https://doi.org/10.18593/ejjl.30593

Execução penal e saúde mental: crítica da medida de segurança e direitos fundamentais a partir do regime de dupla garantia

Criminal enforcement and mental health: criticism of the security measure and fundamental rights from the dual guarantee regime

Patrick Cacicedo1

Thiago Pedro Pagliuca dos Santos2

Resumo: O artigo tem por objeto o regime jurídico aplicável às pessoas com transtorno mental na fase de execução penal. Para tanto, explora as contradições existentes entre o regime jurídico do Código Penal e da Lei Antimanicomial e suas respectivas lógicas que se opõem radicalmente em termos de fundamentos e práticas. Em razão da persistência das medidas de segurança na realidade material do sistema de justiça criminal, o artigo procura encontrar respostas jurídicas concretas para compatibilizá-las ao paradigma antimanicomial e sua consequente efetivação da liberdade e dos direitos fundamentais das pessoas com transtorno mental. O artigo adota o regime da dupla garantia, segundo o qual as medidas de segurança devem respeitar todos os direitos e garantias penais e processuais penais de modo a impedir que o tratamento dado ao inimputável seja mais severo do que o do imputável ou semi-imputável, ao mesmo tempo em que, por serem aplicadas a pessoas especialmente vulneráveis, devem incidir sobre elas também as normas previstas na legislação que protege as pessoas com deficiências e transtornos mentais. Com base em tal regime, as principais controvérsias da execução de medidas de segurança são enfrentadas e propõe-se soluções para o prazo mínimo de internação, a internação por descumprimento do tratamento ambulatorial e a incidência dos direitos do sistema progressivo.

Palavras-chave: saúde mental; medida de segurança; antimanicomial; direitos fundamentais; execução penal.

Abstract: The article deals with the legal regime applicable to people with mental disorders in the criminal execution phase. In order to do so, it explores the existing contradictions between the legal regime of the Penal Code and the Anti-Asylum Law and their respective logics that are radically opposed in terms of foundations and practices. Due to the persistence of security measures in the material reality of the criminal justice system, the article seeks to find concrete legal answers to make them compatible with the anti-asylum paradigm and its consequent realization of the freedom and fundamental rights of people with mental disorders. The article adopts the dual guarantee regime, according to which security measures must respect all criminal and procedural criminal rights and guarantees in order to prevent the treatment given to the non-attributable from being more severe than that of the imputable or semi-attributable, at the same time that, as they are applied to especially vulnerable people, the norms provided for in the legislation that protect people with disabilities and mental disorders should also apply to them. Based on this regime, the main controversies regarding the implementation of security measures are faced and solutions are proposed for the minimum period of hospitalization, hospitalization for non-compliance with outpatient treatment and the incidence of rights of the progressive system.

Keywords: mental health; security measure; anti-asylum; fundamental rights; penal execution.

Recebido em 04 de julho de 2022

Avaliado em 04 de setembro de 2022 (AVALIADOR A)

Avaliado em 18 de outubro de 2022 (AVALIADOR A)

Aceito em 21 de outubro de 2022

Introdução

As relações entre o sistema penal e a saúde mental revelam uma história conturbada que foi especialmente marcada pela violação de direitos fundamentais das pessoas com transtorno mental submetidas ao poder punitivo do Estado. Do “holocausto brasileiro” (ARBEX, 2013) às milhares de pessoas ainda hoje submetidas a condições degradantes de internação nos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, o Brasil ainda está distante de garantir a essas pessoas um tratamento digno conforme as diretrizes internacionais de direitos humanos.

Construída a partir da ideia de periculosidade do sujeito, a medida de segurança foi a resposta do sistema punitivo aos inimputáveis por transtorno mental que praticam um fato previsto como crime em lei. Desde 1940 no Código Penal brasileiro, a medida de segurança constituiu-se como um modelo de defesa social cujo principal instrumento foi o manicômio judiciário. Mais do que uma instituição propriamente dita, o manicômio encerrou uma lógica ou modelo de tratamento da pessoa com transtorno mental que implicou – e ainda implica – na sujeição de milhares de pessoas a um regime de sistemática violação de direitos fundamentais.

Em reação a esse modelo se constituiu um verdadeiro movimento antimanicomial, cujo precedente italiano irradiou em boa parte do mundo. Ao identificar os equívocos teóricos e, sobretudo, das práticas do modelo oficial então vigente, o movimento antimanicomial propôs uma transformação radical das diretrizes e práticas do tratamento destinado às pessoas com transtorno mental, com evidentes consequências na esfera criminal.

Com efeito, no campo jurídico, o maior símbolo da luta antimanicomial foi a aprovação da Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. O avanço da lei é largamente reconhecido pelos pesquisadores da área. Contudo, no campo jurídico, o conflito entre os modelos do Código Penal (manicomial) e da Lei da Reforma Psiquiátrica (antimanicomial) ensejam dilemas e problemas práticos da maior importância, boa parte deles com manifestação no momento do cumprimento da medida, abarcada pelo direito de execução penal.

Ao lado das poucas experiências exitosas nesse campo, a maior parte das pessoas ainda está regida sob a diretriz manicomial e suas práticas violadora de direitos fundamentais. Esse quadro apresenta problemas que demandam respostas jurídicas concretas. Assim, o presente trabalho pretende identificar os principais problemas jurídicos do conflito entre os regimes de tratamento da saúde mental no sistema penal na fase de sua execução e propor respostas adequadas ao paradigma antimanicomial defendido.

