa ordem legal. É a sua raison d´être, o objetivo último a ser perseguido, bem como o elemento que o distingue dos demais instrumentos da ordem internacional.
Os tratados de direitos humanos, de um lado, encontram fundamento no direito internacional e nos atos dos Estados, mas, de outra vértice, extraem sua força do ordenamento suprapositivo, dos direitos fundamentais e essenciais à pessoa humana, que acabam por lhes conferir uma natureza especial, distinguindo-os dos demais instrumentos da ordem internacional e dando azo a novas e diversas formas de interpretação e aplicação (NEUMAN, 2008, p. 11; MCGROGAN, 2014, p. 347-348).
O fato de os tratados de direitos humanos criarem obrigações e direitos é outra característica que os diferencia dos demais instrumentos da ordem internacional, bem como dá maior ensejo à aplicação dessa forma de interpretação (LIXINSKI, 2010, p. 589). Como firmado pela CoEDH no caso Wemhoff v. Alemanha, sendo um tratado que dá origem a direitos, sua interpretação deve sempre se dar no sentido de concretizar estes.
E com o objetivo de conservar sua efetividade, adota-se, no âmbito dos tratados de direitos humanos, uma interpretação teleológica, isto é, uma intepretação que leva em consideração a finalidade almejada por aquele instrumento.
Trata-se, pois, da aplicação do princípio pro persona (ou pro homine), segundo o qual a interpretação dos tratados de direitos humanos deve ser sempre pautada na maior proteção dos indivíduos, ainda que em detrimento de outras normas internacionais, mantendo, assim, o seu sentido (NARVÁEZ; RAMÍREZ, 2017, p. 314). Ao final, a proteção do indivíduo é o seu objetivo precípuo, de modo que toda atividade jurisdicional deve ser humanizada, isto é, pautada na pessoa humana.
De acordo com Rodiles, referido princípio permite que o magistrado extrapole, em um sentido positivo, o núcleo de determinado direito humano, com o objetivo único de expandir seu significado (RODILES, 2016). Assim, “todos os direitos são analisados sob a ótica dos direitos humanos” (tradução nossa) (RODILES, 2016).
Ainda, tal princípio deve ser combinado com outro, o princípio do effet utile (efeito útil), segundo o qual a interpretação dos tratados deve se dar de modo a lhes dar “o seu maior peso e efeito” (tradução nossa) (FITZMAURICE, 1957, p. 211), princípio este que encontra previsão na parte final do já citado art. 31 da CVDT, “à luz de seu objetivo e finalidade”.
Conjugados esses princípios, e objetivando evitar uma limitação quando da interpretação em prejuízo destes, surge, então, a possibilidade de se adotar uma interpretação evolutiva dos tratados de direitos humanos, também conhecida como “doutrina do living instrument”, segundo a qual se permite que um termo seja interpretado de maneira diferente com o passar do tempo sem que haja, contudo, uma alteração textual no corpo do tratado (LO, 2017, p. 257). Ao invés de se analisar o tratado com base no significado que lhe era atribuído quando da sua redação, adota-se o seu “sentido ordinário comumente entendido quando do surgimento da disputa” (tradução nossa) (LO, 2017, p. 257).
Seu fundamento é que determinado dispositivo, tal como a sociedade que o criou, pode evoluir com o passar dos anos, assumindo novos significados e características, muito embora a sua redação permaneça a mesma. Como se fosse um instrumento vivo (living instrument), o tratado se modifica a fim de se adequar à nova situação na qual se insere, de modo a preservar seu objetivo (pro homine) e sua adequada aplicação (effet utile):
Uma maneira importante de garantir que um tratado é um “instrumento vivo”, ao invés de permitir que se torne um “tratado morto”, é por meio de uma interpretação evolutiva, em que novas ideias e conceitos podem ser introduzidos no entendimento ordinariamente adotado na interpretação dos termos e dispositivos (tradução nossa) (LO, 2017, p. 260).
A interpretação evolutiva, no entender de Graham, consubstancia-se em algo desejado, necessário e até mesmo esperado dos tratados internacionais, vez que sendo os fatos atuais, o direito irá, inexoravelmente, ser influenciado por essas circunstâncias contemporâneas (2006, p. 175-176).
