https://doi.org/10.18593/ejjl.29908

A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a tutela inédita dos Direitos Sociais: análise do caso comunidades indígenas Miembros de la Asociacion Lhaka Honhat vs. Argentina à luz dos direitos da personalidade

The Inter-american Court of Human Rights and the unpublished tutelage of Social Rights: an analysis about the case indigenous communities Miembros de la Asociacion Lhaka Honhat vs. Argentina using the personality rights as a point of view

Bruna Caroline Lima de Souza1

Dirceu Pereira Siqueira2

Resumo: O caso comunidades indígenas miembros de la asociacion Lhaka Honhat vs. Argentina foi um caso julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 6 de fevereiro de 2020, que tinha como reivindicação principal o reconhecimento da propriedade ancestral dessas comunidades sobre os lotes fiscais 14 e 55 (atualmente com registros cadastrais 175 e 5557 do Departamento da Rivadavia), situados na Província de Salta, na Argentina, cuja área possui aproximadamente 643.000 hectares e faz fronteira com o Paraguai e Bolívia. O caso não tinha como violação apenas o reconhecimento do direito de propriedade ancestral da terra pelas comunidades, mas também a lesão a diversos direitos decorrentes da ocupação e atividade ilegal que ocorria nessas terras, como a violação ao direito ao meio ambiente saudável, ao direito à identidade cultural, ao direito à alimentação e ao direito à água, isto é, direitos sociais, os quais foram analisados de forma inédita pela Corte em caso contencioso. Assim, o presente artigo visa fazer uma análise do referido caso, à luz dos direitos da personalidade, e responder ao questionamento: a sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e as teses e responsabilizações nela firmadas vigoraram como um instrumento de efetividade dos direitos da personalidade desses povos, permitindo com o que as comunidades indígenas vítima dos casos tenha a possibilidade de um livre e pleno desenvolvimento da personalidade dos seus membros a partir do que ficou determinado na aludida sentença? Para tanto, utilizar-se-á o método hipotético-dedutivo e a metodologia pautada nas técnicas de análise jurisprudencial e revisão bibliográfica.

Palavras-chave: Comunidade indígena; Lhaka Honhat; Direito de propriedade ancestral; Direitos da personalidade; Corte IDH.

Abstract: The case about the indigenous communities miembros de la asociacion Lhaka Honhat vs. Argentina was a case judged by the Inter-American Court of Human Rights, in February 6, 2020. It had as main claim the recognition of ancestral property of these communities, related to the tax parcels 14 and 55 (which currently have the registration record 175 and 5557 from Rivadavia Department), from the province of Salta, in Argentina, which its area has about 643,000 hectares and borders Paraguay and Bolivia. This case did not just have a violation connected to the recognition of ancestral property right related to those communities’ land, but also there is the lesion to diverse rights linked with the occupation and the illegal activities that happened in this land, like the violation of the right to a healthy environment, of the right to cultural identity, of the right to food, of the right to water, namely, social rights, which were analyzed, in na unpublished way, by the Court in contentious case. So, the present paper aims to analyze this case by the point of view of the personality rights, and to answer the question: Were the sentence uttered by the Inter-American Court of Human Rights and its theses and the accountabilities signed on it in force as an effectivity instrument of the personality rights of these peoples, allowing the indigenous communities, victims on this case, to have the possibility of having a free and plenary personality development by what were determinate on it? Therefore, it will be used the hypothetico-deductive model and the methodology ruled by the jurisprudential analysis techniques and the bibliographic review.

Keywords: Indigenous communities; Lhaka Honhat; Ancestral property right; Personality rights; HDI Court.

Recebido em 08 de dezembro de 2021

Avaliado em 08 de novembro de 2022 (AVALIADOR A)

Aceito em 26 de outubro de 2023

Introdução

O caso comunidades indígenas miembros de la asociacion Lhaka Honhat vs. Argentina foi um caso submetido inicialmente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e posteriormente enviado para julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que tinha como reivindicação principal o reconhecimento da propriedade ancestral dessas comunidades sobre os lotes fiscais 14 e 55 (atualmente com registros cadastrais 175 e 5557 do Departamento da Rivadavia), situados na Província de Salta, na Argentina, cuja área possui aproximadamente 643.000 hectares e faz fronteira com o Paraguai e Bolívia, tendo a sentença sido proferida em 6 de fevereiro de 2020 pela aludida Corte.