1 A medida de segurança e o modelo perigosista-manicomial

Além da pena propriamente dita, o direito de execução penal engloba a medida de segurança, sanção penal aplicável aos inimputáveis por transtorno mental. Aquele que pratica um fato típico e ilícito, mas era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, não é considerado culpável, de modo que a ele não se aplica uma pena, mas sim uma medida de segurança, conforme o regime trazido pelo Código Penal.

Se a pena pressupõe a culpabilidade do agente, a medida de segurança foi construída a partir da noção de periculosidade (SANTOS, 2012, p. 607). A prática de um fato típico e ilícito por pessoa com transtorno mental era um indicativo de sua periculosidade (CAETANO, 2018, p. 66), ou seja, de que a pessoa representaria um constante risco de praticar novos fatos semelhantes colocando em risco a vida social. A conjugação do injusto penal com a loucura resulta, para nosso ordenamento jurídico, na periculosidade da pessoa, que deve ser submetida a um tratamento sob contenção para debelar o risco que ela representa. A medida de segurança nada mais é do que essa forma de controle do perigo atribuído ao sujeito com transtorno mental selecionado pelo sistema penal com finalidade declarada de cura.

O instituto da medida de segurança e sua regulamentação ganharam corpo no Código Penal de 1940, que trazia o sistema do duplo binário, pelo qual era possível a aplicação sucessiva de pena e medida de segurança pelo mesmo fato (SOUZA, 1979, p. 107). Nesse sistema, a medida de segurança não era sanção exclusiva para inimputáveis, já que poderia ser aplicada a determinadas pessoas que, mesmo imputáveis, se enquadrassem na definição legal de perigoso.

Nas décadas de 1960 e 1970, a doutrina passou a criticar com afinco o sistema do duplo binário. Com efeito, até mesmo os penalistas que haviam defendido sua inclusão no Código Penal de 1940 reconheceram que não havia diferença prática entre penas e medidas de segurança aplicadas a imputáveis (SOUZA, 1979, p. 17). Essas críticas levaram à extinção do sistema do duplo binário em 1984 e a adoção do sistema vicariante, que vedou a aplicação cumulativa de penas e medidas de segurança.

Após abandono do regime do duplo binário em 1984, o direito penal brasileiro passou a lidar com a questão dos inimputáveis em razão de transtorno mental unicamente pela imposição da medida de segurança. No sistema vicariante adotado a partir de então, toda pessoa que comete um fato típico e ilícito, mas em razão de transtorno mental é inimputável, fica submetida somente à medida de segurança, sendo vedado o cumprimento de pena propriamente dita. Há, a partir da reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984, uma separação rígida das possíveis respostas penais ao injusto penal: aos imputáveis, a pena; aos inimputáveis, a medida de segurança, vedado o cumprimento conjunto ou sucessivo das duas espécies de sanção penal.

O ideário conformador de tal tratamento, contudo, seguiu fundado nas noções de defesa social (BARATTA, 2002, p. 41) e periculosidade, segundo as quais, em síntese, o sujeito que pratica um injusto penal acometido de transtorno mental deve ser objeto de tratamento e apartado da sociedade enquanto representar um perigo para esta. A normativa da questão no Código Penal tem como objeto central a contenção do perigo que a pessoa representa para o todo social. De acordo com tal premissa, as normas foram dispostas de maneira a garantir que apenas com a cessação da periculosidade o sujeito retornaria ao convívio social. Enquanto tal condição não termine, a pessoa deve seguir sob tratamento imposto pelo Estado. Seu objetivo, portanto, é a defesa social, com a segregação de pessoas tidas como perigosas. A cura desses indivíduos sempre veio atrelada àquela finalidade, mas de forma secundária. De fato, a aplicação da internação como resposta quase automática a um fato típico e ilícito praticado por um inimputável tem origem em um preconceito, com forte teor racista, que identifica o portador de transtorno mental como perigoso (ZAFFARONI; ALAGIA; SLOKAR, 2002, P. 925).

O Código Penal brasileiro dispõe de duas modalidades de medida de segurança: a internação e o tratamento ambulatorial. A primeira deve ser cumprida em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, enquanto a segunda se cumpre fora de instituição total, em regime de liberdade com comparecimento a ambulatório médico. Para determinar qual das duas deve ser aplicada no caso concreto, o Código Penal estabelece que a regra é que o juiz determine a internação do inimputável, podendo submetê-lo a tratamento ambulatorial se o fato previsto como crime for punível com detenção (art. 97, caput).

Na prática do sistema de justiça criminal, o psiquiatra forense apresenta um laudo concluindo pela imputabilidade, semi-imputabilidade ou inimputabilidade e sugere a medida de segurança que entende adequada. A aplicação pura do art. 97, caput, do Código Penal simplifica ainda mais a questão: para crimes punidos com detenção, segue-se a indicação do perito (internação ou tratamento ambulatorial); para crimes punidos com reclusão, ignora- se a sugestão do laudo e se determina obrigatoriamente a internação, pelo prazo mínimo de 1 a 3 anos. Por sua vez, a desinternação depende de laudo de cessação de periculosidade, a ser analisado pelo juiz da execução penal (SANTOS, 2020, p. 194).