Para o autor, ainda que se adote um viés originalista, a interpretação será, em maior ou menor grau, evolutiva: “A direção na qual a lei dobra é invariavelmente influenciada pelas visões do intérprete, que serão mais adequadas ao contexto legal atual do que por quaisquer crenças históricas mantidas pelo corpo legislativo que foi responsável pela promulgação da legislação” (tradução nossa) (GRAHAM, 2006, p. 175).
A adoção de uma perspectiva evolutiva privilegia o sentido atual da norma – sentido este que lhe é concedido pelas circunstâncias que envolvem o caso em análise –, ao invés de se ater ao sentido original da norma, que, ao seu turno, era resultado das circunstâncias então vigentes.
Todavia, a interpretação evolutiva não deve se dar de maneira ilimitada, como se os tratados fossem uma tela em branco a disposição dos órgãos judiciais que o interpretam. Afinal, ainda que a flexibilidade na interpretação seja desejada, uma atuação demasiada ativa neste sentido poderá elidir a legitimidade da norma (DZEHTSIAROU, 2011, p. 1733).
Assim, entende-se que existem algumas regras a serem observadas. Quando da interpretação, devem os órgãos judiciais e quasi judiciais observarem as normas de interpretação previstas não apenas na CVDT como, também, no próprio instrumento, bem como a atividade hermenêutica deve se basear nos dispositivos, na intenção das partes e nos objetivos deste (NARVÁEZ; RAMÍREZ; 2017, p. 305).
Tal método de interpretação é de extrema importância no âmbito dos direitos humanos, vez que muito embora os direitos e garantias protegidos nesses instrumentos sejam relevantes, seria um desafio, senão impossível, atualizá-los constantemente, em que novas negociações poderiam acabar por redefinir, ou até mesmo elidir, as proteções já previstas nos tratados (LO, 2017, p. 260-261).
Talvez por essa razão, os dispositivos de direitos humanos tendem a possuir uma redação não de todo delineada, com sentidos vagos (MCGROGAN, 2014, p. 347; KILLANDER, 2010, p. 149). Muito embora tal característica possua efeitos negativos (maior dificuldade em sua delimitação e, consequentemente, uma menor segurança jurídica), também pode ser vista enquanto uma vantagem.
Ora, quanto mais vago for o dispositivo, mais espaço haverá para a atividade hermenêutica, permitindo que os órgãos responsáveis pela interpretação utilizem essas normas enquanto uma simples base sobre a qual irão erigir uma ferramenta de proteção, mais adequada às circunstâncias atinentes ao caso concreto.
Assim, ainda que pertencentes ao regime internacional, os tratados de direitos humanos possuem um propósito diverso dos demais instrumentos internacionais e, por essa razão, deve ser adotada, quando da sua aplicação, uma interpretação mais dinâmica, a fim de garantir a efetividade e concretização dos direitos lá assegurados (LIXINSKI, 2010, p. 590).
Adotando-se a doutrina do living instrument, a proteção dos direitos humanos, tão importante para o regime internacional, não fica atrelada a um sentido antigo e, talvez, ineficaz, mas se adapta às reais condições da sociedade, evoluindo com esta. Afinal, como exposto no começo desse tópico, os direitos humanos são um produto da história, e devem apresentar uma resposta aos novos desafios que se assomam.
2 A interpretação evolutiva no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos
Formado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CoIDH), o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) representa “a consolidação de um constitucionalismo regional, que objetiva salvaguardar direitos humanos no plano interamericano. [...] Serve a um duplo propósito: promover e encorajar avanços no plano interno dos Estados; prevenir recuos e retrocessos no regime de proteção de direitos” (PIOVESAN, 2012, não paginado).
Seu fundamento principal se encontra na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), adotada em 1969 na cidade de San José, Costa Rica. Muito embora tenha sido criada à vista da DUDH e da CEDH, a Convenção Americana apresenta características distintivas destas, mais adequadas ao contexto experienciado pela região à época, diferentemente das democracias europeia já consolidadas, com diversos governos autoritários na região, além das graves diferenças socioeconômicas (PIOVESAN, 2012, não paginado).
O SIDH busca estabelecer, para a região, um piso protetivo mínimo a ser observado pelos Estados, promovendo a consolidação de uma cultura de respeito aos direitos humanos bem como impedindo retrocessos por parte dos países. Estes, ao adotarem a CADH, assumem uma dupla obrigação internacional, que se consubstancia, em primeiro lugar, no dever de não violar os direitos ali assegurados e, em segundo, o dever de adotar as medidas necessárias à proteção desses direitos (QUIROGA; ROJAS, 2007).