No referido caso, em que pese tivesse como objetivo principal esse reconhecimento pela propriedade ancestral das referidas terras pelas comunidades indígenas reunidas na Associação Lhaka Honhat, buscava também o reconhecimento de uma série de violações de direitos dessas comunidades decorrentes dessa ausência de reconhecimento do direito de propriedade por parte da Argentina, que ocasionaram a ocupação de parte do território por povos “crioulos”, o desmatamento ilegal e a realização de obras sem consulta das comunidades e, consequentemente, impediram ou obstaculizaram o exercício livre e pleno de diversos direitos desses povos, como o direito ao meio ambiente saudável, o direito à identidade cultural, o direito à alimentação e o direito à água.

Desta forma, no aludido caso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de analisar sobre o direito de propriedade ancestral dessas terras por parte dessas comunidades, analisou também a violação aos referidos direitos, o que ocorreu de forma inédita em casos contenciosos, haja vista até então a Corte havia pautado seus julgamentos em violações de direitos humanos de ordem mais individuais, como o direito à propriedade, à liberdade, à vida, entre outros, e não em direitos reconhecidamente de ordem social, como o direito à alimentação e água.

Assim, o presente artigo visará expor os principais aspectos que envolveram o caso, a história processual do mesmo, os direitos que precisaram ser enfrentados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, as razões fáticas e jurídicas mais relevantes que foram adotadas pela mesma e as teses e responsabilizações firmadas na sentença, bem como analisar se o modo que a Corte se posicionou sobre os direitos violados, em especial sobre os direitos ao meio ambiente saudável, à identidade cultural, à alimentação e à água estão em consonância com a proteção e efetividade dos mesmos à luz dos direitos da personalidade.

Nesta toada, necessário destacar que a concepção de direitos da personalidade aqui abordada não se refere a uma compreensão restrita dos direitos da personalidade, compreendidos apenas em um âmbito de direitos individuais como direito à vida, à liberdade, à integridade física, à moral, entre outros, como costuma ser identificado pela doutrina clássica, e sim em uma tutela mais expansiva dos direitos da personalidade, em que se tenha como objetivo a tutela efetiva do livre e pleno desenvolvimento da personalidade e em que se vislumbre a pessoa humana como um ser concreto, dinâmico, evolutivo e complexo, que não possui um desenvolvimento da personalidade livre e pleno apenas pelo fato de existir, e sim por meio do acesso à direitos básicos e necessários (como o direito à alimentação, à água e a cultura) para que esse desenvolvimento seja possível de forma plena e eficaz.

Assim, ter-se-á como problemática à ser respondida o questionamento de se a sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e as teses e responsabilizações nela firmadas vigoraram como um instrumento de efetividade dos direitos da personalidade desses povos, permitindo com o que as comunidades indígenas vítima dos casos tenham a possibilidade de um livre e pleno desenvolvimento da personalidade dos seus membros a partir do que ficou determinado na aludida sentença.

Para tanto, utilizar-se-á o método hipotético dedutivo e a metodologia pautada nas técnicas de análise jurisprudencial, para apresentar e analisar a sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, e a técnica de revisão bibliográfica para as críticas que serão tecidas a partir da decisão, no qual se utilizar-se-á de artigos e livros, físicos ou virtuais, sendo estes situados em revistas científicas ou presentes em base de dados, nacionais ou estrangeiras (como Scielo, Google Acadêmico ou Ebsco), com o fim de subsidiar teoricamente as críticas tecidas sobre a decisão.