O critério para a determinação da espécie de medida de segurança, portanto, é fundado no tipo de pena aplicável ao fato previsto como crime, detenção ou reclusão. Em uma palavra, o critério é a gravidade do crime, e não o transtorno mental do indivíduo. Assim, por tal regramento se observa que importa sobretudo a alegada proteção da sociedade diante de um sujeito tido como perigoso (defesa social), e não propriamente o cuidado com sua saúde mental. A regra, com efeito, é a internação, que pode ser substituída por tratamento ambulatorial se a pessoa tiver praticado um fato previsto como crime punível com detenção.

Seguindo essa lógica, a redação do Código Penal prevê que, ao contrário das penas, as medidas de segurança são indeterminadas no tempo, cessando apenas quando uma perícia médica atestar o fim da periculosidade da pessoa. Ao lado do art. 97, caput, que condiciona a medida de segurança à natureza da pena cominada (reclusão ou detenção), está em seu §١º a outra norma de maior problema no corpo do Código Penal. Referido parágrafo prevê prazo indeterminado para a medida de segurança, permitindo-se a perpetuidade da sanção (SALVADOR NETTO, 2019, p. 298). Embora a lei institua um período mínimo de 1 a 3 anos de cumprimento da medida de segurança, o prazo máximo não encontra amparo em lei, cuja indeterminação muitas vezes significou, de fato, uma sanção perpétua.

Diante dos evidentes problemas humanitários da referida indeterminação, recentemente os Tribunais Superiores instituíram um limite temporal para as medidas de segurança. O Supremo Tribunal Federal já decidiu pelo prazo de 30 anos, que era o prazo máximo permitido para o cumprimento de pena privativa de liberdade no Brasil, alterado recentemente para 40 anos pelo Pacote “Anticrime” (SIQUEIRA; BAZO, 2020), nos Habeas Corpus 107.432-RS e 97.621-RS. Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que a medida de segurança não pode ultrapassar a pena máxima cominada ao delito (STJ, Súmula 527).

Conforme o regramento manicomial do Código Penal e da Lei de Execução Penal, a desinternação ocorre com a cessação da periculosidade e ainda assim é condicional: a internação pode ser restabelecida se dentro de um ano o agente praticar “fato indicativo de persistência de sua periculosidade” (art. 97, § 3º, CP). Não basta, portanto, um laudo aferindo a cessação da periculosidade, já que a pessoa fica submetida a controle posterior que pode restaurar a medida de segurança de internação diante de fatos que não se sabe quais são dada a abertura da norma mencionada. Cezar Roberto Bitencourt entende que o dispositivo legal prevê verdadeira suspensão condicional da medida de segurança, e não sua extinção (2019, p. 925).

Com relação a esse fator condicional, cabe ressalvar, contudo, que só se aplica se a desinternação (referente à medida de segurança de internação) ou a liberação (referente à medida de segurança de tratamento ambulatorial) ocorrer antes do seu prazo máximo, como decorrência do exame de cessação de periculosidade. Se a extinção da medida se der por qualquer outra causa extintiva (advento de seu termo final, prescrição, indulto), não se aplica o dispositivo legal (SALVADOR NETTO, 2017, p. 271).

Sob o título de “direitos do internado”, o art. 99 prevê que a pessoa será recolhida a estabelecimento dotado de características hospitalares e submetida a tratamento. Embora o título esteja no plural, o direito se apresenta na singularidade de submeter-se a tratamento. E nada mais. Não é sem motivo, com efeito, que a realidade concreta do cumprimento de medida de segurança no Brasil, sobretudo a de internação, é marcada pela constante e gravosa violação dos mais elementares direitos humanos.

A medida de segurança, como indica a própria nomenclatura, tem como objetivo primordial a segurança da sociedade diante de um indivíduo tido como perigoso. Ela é, antes de tudo, um mecanismo de neutralização do indivíduo que tem no manicômio judiciário mais do que um lugar de contenção, mas uma lógica própria de regimento da matéria: a lógica manicomial.

Referida lógica se funda na segregação hospitalar da pessoa com transtorno mental que tenha praticado um injusto penal para sua neutralização e tentativa de cura. O convívio da segregação com o aspecto curativo traz ao ambiente manicomial a ligação de perfis profissionais distintos: de um lado, a “equipe de segurança”, formada por agentes penitenciários e profissionais da segurança pública; de outro lado a “equipe de saúde”, formada por agentes de saúde, sobretudo psiquiatras e psicólogos (CAETANO, 2018, p. 98).

Não por acaso, historicamente o manicômio judiciário se manifesta como um hospital-prisão, que prioriza aspectos de segurança em detrimento de práticas terapêuticas e normalmente são administrados direta ou indiretamente por agentes de segurança. Assim, o funcionamento dos manicômios judiciários é caracterizado por rígida disciplina e demais características próprias das prisões, como isolamento, superlotação e violação de uma série de direitos fundamentais. Trata-se de verdadeira prisão sem tratamento, como constatou o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (2014).

Não é de surpreender, pois, a ausência de profissionais de outras áreas e a ausência de efetivação de direitos como a educação, lazer, trabalho, cultura, esporte, direitos políticos, dentre outros, que se revelam completamente estranhos ao ambiente manicomial. A lógica manicomial não inclui tais direitos em seus consectários, pois restrita à neutralização do perigo e a práticas terapêuticas violadoras da dignidade humana na instituição total. Não é por acaso, reitera-se, que o rol de direitos da pessoa submetida à medida de segurança esgote-se em ser recolhida a estabelecimento dotado de características hospitalares e ser submetida a tratamento.