Entretanto, como esse sistema regional, efetivamente instaurado em 1978, mantém-se relevante até os dias de hoje? Como continuar cumprindo sua missão de proteger e estabelecer os direitos humanos na região?
Tanto da redação da CADH quando da atuação da CoIDH, é possível verificar que o Sistema Interamericano permite, de maneira bastante clara, uma interpretação evolutiva, a fim de continuar cumprindo o propósito estabelecido ainda em 1969.
O artigo 29 da Convenção veda que os dispositivos lá assegurados sejam interpretados com o objetivo de excluir, suprimir ou limitar os direitos e liberdades reconhecidos não apenas no seu corpo como, também, nas legislações nacionais e aquele reconhecidos enquanto “inerentes a personalidade humana e derivados da forma democrática de governo”.
De acordo com Hennebel e Tigroudja, essa última disposição separa o SIDH dos demais sistemas regionais de proteção de direitos humanos, que não possuem uma regra de interpretação desta extensão. Para os autores, o SIDH assumiu para si a missão de “revelar os direitos que são inerentes à personalidade humana e ao regime democrático” (tradução nossa) (2022, p. 835).
Referido artigo, no entender dos citados autores, mostra-se de extrema valia para a proteção dos direitos humanos no SIDH, vez que consagrou os dois princípios que, como visto alhures, guiam a interpretação dinâmica dos tratados de direitos humanos: o princípio pro persona e o effet utile (HENNEBEL; TIGROUDJA, 2022, p. 846).
A CoIDH, a quem compete a interpretação da CADH e de outros instrumentos de direitos humanos (art. 62, CADH), também já se manifestou nesse exato sentido: “ao interpretar a Convenção, a alternativa mais favorável deverá sempre ser escolhida para a proteção dos direitos protegidos pelo dito tratado, de acordo com o princípio da norma mais favorável ao ser humano” (tradução nossa) (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2005).
Nessa mesma linha, a CoIDH também já se manifestou, por meio da opinião consultiva nº 04/84, que quando da interpretação da Convenção, deve ser observado o contexto, objetivo e propósito do instrumento, tal como previsto na CVDT (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1984), firmando e legitimando seu entendimento, portanto, no direito internacional.
Desse modo, verifica-se que o SIDH já há muito consagrou o princípio pro persona, estabelecendo como objetivo precípuo da sua atuação a proteção da pessoa humana (NARVÁEZ; RAMÍREZ, 2017, p. 314). A dignidade da pessoa humana, os próprios direitos humanos tornam-se a lente sobre a qual as questões lá submetidas devem ser analisadas, norteando a atuação dos órgãos do sistema, bem como dos Estados-membros.
Sobre o tema, Pasqualucci argumenta que:
A Corte afirmou que a Convenção Americana deve “ser interpretada em favor da pessoa que é objeto de proteção internacional, desde que tal interpretação não resulte em uma modificação do sistema”. Sob o princípio pro homine, a dignidade da pessoa é uma preocupação primordial na interpretação dos direitos especificados no direito internacional dos direitos humanos e na Convenção Americana, em particular. A dignidade humana só pode ser alcançada se os direitos protegidos pela Convenção Americana forem “interpretados e aplicados de modo que suas garantias sejam realmente práticas e efetivas (effet utile)” (tradução nossa) (PASQUALUCCI, 2013, p. 12).
Igualmente prestadia a lição de Hennebel e Tirgroudja: “Com base nesse paradigma pro persona, os dois pilares dos métodos de interpretação são o método sistêmico, baseado em um corpus juris composto pelas normas do artigo 29-b, c e d e uma interpretação evolutiva e axiologicamente colorida” (tradução nossa) (2022, p. 846).
Assim, conjugando as normas dos tratados que lhe dão sustento, o SIDH adota uma interpretação mais dinâmica na construção do seu corpus iuris, dando sobrelevada importância às particularidades do direito internacional dos direitos humanos que, dada sua natureza de lex specialis, sobrepõe-se às normas ordinárias de direito internacional (LIXINSKI, 2010, p. 603-604).
Como bem pontuado pelo juiz Pazmiño Freire em seu voto concorrente no caso das Comunidades Indígenas da Associação Lhaka Honhat vs. Argentina: “É importante sublinhar que foi estabelecida uma hierarquia superior internacional de princípios e valores que constitui a base ontológica que fundamenta a interpretação e aplicação das provisões de direito internacional dos direitos humanos” (tradução nossa) (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2020).