1 Os fatos

O caso levado à julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos possuiu como vítimas as 132 Comunidades indígenas pertencentes aos povos Wichí (Mataco), Iyjwaja (Chorote), Komlek (Toba), Niwackle (Chulupí) e Tapy’y (Tapiete), reunidas na Associação de Comunidades Aborígenes Lhaka Honhat, as quais foram representadas no trâmite do processo pela aludida Associação, possuindo como integrantes os membros das comunidades indígenas vítimas e tendo o patrocínio do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) e do Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL), e figurando como demandado o Estado da Argentina.

O caso refere-se à reivindicação de propriedade das comunidades indígenas pertencentes aos referidos povos, mais especificadamente a propriedade dos lotes fiscais 14 e 55 (atualmente com registros cadastrais nº 175 e 5557 do Departamento de Rivadavia), situados na Província de Salta, no Estado da Argentina, cuja área possui aproximadamente 643.000 hectares e faz fronteira com o Paraguai e Bolívia (CORTE IDH, 2020, p. 18, par. 47).

As comunidades reivindicaram direitos associados ao reconhecimento da propriedade localizada nos lotes acima citados sob o fundamento de ocupação ancestral dos mesmos, uma vez que, segundo estudos realizados por especialistas, a presença indígena na região é anterior a 1629, isto é, antes mesmo do estabelecimento do Estado Argentino, no século XX (CORTE IDH, 2020, p. 20, par.49). Tal reivindicação de deu especialmente em razão de colonos não indígenas (“crioulos”) terem ocupado parte do território desde o início do século XX (CORTE IDH, 2020, p. 21, par. 51) e lá instalado cercas e criado gados (CORTE IDH, 2020, p. 33, par. 86), o que prejudicou não só o uso livre do território pelos indígenas, mas também acarretou na violação de diversos direitos dos mesmos, inclusive direitos sociais.

Dentre os fatos incluíram-se ainda o apontamento acerca da extração ilegal de madeira que estava ocorrendo nos referidos lotes (CORTE IDH, 2020, p. 33, par. 86), bem como a realização de atividades e projetos no território reivindicado (CORTE IDH, 2020, p. 34, par. 87), tal como a construção de uma ponte internacional ocorrida em 1995 (CORTE IDH, 2020, p. 26, par.63), a Rota Nacional, a Rota provincial e a exploração de hidrocarbonetos (CORTE IDH, 2020, p. 34, par. 87).

Ressalta-se que a extração ilegal da madeira na área dos lotes em discussão, assim como a criação de gado e instalação de cercas pela população crioula seriam motivos de grandes problemas ambientais para o povo Wichí, em razão da contaminação da água com as fezes dos animais (CORTE IDH, 2020, p. 90, par. 257) e até mesmo da escassez da mesma em razão da proibição de acesso das comunidades indígenas aos reservatórios de água pelas famílias crioulas (CORTE IDH, 2020, p. 91-92, par. 261), bem como da perda geral de biodiversidade em razão da seletividade do gado em sua alimentação (CORTE IDH, 2020, p. 90, par. 258), do consumo pelos gados dos mesmos frutos consumidos pelos indígenas e da destruição das cercas das comunidades onde havia a produção de alimentos pelos mesmos (CORTE IDH, 2020, p. 91, par. 260).

Desta forma, os fatos discutidos na Corte não se restringiram a questão do direito de propriedade ancestral do território, alcançando também a análise de diversos outros direitos que estariam sendo violados em razão da ocupação de parte do território pelos crioulos (como os direitos à alimentação, ao acesso à água e ao meio ambiente saudável), da extração ilegal da madeira que ocorria no local, da construção de rodovias realizadas sem prévia autorização dos mesmos e da violação de direitos judiciais, os quais o Estado da Argentina teria sido omisso em relação a medidas de não violação ou seriam os próprios violadores desses direitos.