A política manicomial ao longo dos anos transformou os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico em instituições muito próximas das prisões. Se, assim como as prisões, não cumpria seus objetivos declarados de melhora dos sujeitos institucionalizados, senão que produzia o efeito reverso, os manicômios judiciais ainda se revelaram como locais de maiores violações de direitos humanos que o próprio cárcere.

2 A reforma psiquiátrica e o movimento antimanicomial

Os deletérios resultados humanitários da política manicomial ao longo dos anos culminaram em um movimento político de radical transformação dessa realidade. O chamado movimento antimanicomial ou pela reforma psiquiátrica inaugurou uma crítica profunda das práticas do modelo manicomial asilar, suas consequências excludentes e as dores advindas da cronificação (AMARANTE, 1998). O modelo hospitalocêntrico foi posto em xeque pela luta antimanicomial que ganhou corpo em diversos países a partir do trabalho do psiquiatra italiano Franco Basaglia na década de 1960, crítico da tradicional cultura médica, que transformava o sujeito e seu corpo em meros objetos de intervenção clínica, cuja experiência foi exitosa nos hospitais psiquiátricos de Gorizia e Trieste (MATTOS, 2006, p. 101).

A partir da década de 1970, pensadores, dentre eles psiquiatras renomados, passaram a colocar em dúvida a ciência psiquiátrica e o modelo médico adotado por ela. Os movimentos mais conhecidos são a antipsiquiatria – que questiona as próprias bases da psiquiatria e a existência das chamadas doenças mentais – e os movimentos antimanicomiais, que defendem a desinstitucionalização dos pacientes psiquiátricos e seu tratamento por meios alternativos. Tais movimentos se desenvolveram internacionalmente com vigor, sendo conhecidos alguns nomes como o psiquiatra norte-americano Thomas Szsaz (1961) e o italiano Franco Basaglia (1982; 1974), famoso por sua luta antimanicomial.

A crítica central do movimento antimanicomial tem por objeto tanto o modelo de assistência psiquiátrica manicomial quanto as relações entre sociedade e loucura, de maneira a abranger uma posição crítica em relação à psiquiatria clássica e hospitalar, materializada no princípio do isolamento do louco. A partir de então ganhou corpo um movimento de defesa dos direitos humanos e busca da cidadania de pessoas em sofrimento psíquico. O movimento contra o modelo institucionalizado de atenção denunciava as práticas assistenciais que violentavam e centralizavam o cuidado em instituições totais produtoras de exclusão social (AMARANTE, 1998).

A reforma psiquiátrica representa um “processo histórico de formulação crítica e prática, que tem como objetivos e estratégias o questionamento e elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria” (AMARANTE, 1998, p. 87). Tal processo histórico no Brasil resultou no advento da Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, também conhecida como “Lei Antimanicomial” ou “Lei da Reforma Psiquiatra”. Verdadeiro marco no trato da saúde mental no país, a lei é especialmente avançada na matéria ao redirecionar a lógica manicomial para uma assistência integral à pessoa com transtorno mental e em benefício exclusivo de sua saúde. Ela é, em verdade, a antítese da política manicomial levada a efeito até então.

Com o advento dessa lei, o lugar da pessoa com transtorno mental “deixou de ser o manicômio para ser a vida em sociedade e, para garantir a assistência à saúde mental no território da cidade, atuam os dispositivos substitutivos vinculados ao Sistema Único de Saúde que agora compõem a Rede de Atenção Psicossocial” (CAETANO, 2018, p. 117). Com a reforma psiquiátrica brasileira transposta em lei, a lógica manicomial deu lugar à lógica da inclusão social em toda a sua plenitude, sem espaço para qualquer exceção no atendimento em saúde mental, de forma que a internação psiquiátrica, seja ela voluntária, involuntária ou compulsória, regular-se-á sempre pelos seus dispositivos (CAETANO, 2018, p. 118).

Enquanto a lógica que permeia o tratamento da questão no Código Penal está centrada na neutralização por meio da internação em manicômio judicial, espécie de medida de segurança que constitui a regra de aplicação, na Lei Antimanicomial é vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, como são justamente os referidos manicômios. A internação é tratada de forma excepcional e detalhada em espécies (voluntária, involuntária e compulsória), requerendo laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos, que estão ligados à saúde mental do paciente, e não mais ao tipo de infração penal praticada. A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes (art. 4º).

A ideologia da defesa social é de inteiro abandonada. Não mais importa a neutralização do indivíduo perigoso para proteção da sociedade; agora o tratamento é feito no exclusivo interesse de beneficiar sua saúde, afastada a noção de periculosidade, conceito jurídico artificial e autoritário. Essa virada radical no manejo da questão é expressamente prevista em lei, que ressalta como direito da pessoa com transtorno mental o tratamento com humanidade e respeito visando a alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade, tudo no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde (art. 2º, II).

Em caminho diametralmente oposto ao do Código Penal, que prevê como direito da pessoa submetida à medida de segurança unicamente o de ser submetida a tratamento, a Lei Antimanicomial dispõe de um largo rol de direitos em seu art. 2º, além do já citado tratamento humanizado em benefício exclusivo da saúde: ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; ter garantia de sigilo nas informações prestadas; ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

Os direitos previstos na Lei 10.216/01 em caráter exemplificativo dão conta de um tratamento humanizado e integral, oposto à política manicomial que tornava o ambiente de cumprimento de medida de segurança mais violador de direitos que a própria prisão. Nesse sentido, a Lei Antimanicomial tem como preocupação constante a reinserção social do paciente em seu meio (art. 4º, § 1º), além de expressar a necessidade de recuperação pela inserção na família, comunidade e trabalho (art. 2º, II). Para essa tarefa, a assistência à pessoa portadora de transtorno mental deve ser integral, o que compreende “serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros”, conforme disposto no art. 4º, § 2º da Lei 10.216/01.