Nessa mesma toada, afirma Neuman que:
A Corte invoca métodos gerais de interpretação de tratados, como os expressos na Convenção de Viena sobre o Direito do Tratados, mas também enfatiza que os tratados de direitos humanos têm um caráter próprio, estabelecendo normas objetivas para a proteção dos indivíduos e não obrigações recíprocas que beneficiam os Estados. Os termos usados pelo tratado devem possuir um significado autônomo em seu contexto, e não devem ser deixados para cada Estado decidir de acordo com sua lei interna (tradução nossa) (2008, p. 106).
Segundo Hennebel e Tigroudja, a aplicação do princípio da interpretação evolutiva – fundamentado no já citado artigo 29 – permitiu que o Sistema Interamericana efetivamente alterasse o escopo e o significado de algumas provisões estabelecidas na CADH (2022, p. 836).
Essa interpretação, contudo, não se dá apenas por meio de uma “atualização” dos termos lá dispostos, mas também pelo emprego de outros instrumentos de direitos humanos e de referências aos sistemas globais e europeus, formando um verdadeiro corpus iuris internacional (NEUMAN, 2008, p. 107). Assim, a interpretação evolutiva traz consigo não meramente uma modernização do sentido empregado aos direitos lá assegurados, mas uma verdadeira expansão, potencializando seu escopo protetivo e sua efetividade.
O emprego de elementos exteriores ao SIDH se justifica, principalmente, pelo caráter suprapositivo e universal dos direitos humanos. Suprapositivo porque, dada a sua importância e peculiaridades, não encontra restrições junto às normas ordinárias de direito internacional; universal porque “a unidade da natureza do ser humano e o caráter universal dos direitos e liberdades que merecem garantia estão na base de qualquer regime internacional de proteção” (tradução nossa) (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1982).
Encontra amparo, também, junto ao artigo 31, parágrafo único, da CVDT, segundo o qual há que se levar em conta, quando da interpretação dos tratados, os acordos firmados entre as partes posteriormente à ratificação, bem como a prática engendrada por estes (KILLANDER, 2010, p. 153).
Assim, a CoIDH observa, também, outras normas e julgados do direito internacional dos direitos humanos, “complementando sua interpretação dos dispositivos da Convenção Americana com referência a outros tratados, aos seus julgados e aos julgados de outros tribunais e órgãos internacionais” (PASQUALUCCI, 2012, p. 13).
De acordo com Hennebel e Tigroudj, os órgãos do SIDH interpretam a CADH enquanto um “elemento de um maquinário global de direitos humanos, com o objetivo de proteger os direitos dos indivíduos em todos os lugares” (2022, p. 849).
Prosseguem os autores:
Nesse sentido, os órgãos interamericanos adotam uma verdadeira postura universalista ou globalista em relação ao direito dos direitos humanos. Eles fazem parte de um grupo de “arquitetos” – junto com os órgãos da ONU e demais órgãos regionais – construindo, em uníssono, um novo jus gentium baseado na proteção do direito dos direitos humanos. No panorama interamericano, há uma fragmentação dos mecanismos de direitos humanos – nos níveis da ONU, europeu, africano, interamericano e doméstico –, mas há, me verdade, um sistema global de direitos humanos, totalmente consistente, com vários intérpretes nos níveis global e regional (HENNEBEL; TIGROUDJA, 2022, p. 849).
Cita-se, como exemplo dessa interpretação com base no corpus iuris global, o caso “Niños de la Calle (Villagrán Morales e outros)” vs. Guatemala, em que a CoIDH aplicou o disposto na Convenção sobre os Direitos das Crianças, vez que o Estado guatemalteca era signatário desta (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1999). A Corte conjuga os muitos instrumentos dos quais os Estados são signatários a fim de – à vista do seu objetivo supremo, a proteção da pessoa humana – ampliar a rede de proteção dos indivíduos.
Narváez e Ramírez alertam, contudo, que essa integração sistêmica deve ser utilizada de forma moderada, vez que pode acabar se introduzindo obrigação completamente estranha à Convenção e à vontade dos Estados signatários (2017, p. 309-310).