2 História processual

Após diversas tentativas de reconhecimento da propriedades das comunidades indígenas reunidas na Associação Lhaka Honhat restarem infrutíferas (ou no mínimo ineficazes) no âmbito interno da Província de Salta e no âmbito nacional da Argentina, a referida associação submeteu o caso perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual recebeu a petição apresentada pela Associação Lhaka Honhat, com o patrocínio do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) e do Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL), em 4 de agosto de 1998. (CORTE IDH, 2020, p. 5, par. 2)

Na data de 21 de outubro de 2006 a Comissão declarou a admissibilidade da petição (admissibilidade nº 78/06), aceitando a petição. Posteriormente, em 26 de janeiro de 2012 a mesma aprovou o Relatório de Mérito nº 2/12, no qual fez uma série de conclusões e recomendações3 à Argentina. (CORTE IDH, 2020, p. 5-6, par. 2)

Em 26 de março de 2012 a Comissão emitiu uma notificação ao Estado da Argentina sobre o Relatório de Mérito, a qual foi enviada no dia seguinte dando o prazo de dois meses para que o mesmo relatasse o cumprimento das recomendações, sendo que em 25 de maio de 2012 houve resposta do Estado ao Relatório de Mérito, no qual ele indicou que havia transferido para as autoridades provinciais competentes para que elas apresentassem as observações, solicitando um período adicional para informar as medidas adotadas. (CORTE IDH, 2020, p. 6, par. 2)

Na sequência, houve uma série de relatórios enviados pela Argentina, sendo que: em 15 de janeiro e 8 de julho de 2014 o Estado apresentou relatórios sobre ações e recursos ordenados na área pelo Estado Nacional e pela Província de Salta, bem como a “rota de trabalho” para concluir as recomendações e em 19 de julho de 2016 a Argentina informou sobre as medidas adotadas e alertou acerca da sua complexidade. Posteriormente, em 25 de outubro de 2017, as partes e a Comissão realizaram uma reunião de trabalho, onde ficou acordado que o Estado apresentaria um projeto detalhado sobre o cumprimento das recomendações, tendo a Comissão, em 1 de novembro de 2017, concedido a última extensão de prazo ao Estado da Argentina, o qual apresentou o projeto no dia 24 do mesmo mês, com um novo relatório e um novo pedido de extensão de prazo em comunicação datada de 16 de janeiro de 2018. (CORTE IDH, 2020, p. 6, par. 2)

A nova solicitação de prazo foi, todavia, negada pela Comissão, que considerou que, embora tivesse havido progresso, o projeto estadual apenas havia oferecido perspectivas de implementação por um longo período temporal, sem haver expectativas de implementação para as recomendações dentro de um prazo razoável de tempo (CORTE IDH, 2020, p. 6, par. 2).

Assim sendo, em 1 de fevereiro de 2018 a Comissão submeteu o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CORTE IDH, 2020, p. 6, par. 3), solicitando que ela concluísse e declarasse a responsabilidade internacional da Argentina pelas violações estabelecidas e informadas no relatório de mérito, bem como que ordenasse como medidas de reparação as recomendações incluídas no mesmo. (CORTE IDH, 2020, p. 7, par. 4)

Posteriormente a submissão do caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, houve a notificação do Estado e dos representantes sobre a referida submissão, o que ocorreu em 7 de fevereiro de 2018 (CORTE IDH, 2020, p. 7, par. 5).

Em 25 de maio do mesmo ano, o Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) e a Associação Lhaka Honhat apresentaram seus resumos de solicitações, argumentos e evidências, sendo que nele eles concordaram com as conclusões da Comissão sobre os artigos violados da Convenção, mas também alegaram a violação ao direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, a liberdade de associação, a liberdade de movimento e residência, e ainda aos direitos à identidade cultural, à alimentação adequada e a um ambiente saudável. (CORTE IDH, 2020, p. 7, par. 6)

Posteriormente, em 4 de setembro de 2018, o Estado da Argentina apresentou um escrito contendo uma “objeção preliminar”, em que alegava incompetência da Corte para o conhecimento dos acontecimentos ocorridos após 26 de janeiro de 2012 (data do Relatório de Mérito), bem como apresentava resposta à submissão do caso, observações sobre os pedidos, argumentos e escritos de evidência. (CORTE IDH, 2020, p. 7, par. 7)