O manicômio judiciário ou hospital de custódia e tratamento psiquiátrico é expressamente vedado pela lei, que não recebeu o nome de antimanicomial por acaso. Restou ao manicômio judiciário a esfera da completa ilegalidade (CAETANO, 2018, p. 118). É proscrita a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, entendidas como tais aquelas desprovidas de assistência integral à pessoa, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros, além dos direitos acima mencionados. Essa é, no entanto, a própria descrição do manicômio judiciário em sua manifestação concreta, que é muito mais ambiente de custódia do que de tratamento adequado.

O hospital de custódia e tratamento psiquiátrico foi proibido pela lei, contudo subsiste no plano da realidade. O advento da Lei 10.216/01 inicialmente foi ignorado pela maioria dos penalistas sob o pretexto de não tratar da medida de segurança (SANTOS, 2020, p. 80). Mariana Weigert (2015) destaca que mesmo na Itália, onde o movimento antimanicomial foi significativamente forte, a perspectiva mais humanizada da psiquiatria demorou para atingir o portador de transtorno mental autor de injusto penal.

Uma das principais características dessa subsistência na vida real do manicômio judiciário é a manutenção da hospitalização por longos períodos, o que gera grave dependência institucional decorrente do quadro clínico ou de ausência de suporte social. Para tão grave problema, a Lei Antimanicomial determinou política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário (art. 5º).

Ao contrário do modelo manicomial, cujas ações são centralizadas na burocracia do sistema de justiça criminal, a política de saúde mental prevista na Lei 10.216/01, ao mesmo tempo que responsabiliza o Estado, impõe a participação não só da sociedade, mas igualmente das famílias, atores fundamentais no processo de construção da referida política pública.

3 Medida de segurança e realidade concreta: extrema vulnerabilidade e dupla garantia

Os regimes jurídicos contidos no Código Penal e na Lei 10.216/01 são incompatíveis, muito embora a prática cotidiana no sistema de justiça criminal ainda conviva com as medidas de segurança e os manicômios judiciais. A despeito de ser a Lei Antimanicomial posterior e específica, a revogação das disposições do Código Penal sobre a matéria ainda não foi reconhecida pelos tribunais brasileiros.

Não é só no plano da legalidade que o modelo manicomial encontra incompatibilidade. O confronto da manifestação concreta dos hospitais-prisões com os preceitos da Constituição e dos tratados internacionais de direitos humanos impõem o reconhecimento da incompatibilidade entre ambos. As medidas de segurança seguem existindo e os manicômios judiciais representam concretamente o maior mecanismo de violação da dignidade humana no país. Na prática, são piores e mais violadoras de direitos humanos do que as próprias penas privativas de liberdade, pois aqui se intensificam os efeitos deletérios próprios das prisões já que incidem sobre pessoas em situação de maior vulnerabilidade em razão da doença mental.

O panorama atual dos manicômios brasileiros revela um quadro de extrema gravidade: assim como as prisões, são superlotados; padecem de precária assistência jurídica, psicológica e médica; tal qual os direitos da execução penal, as perícias e laudos para análise da necessidade de internação atrasam em demasia e sem justificativa aceitável; a disciplina e as rotinas são rígidas, adotando-se práticas típicas de prisões, como o isolamento; a estrutura sanitária é precária e o tratamento recebido pelos funcionários é invariavelmente desumano; as visitas íntimas não são permitidas; os registros documentais apresentam falhas; as regras do processo de execução penal são constantemente descumpridas (CAETANO, 2018, p. 99-104).

O quadro acima apresentado demonstra que os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico são ambientes piores que as prisões e os danos e dores causadas são ainda mais graves em razão da vulnerabilidade de seus destinatários. Não é fato recente que “a doutrina tem se envergonhado de admitir que a internação tem por finalidade somente a segregação e inocuização do portador de doença mental”, de modo que se utiliza o subterfúgio retórico da finalidade terapêutica: “assim como se prende o culpado e se interna o adolescente para o seu bem, faz-se o mesmo com o portador de transtorno mental, encerrando-o em um manicômio para que seja tratado e curado” (SANTOS, 2020, p. 59).

As medidas de segurança violam a Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos ao se manifestarem concretamente como penas cruéis e degradantes, verdadeiros mecanismos de violação da dignidade humana. Por outro lado, o regime jurídico manicomial do Código Penal e da Lei de Execução Penal viola os princípios da culpabilidade, ao submeter inimputáveis e absolvidos a sanção que materialmente é pena, e do devido processo legal, diante da irrefutabilidade do equivocado conceito de periculosidade no qual é fundado (CAETANO, 2018, p. 81-87).