Pasqualucci, por outro lado, vê essa referência a elementos externos enquanto algo positivo, não apenas por permitir uma maior proteção dos direitos lá assegurados, mas, também, porque contribui para a harmonização do direito internacional e dos direitos humanos, fomentando, assim, a criação de um verdadeiro corpus iuris internacional (2012, p. 13)
Ainda, de acordo com Killander, as práticas originadas dos órgãos internacionais, como aqueles que compõem SIDH, devem ser entendidas enquanto prática subsequente e, se aceitas pelos Estados, tornam-se costume internacional e, portanto, direito (2010, p. 153). Assim, a CoIDH, ao aplicar a interpretação evolutiva em seus julgados ao longo dos anos – prática esta que foi aceita pelos Estados-membros –, estabeleceu esta modalidade de interpretação enquanto uma verdadeira norma legal no âmbito do Sistema Interamericano (KILLANDER, 2010, p. 155).
Outra técnica empregada na interpretação evolutiva é a dos conceitos autônomos, segundo a qual cabe ao órgão judicial, e a este apenas, a interpretação e consequente definição das palavras, termos e conceitos previstos no tratado, mesmo que estes já estejam definidos nos países signatários (MAROCHINI, 2014, p. 75). No caso da CoIDH, tal técnica encontra expressa previsão no art. 62 da CADH, pelo qual os Estados reconhecem a competência da Corte para a interpretação dos dispositivos convencionais.
Assim, por meio da interpretação evolutiva, com o objetivo precípuo de construir um sistema ainda mais protetivo e efetivo, o corpus iuris interamericano não se apresenta enquanto um ordenamento rígido, mas “um conjunto fluído de referências abertas, passíveis de revisão, com o objetivo de permitir a adoção de uma norma mais protetora, em nível doméstico, regional ou internacional” (tradução nossa) (HENNEBEL; TIGROUDJA, 2022, p. 846).
Busca-se, por meio dessa ferramenta, impedir que os tratados fiquem de certa forma “subordinados” aos ordenamentos jurídicos nacionais, o que poderia acabar por limitar não apenas a atividade dos órgãos de proteção como, também, dos próprios direitos humanos, que poderiam ter seu escopo reduzido pelas legislações dos Estados-parte.
Vê-se, portanto, que a interpretação evolutiva, largamente fundamentada no art. 29 da CADH, permitiu ao SIDH e seus órgãos uma expansão da proteção e da efetividade dos direitos humanos assegurados no corpo da Convenção. Por meio da atividade hermenêutica desenvolvida pelos órgãos do sistema, os direitos assegurados no tratado permaneceram relevantes e aptos a enfrentar os novos desafios que surgiram ao longo dos anos. Desafios estes, destaque-se, que dado o caráter suprapositivo dos direitos humanos, não poderiam ficar sem uma resposta efetiva.
3 A interpretação evolutiva na jurisprudência da corte interamericana de direitos humanos
A fim de demonstrar as diversas formas como a CoIDH vem aplicando a doutrina do living instrument na construção do corpus iuris do SIDH, tratar-se-á, aqui, acerca de alguns dos casos em que o citado órgão adotou uma interpretação evolutiva, com o objetivo de expandir o sentido dos direitos humanos e garantir uma tutela efetiva aos indivíduos.
Todavia, em prol do pragmatismo, bem como por razões metodológicas, não serão analisados todos os casos, mas apenas alguns poucos que bem ilustram as diferentes formas por meio das quais a Corte aplica a interpretação evolutiva.
A demonstração dos casos é necessária porque, segundo Schuter, algumas regras podem parecer adequadas e até mesmo completas quando vistas do plano geral, mas são capazes de gerar questionamentos e entraves quando analisadas em uma situação específica (2010, p. 641). Já para Narváez e Ramírez, a interpretação das normas, à luz do princípio pro persona, se dá em casos concretos, específicos, podendo variar entre um e outro (2017, p. 314-315).
Um caso importante na jurisprudência do SIDH – e já brevemente citado alhures – é o caso “Ninõs de La Calle” (Villagrán Morales e outros) vs. Guatemala, em que estava em julgamento o sequestro, tortura e assassinato de três jovens e dois adolescentes por parte das forças de segurança guatemaltecas. A CIDH sustentou haver uma violação dos direitos humanos à vida, à integridade pessoa, à liberdade, ao devido processo legal e à efetiva proteção jurisdicional (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1999).
A Corte entendeu que o termo “crianças de rua” deveria ser entendida como uma categoria específica, que referenciava aqueles infantes e adolescentes que “fazem das ruas sua luta pela sobrevivência e até pela moradia” (BELLOF, 2000, p. 2). A adoção de tal linha de pensamento se mostrou essencial para o julgamento da questão, vez que, como pontuado pela CoIDH, os acontecimentos em exame se inseriam em um contexto “comum de ações à margem da lei, perpetradas por agentes de segurança do Estado, contra os meninos de rua” (tradução nossa) (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1999).