A despeito das incompatibilidades normativas acima apresentadas, o modelo manicomial de medidas de segurança segue existindo e produzindo seus efeitos. Convive, a despeito de incompatível, com garantias constitucionais e internacionais e com a Lei Antimanicomial, cuja integral vigência não passa sob qualquer contestação. A partir da manifestação da medida de segurança na materialidade da vida, que representa concretamente uma sanção ainda mais grave que a pena de prisão, é preciso reconhecer um regime de dupla garantia para os seus destinatários. Segundo tal proposta, as medidas de segurança devem respeitar todos os direitos e garantias penais e processuais penais de modo a impedir que o tratamento dado ao inimputável seja mais severo do que o do imputável ou semi-imputável, ao mesmo tempo em que, por serem aplicadas a pessoas especialmente vulneráveis, devem incidir sobre elas também as normas previstas na legislação que protege as pessoas com deficiências e transtornos mentais, notadamente a Lei Antimanicomial e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (SANTOS, 2020, p. 70).

A subsistência do modelo manicomial é uma demonstração de que a transformação da realidade não se realiza apenas com a edição de uma lei, a despeito de sua inegável importância. A luta antimanicomial persiste e a derrocada dos manicômios ainda parece distante, mesmo após 20 anos de vigência da lei que formalmente o extinguiu. A realidade se impõe e muitas vezes o atraso civilizatório é mesmo pré-manicomial, como no caso frequente no Brasil de pessoas com transtorno mental em prisões comuns, o que é proibido expressamente pelo próprio regime manicomial do CP. Aliás, ser recolhido em “estabelecimento dotado de características hospitalares” e ser “submetido a tratamento” é, como já referido, o único direito expressamente previsto pelo CP ao inimputável (art. 99). Para burlar essa proibição – na falta de hospital de custódia –, é prática corriqueira a transformação de um espaço do presídio em ala psiquiátrica, alteração meramente nominal para aprisionar pessoas com transtorno mental, o que é, por evidente, igualmente proibido. O desafio humanitário, portanto, é não só antimanicomial, mas igualmente contra práticas degradantes pré-manicomiais.

A teoria da dupla garantia tem um olho na realidade e outro na sua transformação. Trabalha com a materialidade da vida, sem acreditar que as ideias ou as leis, por si, modificam a existência cortante de uma relação opressiva. O chão histórico do mundo concreto demanda uma luta constante e radical contra o modelo manicomial, mas sem perder de vista que muitas vezes esse combate é também para evitar retrocessos.

Desse modo, impedir que o tratamento dado ao inimputável seja mais severo do que o do imputável é tarefa fundamental e se materializa no respeito a todos os direitos e garantias penais e processuais penais reconhecidos em nosso ordenamento jurídico, conforme exposição mais detalhada em seguida. Avançar da lógica manicomial para o plano da inclusão social e da liberdade demanda, por outro lado, lutar em todos os campos possíveis, notadamente o político.

Além do quadro de proteções em face do poder punitivo, a dupla garantia deve incidir na efetivação de direitos sociais, cuja maior parte é de todo ausente para pessoas internadas. Com efeito, se alguns direitos sociais garantidos aos presos são fornecidos de forma precária, aos internados são inexistentes, como a educação e o trabalho, por exemplo. Além disso, a superação do modelo manicomial depende da implementação desses direitos, reconhecendo-se as pessoas com transtorno mental como sujeitos de direitos, e não apenas como objetos de intervenção clínica.

As pessoas submetidas à medida de segurança, notadamente as internadas, são destinatárias da assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, que inclui serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros (art. 3º, §2º, Lei 10.216/01). A referência a “outros” serviços dessa norma deve ser encarada como um elo com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), que veio corroborar a condição de destinatários de direitos da pessoa com deficiência e regulamenta uma série deles. O Estatuto – que tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, e por ter sido aprovada em conformidade com o procedimento previsto no § ٣º do art. ٥º da Constituição da República, tem status de normal constitucional – especifica uma série de direitos tradicionalmente negados às pessoas com transtorno mental.

A conjugação da Lei Antimanicomial com o Estatuto da Pessoa com Deficiência revela um avançado conjunto normativo de direitos e garantias das pessoas com transtorno mental, cuja efetivação desponta como pauta prioritária na luta antimanicomial. Além da inserção desses indivíduos no Sistema Único de Saúde e na Rede de Atenção Psicossocial, há uma série de direitos sociais regulamentados no Estatuto da Pessoa com Deficiência, dos quais destacamos: a) direito à habilitação e reabilitação, para desenvolvimento de potencialidades e aptidões que contribuam para a conquista da autonomia e participação social da pessoa com deficiência; b) direito à educação, que deve ser ofertado em sistema educacional inclusivo em todos os níveis de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível; c) direito à moradia, com destaque para residência inclusiva; d) direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e inclusivo, incumbindo ao poder público implementar serviços e programas completos de habilitação e reabilitação profissional; e) direito à assistência social integrado ao Suas; f) previdência social; g) cultura, esporte e lazer.

Cumpre aqui alertar que o direito de execução penal não se restringe ao sistema progressivo. A execução das medidas de segurança não se restringe às regras que determinam o tipo de intervenção estatal sobre a liberdade da pessoa com sofrimento mental, senão que abrangem um conjunto mais elevado de questões e direitos, notadamente os sociais. Se na execução das penas a efetivação de direitos humanos tem o poder de reduzir as dores e danos causados pela prisão, no caso das medidas de segurança a concretização do conjunto normativo de proteção tem um papel ainda maior, pois contribui de forma decisiva para a reversão de um modelo opressivo e degradante em prol da inclusão social e da liberdade. Jéssica Almeida inclui moradia, rede social e trabalho entre os três eixos de reabilitação social decorrentes da reforma psiquiátrica (2019, p. 63).