Neste caso, a Corte Interamericana se utilizou da interpretação evolutiva de duas maneiras distintas, a saber: pela técnica dos conceitos autônomos, dando um novo sentido a um direito já previsto na CADH; e pela adoção de instrumentos externos ao SIDH.
O primeiro se deu com relação à interpretação do direito à vida, previsto no artigo 4º da CADH. Tendo sido criado em um ambiente permeado por ditaduras e violações arbitrárias por parte do Estado, o direito à vida, em seu sentido original, objetivava “eliminar o máximo possível a possibilidade do Estado de privar arbitrariamente uma pessoa da vida por meio de uma sentença de pena de morte que não tenha sido o resultado de um rigoroso processo devido” (tradução nossa) (QUIROGA, 2007, p. 60).
Assim, originalmente, impunha uma obrigação negativa aos Estados, que deveriam se abster de atentar, de maneira arbitrária, com a vida dos indivíduos. Todavia, com o renascer das democracias na região, e a fim de manter a sua relevância e efetividade, o direito à vida precisou adotar uma nova faceta, mais adequada aos desafios então enfrentados.
Assim, no caso “Ninõs de la Calle”, a CoIDH estabeleceu que:
Em essência, o direito fundamental à vida inclui, não apenas o direito de todo ser humano a não ser arbitrariamente privado de vida, mas também o direito de não ser impedido de acessar condições que garantam uma existência digna. Os Estados têm a obrigação de garantir a criação das condições necessárias para que não ocorram violações deste direito básico e, em particular, o dever de impedir que seus agentes o violem. (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1999).
Por meio de uma interpretação evolutiva, a Corte foi capaz de ampliar e até mesmo ressignificar o direito à vida, antes dotado apenas de uma dimensão negativa. Agora, este direito passou a ter, também, um sentido positivo, que impõe aos Estados o dever de adotar as medidas necessárias à uma vida digna ou, como leciona Piovesan, o “direito a criar e desenvolver um projeto de vida” (PIOVESAN, 2012, p. 402).
Por meio dessa nova ótica, pretende-se “assegurar o efeito útil deste direito, insistindo que o Estado não apenas crie as condições necessárias e adequadas, mas que elas sejam aplicadas de maneira eficaz” (CORAO; RIVERO, 2014, p. 117). Ou seja, apenas se abster de privar a vida não é suficiente. Faz-se necessário, para garantir um efetivo direito à vida, que o Estado assegure as condições necessárias a uma vida digna, passível de ser vivida.
No caso “Ninõs de la Calle”, a Corte reconheceu que, além da violação pelos assassinatos, o Estado guatemalteco também violou o art. 4º ao não garantir as condições mínimas necessárias à vida das vítimas, que se encontravam em situação de extrema precariedade (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1999).
A interpretação evolutiva também foi adotada quando da aplicação do artigo 19, que estabelece a proteção às crianças e adolescentes, mas de redação deveras genérica: “Toda criança tem direito às medidas de proteção que sua condição de menor requer...”.
A CoIDH, então, utilizou-se da Convenção sobre os Direitos da Criança – exterior ao SIDH, mas da qual o Estado guatemalteco era signatário – para definir o sentido da norma interamericana:
As normas transcritas (artigos 2º, 3º, 6º, 20, 27 e 37 da Convenção sobre os Direitos da Criança) permitem especificar, em direções variadas, o alcance das “medidas de proteção” mencionadas no artigo 19 da Convenção Americana. Entre elas, merecem destaque aquelas referentes à não discriminação, à assistência especial às crianças privadas de seu ambiente familiar, à garantia de sobrevivência e desenvolvimento da criança, ao direito a um nível de vida suficiente e o direito à reinserção social de toda criança vítima de abandono ou abusos. E, para esta Corte, é claro que os atos em análise no presente caso, perpetrados contra as vítimas por agentes do Estado, violaram essas disposições (tradução nossa) (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1999).
Assim, utilizando-se de elementos do corpus iuris internacional dos direitos humanos, a Corte foi capaz de superar as limitações textuais do art. 19 da CADH, dando-lhe um novo e preciso significado, mais apto a garantir a tutela dos direitos ali previstos que, antes genéricos, corriam o risco de se ver irrelevantes.
Já o caso “Massacre Mapiripán vs. Colômbia” trata sobre o assassinato de 49 civis no município de Mapiripán por parte do grupo paralimitar “Autodefensas Unidas de Colombia” (AUC), que teria tido auxílio das forças armadas colombianas.
Por se tratar de uma violação de direitos humanos que se deu no contexto de um conflito armado, a CoIDH firmou que o Estado colombiano possuía, além das obrigações oriundas da CADH, obrigação de direito internacional humanitário, estas provenientes das Convenções de Genebra de 1949 e de seus protocolos adicionais, especificamente o protocolo II, que versa sobre a proteção das vítimas em conflitos armados internos.
Utilizando-se do artigo 29, b, da CADH, a Corte entendeu que não poderia deixar de observar o direito internacional humanitário, sob pena de estar aplicando uma interpretação que limitaria o princípio pro homine assegurado no referido artigo:
As obrigações derivadas das referidas disposições internacionais devem ser levadas em conta, conforme o artigo 29.b) da Convenção, porque aqueles que são protegidos por tal tratado não perdem, por esse motivo, os direitos que possuem em conformidade com a legislação do Estado sob cuja jurisdição estão; em vez disso, esses direitos se complementam ou se integram para especificar seu escopo ou seu conteúdo. Embora seja claro que este Tribunal não pode atribuir responsabilidade internacional ao Direito Internacional Humanitário, como tal, tais disposições são úteis para interpretar a Convenção, no processo de determinação da responsabilidade do Estado e outros aspectos das violações alegadas no presente caso. Estas disposições estavam em vigor para a Colômbia na época dos fatos, como acordos de tratados internacionais dos quais o Estado é parte, e como lei interna, e o Tribunal Constitucional da Colômbia declarou que são disposições jus cogens, que fazem parte o “bloco constitucional” colombiano e é obrigatório para os Estados e para todos os atores armados do Estado e não-estatais envolvidos em um conflito armado (grifo nosso) (tradução nossa) (INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2005).
A CoIDH não pretendia analisar a responsabilidade do Estado quanto a uma violação das Convenções de Genebra de 1949 e seus protocolos, o que iria extrapolar a sua competência, mas tão somente levar em consideração tais normas quando da aplicação da CADH, ressaltando, assim, a universalidade dos direitos humanos.
Enquanto um regime especial do direito internacional, a CoIDH entendeu que a aplicação das normas de direitos humanos deve ser integrada, buscando uma implementação coletiva e que busque sempre a maior efetividade possível na proteção da pessoa humana.
Ainda que tenha se utilizado do direito internacional humanitário apenas para fins de interpretação, a CoIDH claramente buscou ir além do estipulado expressamente na CADH, aplicando normas de direitos humanos que buscassem a maior proteção do destinatário destas, atentando-se ao princípio pro homine. Lecionam Narváez e Ramirez que:
No caso Mapiripán de 2005, o Tribunal aplicou o princípio pro personae, considerando o comportamento nacional e internacional da Colômbia, de incorporar direito internacional humanitário na interpretação de cláusulas e atribuir responsabilidade ao Estado. Com esta decisão, o Tribunal pode ter se afastado da intenção original das partes, devido à falta de jurisdição ratione materiae para declarar a responsabilidade em razão do direito internacional humanitário (tradução nossa) (NARVÁEZ; RAMÍREZ, 2017, p. 316-317).
Igualmente importante é o caso Atalla Riffo e filhas vs. Chile, julgado pela Corte em 2012 e que tratava acerca da discriminação perpetrada pelo Estado chileno em razão da orientação sexual de Karen Atalla Riffo.
Utilizando-se do princípio pro persona, a CoIDH interpretou a CADH de maneira dinâmica, estabelecendo que o termo “outra condição social” previsto em seu artigo 1.1 deveria ser interpretado da maneira mais ampla possível, a fim de vedar qualquer tipo de discriminação prejudicial (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2012).