O avanço normativo na tutela de direitos fundamentais das pessoas com transtorno mental é significativo. Do rompimento com o sistema manicomial, passando pelo estabelecimento do tratamento humanizado instituído pela reforma psiquiátrica, até o estágio atual de acolhimento específico de direitos fundamentais pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, verifica-se uma verdadeira evolução humanitária. Resta, no entanto, uma série de desafios concretos no campo da execução penal, ligados diretamente à ideia de liberdade e sujeição ao poder punitivo do Estado.

4 Dupla garantia e a defesa da liberdade das pessoas com transtorno mental no campo da execução penal

A despeito de duas décadas de vigência da Lei Antimanicomial, a cultura manicomial não foi abandonada nas práticas do sistema de justiça criminal. Embora seja inegável a incompatibilidade da Lei 10.216/01 com o Código Penal, a cultura manicomial, arraigada em práticas centenárias de um tema complexo, com preconceitos e desinformação que acompanham o tema da loucura, torna muitas vezes sedutora a internação (CAETANO, 2018, p. 119).

Existentes na prática, as medidas de segurança, contudo, devem respeitar todos os direitos e garantias penais e processuais penais de modo a impedir que o tratamento dado ao inimputável seja mais severo do que o do imputável ou semi-imputável, justamente por serem aplicadas a pessoas especialmente vulneráveis. O regime da dupla garantia deve, pois, ser observado com especial atenção na fase de cumprimento das medidas de segurança.

Nesse sentido, práticas fundadas em disposições do Código Penal, como a existência de prazo mínimo para medida de segurança (art. 97, §1º) não podem perdurar diante da excepcionalidade da internação trazida pela Lei 10.216/01, que, como já aduzido acima, demanda laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos bem como esgotamento dos recursos extra-hospitalares. Sem os requisitos de necessidade, não pode subsistir a medida de segurança, o que demonstra a irracionalidade – e ilegalidade – de prazos mínimos de internação.

Além disso, há outras questões fundamentais que requerem uma solução prática diante do conflito entre os regimes de regência da saúde mental no âmbito da execução penal e a questão da dupla garantia: a regressão daquele que cumpre medida de tratamento ambulatorial e os direitos do sistema progressivo.

A internação por simples descumprimento do tratamento ambulatorial (art. 97, §4º), algo semelhante à regressão de regime, é igualmente um fator de incompatibilidade entre a Lei Antimanicomial e o Código Penal, mas tem sido a prática da execução penal brasileira.

O descumprimento reiterado e injustificado do tratamento ambulatorial aplicado após o devido processo legal a quem tenha praticado um injusto penal poderá resultar em internação, mas desde que sejam respeitados os preceitos da Lei 10.216/01, principalmente o princípio da intervenção mínima: é necessário que se demonstre exaustivamente a insuficiência dos recursos extra- hospitalares, além de ser fundamental a existência de laudo médico circunstanciado que aponte a imprescindibilidade da internação (SANTOS, 2020, p. 233).

A questão, no entanto, é controvertida quando não estão presentes tais pressupostos, ou seja, quando ocorre o mero descumprimento do tratamento ambulatorial. A correta interpretação do art. 97, §4º do CP à luz da lógica antimanicomial é a de que não basta o descumprimento reiterado do tratamento ambulatorial para se decretar a internação. Deve-se ter tolerância, pois o descumprimento, ainda que reiterado, raramente será injustificado. É muito provável que a afetação da integridade psíquica do agente lhe impeça de compreender de forma exata a sua situação jurídica.

Deve o magistrado designar audiências de advertência, quantas forem necessárias para a correta conscientização do acusado, a fim de alertá-lo e informá-lo devidamente sobre a sua situação e as consequências jurídicas do descumprimento da medida. É importante que o tratamento ambulatorial não se transforme em mera obrigação burocrática do paciente, o que efetivamente o desestimulará a cumpri-lo. A equipe responsável pelo atendimento, preferencialmente do CAPS, deve ter a consciência de que a finalidade é a reinserção psicossocial do paciente e a redução do seu sofrimento psíquico causado pela doença.

Assim, diante da recusa do paciente em se submeter ao tratamento ambulatorial, ou de sua inconstância, deverá o magistrado determinar à equipe técnica responsável que realize busca ativa a ele para constatar sua situação psicossocial e as razões do descumprimento. Não tendo êxito, deverão ser designadas audiências de advertência. O sentenciado deve ser intimado pessoalmente, mas também por meio de seu curador processual (que deverá ser o defensor público ou advogado responsável pelo processo de execução) e seu curador civil (se houver). É conveniente que seus familiares e amigos mais próximos (que deverão ser identificados pela equipe técnica) também sejam intimados para o ato processual. Esse procedimento lento e constante de conscientização deve ocorrer durante todo o prazo de cumprimento da medida. A internação somente se justificará se, a despeito de todos esses esforços, além de o sentenciado permanecer em descumprimento da medida, seu quadro clínico se agravar e um médico constatar a necessidade de sua internação compulsória (SALVADOR NETTO, 2019, p. 304; SANTOS, 2020, p. 234; ROIG, 2016, p. 473).