Assim, tendo em vista as evoluções ocorridas no direito internacional dos direitos humanos e com referência a órgãos externos– sistema europeu de direitos humanos, Organização das Nações Unidas –, a Corte firmou que a orientação sexual se encontrava abarcada pela “outra condição social”, merecendo, portanto, tutela:
Levando em conta as obrigações gerais de respeito e de garantia estabelecidas no artigo 1.1 da Convenção Americana, os critérios de interpretação fixados no artigo 29 da citada Convenção, o estipulado na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, as resoluções da Assembleia Geral da OEA, as normas estabelecidas pelo Tribunal Europeu e pelos organismos das Nações Unidas, a Corte Interamericana estabelece que a orientação sexual e a identidade de gênero das pessoas são categoria protegidas pela Convenção. Por isso, a Convenção rejeita qualquer norma, ato ou prática discriminatória com base na orientação sexual da pessoa. Por conseguinte, nenhuma norma, decisão ou prática de direito interno, seja por parte de autoridades estatais, seja por particulares, pode diminuir ou restringir, de maneira alguma, os direitos de uma pessoa com base em sua orientação sexual (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2012).
Esse foi o primeiro julgado do SIDH a tratar sobre a discriminação por orientação sexual, e o entendimento lá adotado foi essencial para ampliar o sentido da CADH e garantir que os indivíduos LGBTI+ encontrassem a proteção necessária no âmbito do sistema.
Considerações finais
Como buscou se demonstrar, os direitos humanos são o resultado de um processo histórico. São as respostas apresentadas aos desafios que surgem em determinado momento e estão, portanto, intrinsecamente ligados a este. Porém, se limitados ao momento histórico que lhes deu origem, esses direitos correm o risco de se tornarem irrelevantes.
Assim, dadas as características que lhe são peculiares e objetivando manter a sua eficácia, surge como resposta a chamada interpretação evolutiva, que permite uma atualização e expansão dos instrumentos de direitos humanos sem que seja necessário, contudo, uma alteração textual da norma. O significado de um instrumento de direitos humanos evolui para poder acompanhar as mudanças operadas na sociedade, como se fosse um instrumento vivo.
Fundamentando-se nos princípios pro persona e effet utile, busca-se, por meio dessa forma de interpretação, dar o sentido necessário para que a aplicação das normas de direitos humanos seja possível e efetiva, privilegiando-se o objetivo último dessa ordem legal: a máxima proteção do indivíduo.
Tal forma de interpretação se mostra de extrema importância no âmbito do SIDH. Seu principal instrumento, a CADH, foi redigida em 1969, quando os desafios da região – então permeada por governos autoritários – eram outros. Entretanto, os órgãos do sistema, em especial a CoIDH, vêm se utilizando da interpretação evolutiva para dar novos e revigorados sentidos aos direitos lá tutelados, adequando-os aos tempos modernos.
Dando-se novos significados aos termos previstos na CADH, bem como fazendo referência ao corpus iuris internacional dos direitos humanos, a CoIDH realiza uma interpretação atual e efetiva da Convenção Americana, a fim de expandir o máximo possível a tutela da pessoa humana.
Assim, o Sistema Interamericano, ao invés de se tornar algo rígido e estagnado no tempo, foi construído enquanto algo dinâmico e fluído, apto a apresentar uma resposta adequada aos desafios, velhos e novos, que se apresentam nas Américas.
A aplicação dessa técnica de interpretação pelos órgãos do SIDH pode assumir diversas formas. Pode, como no caso “Massacre Mapiripán”, dar-se por meio da aplicação de instrumentos externos ao Sistema, como as convenções das quais os Estados são signatários. Ou, então, como se deu no caso “Niños de la Calle”, dar-se pela atualização do sentido de determinado termo, que passa a assumir um significado mais adequado não apenas ao caso concreto como, também, à tutela do indivíduo.
Assim, a jurisprudência do Sistema Interamericano demonstra, de maneira bastante clara, que a interpretação evolutiva não é apenas possível como, também, de extrema valia para a manutenção da efetividade da ordem legal dos direitos humanos na região, permitindo que a CADH assuma novos significados e contornos, evitando, assim, que se torne obsoleta e irrelevante.
Referências
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1 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, área de concentração em Direitos Humanos e Democracia; Especialista em Direito Internacional pelo Instituto Damásio de Educação; Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. https://orcid.org/0000-0002-2301-1015. E-mail: joaotaques1305@gmail.com.
2 Professora Associada dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra no Instituto de direitos humanos e democracia. Doutora em Direito Constitucional, com ênfase em direitos humanos, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Visiting researcher da Harvard Law School. Mestre em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Autora de diversas obras e artigos na seara do Direito Constitucional e dos Direitos Humanos. https://orcid.org/0000-0002-6250-1295. E-mail: melinafachin@gmail.com.