Em termos claros: é ilegal a decisão que decreta a internação da pessoa com transtornos mentais pelo mero descumprimento do tratamento ambulatorial. Isso não só pela óbvia ausência de laudo médico para tanto, mas também porque não há como se esperar de uma pessoa cuja inimputabilidade foi reconhecida justamente por não ter condições de compreender o caráter ilícito do injusto penal praticado (ou de se autodeterminar de acordo com essa compreensão) que se torne absolutamente responsável no cumprimento da medida. Ademais, não se pode intimar somente o próprio inimputável para justificar o descumprimento do tratamento ambulatorial, pois ele não tem capacidade processual. É necessária a intervenção de curador processual e material, bem como a interferência de familiares e amigos (SANTOS, 2020, p. 234).

Outra questão fundamental diz respeito aos direitos do sistema progressivo a quem cumpre medida de segurança. Na lógica da dupla garantia, não podendo o inimputável ser tratado de forma mais gravosa que o imputável ou semi-imputável, não é possível ignorar os direitos subjetivos do sistema progressivo da execução penal. Tal reconhecimento já ocorre com o instituto do indulto desde 2008, quando o Decreto 6.706 daquele ano inovou e previu tal hipótese de concessão (SHECAIRA; ANDRADE, 2009, p. 4).

Para que tais direitos tenham efetividade, a medida de segurança deverá ter um prazo máximo de duração claramente definido na sentença ou, caso ela se omita, pelo juiz da execução. Esse prazo deverá ser considerado não somente para que seja declarada extinta a medida após o seu transcurso, mas também para o cálculo da prescrição e dos direitos de execução penal.

A analogia in bonam partem deve ser empregada em favor dos inimputáveis, ao menos dos que cumprem medida de internação. Dessa forma, transcorrido o prazo previsto em lei para a progressão ao regime semiaberto, deverá tal direito, devidamente adaptado à situação do interno, ser concedido ao inimputável. Em Estados como São Paulo, que possui uma ala específica de “progressão”, é fácil operacionalizar esse sistema, bastando que se proceda à transferência do paciente. Assim, após o cumprimento do lapso temporal necessário para a progressão de regime, deve ser possibilitado ao internado que se valha dos direitos que seriam aplicáveis aos imputáveis, principalmente o trabalho externo e as saídas temporárias, ainda que acompanhados por funcionários do estabelecimento de internação, o que seria uma adaptação razoável à situação do portador de transtorno mental.

Quanto ao livramento condicional, desde que preenchido o requisito temporal, deverá ser o paciente desinternado, independentemente de laudo de cessação de periculosidade. É possível submetê-lo a condições compatíveis com o seu quadro clínico, como, por exemplo, a submissão a tratamento ambulatorial pelo prazo restante de sua medida de segurança, ou até que sobrevenha aquele laudo. Também é fundamental que se aplique a remição pelo trabalho ou pela leitura. Se haverá um prazo máximo fixado para a medida de segurança, e se é desejável que o sentenciado submetido à medida de segurança trabalhe e estude, não há qualquer obstáculo de ordem legal ou lógica para se lhe aplicarem os dispositivos legais pertinentes ao tema (SANTOS, 2020, p. 236).

Considerações finais

O convívio real de dois modelos conflitantes de gestão da saúde mental no âmbito do sistema de justiça criminal encerra importantes desafios para a interpretação e adoção de um modelo compatível com a dignidade humana e efetivação dos direitos fundamentais na execução penal.

É, pois, no âmbito da execução penal que os modelos manicomial e antimanicomial entram em confronto concreto, já que seus fundamentos e práticas são incompatíveis e não houve reconhecimento de revogação do regime previsto no Código Penal. Assim, as medidas de segurança seguem existindo e sua execução impõe problemas práticos e importantes diante da vigência da Lei Antimanicomial.

O trabalho reconhece e adota o regime da dupla garantia para enfrentar tais desafios. Segundo tal proposta, as medidas de segurança devem respeitar todos os direitos e garantias penais e processuais penais de modo a impedir que o tratamento dado ao inimputável seja mais severo do que o do imputável ou semi-imputável, ao mesmo tempo em que, por serem aplicadas a pessoas especialmente vulneráveis, devem incidir sobre elas também as normas previstas na legislação que protege as pessoas com deficiências e transtornos mentais, notadamente a Lei Antimanicomial e o Estatuto da Pessoa com Deficiência.

A partir da dupla garantia, as principais questões de conflito entre as normativas manicomial e antimanicomial são objeto de enfrentamento e propositura de encaminhamento jurídico adequado. Assim, propõe-se o fim do prazo mínimo para a internação, a impossibilidade de internação pelo mero descumprimento do tratamento ambulatorial (“regressão”) e a incidência dos direitos do sistema progressivo de execução penal.

Trata-se, portanto, de conferir efetividade à Lei Antimanicomial após mais de três décadas de vigência e incorporar os ditames da reforma psiquiátrica em um dos ambientes de maior violação de direitos humanos no Brasil. O modelo antimanicomial é o único compatível com a ordem constitucional e com a consequente efetivação de direitos fundamentais das pessoas com transtorno mental, que passa a incorporar a lógica da inclusão social e todas as suas decorrências na fase de execução penal.

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1 Mestre, Doutor e Pós-doutorando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Defensor Público do Estado de São Paulo. https://orcid.org/0000-0002-5623-8224. E-mail: patrickcacicedo@gmail.com.

2 Mestre e Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo. http://orcid.org/0000-0003-4831-5426. E-mail: thiagoppsantos@hotmail.com.