Em 8 de fevereiro de 2019, o presidente da Corte emitiu uma resolução convocando o Estado da Argentina, os representantes e a Comissão Interamericana para uma audiência pública, a qual foi realizada em 14 de março de 2019, na sede da Corte4, e onde a Corte, além de ouvir as partes, testemunhas, peritos e a Comissão, informou ainda que havia aceitado o pedido dos Representantes das comunidades indígenas para a realização de um procedimento no local. (CORTE IDH, 2020, p. 7-8, par. 8)

Posteriormente a diligência no local houve, em 3 de junho de 2019, a apresentação das alegações finais escritas por parte dos representantes e da Argentina, bem como a apresentação das observações finais escritas por parte da Comissão. (CORTE IDH, 2020, p. 9, par. 11)

Por fim, a Corte iniciou em 27 de novembro de 2019 a deliberar sobre a sentença, o que continuou em 29 de janeiro de 2020, até a consequente emissão da sentença em 6 de fevereiro de 2020. (CORTE IDH, 2020, p. 10, par. 12)

3 O direito

No caso em foco, o direito principal envolvido é o direito de propriedade das comunidades indígenas decorrentes do vínculo ancestral das mesmas com o território objeto de discussão (lotes ficais 14 e 55, atualmente com registros cadastrais nº 175 e 5557 do Departamento de Rivadavia, na Província de Salta, no Estado da Argentina, com área de aproximadamente 643.000 hectares). Todavia, a controvérsia em si não se refere a contestação sobre esse direito das comunidades indígenas, mas sim se as condutas do Estado da Argentina permitiram a segurança legal ao direito de propriedade e o pleno exercício do mesmo, bem como se há responsabilidade do referido estado pelas consequências que a violação desse direito de propriedade gerou para as comunidades indígenas reunidas na Associação Lhaka Honhat.

Desta forma, teve-se de um lado as alegações da Argentina de que agiu diligentemente para garantir o pleno exercício desse direito, e as alegações da Comissão e dos representantes do contrário, os quais apontaram ainda que as atividades ocorridas no território estavam gerando efeitos sobre o meio ambiente, a alimentação e a identidade cultural das comunidades indígenas que ali residem (CORTE IDH, 2020, p. 34, par. 89).

Assim sendo, insta destacar que a violação do direito de propriedade das terras indígenas ancestrais teve como consequência a violação de diversos outros direitos dessas comunidades, como a violação do direito à informação e de participação em questões que afetariam essas comunidades, a violação dos direitos e garantias judiciais em razão da falta de previsão de um procedimento efetivo para acessar a propriedade do território ancestral, a omissão do Estado para a tomada de ações efetivas para o controle do desmatamento nesses territórios, a execução de obras públicas pelo Estado e a concessão para exploração de hidrocarbonetos sem realização de prévios estudos de impacto ambiental e sem consultas prévias e informadas, conforme conclusões tecidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CORTE IDH, 2020, p. 5, par. 1), bem como, conforme as alegações dos representantes da Associação Lhaka Honhat, também tiveram violações atinentes ao direito de reconhecimento da personalidade jurídica, de liberdade de associação, de liberdade de movimento e residência e, ainda, aos direitos à identidade cultural, a alimentação adequada e a um ambiente saudável (CORTE IDH, 2020, p. 7, par. 6).

Acerca da violação aos direitos de circulação e residência, a um ambiente saudável, a uma alimentação adequada, à agua e a participação da vida cultural, os argumentos dos representantes foram no sentido de violação do art. 22 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos5, vez que, em decorrência da instalação de cercas por terceiros no território reivindicado, teria havido uma interferência ilegítima no exercício da liberdade de circulação das comunidades indígenas, sem que houvesse uma resposta das autoridades acerca dessa interferência, bem como violação ao art. 26 da aludida Convenção6, em razão da violação aos direitos ao meio ambiente saudável, à identidade cultural e a alimentação adequada, cujos direitos poderiam ser entendidos como contidos no aludido artigo da Convenção.

Ressalta-se que as alegações de violações acerca dos aludidos direitos merecem destaque em razão de que, de forma inédita, houve posteriormente a apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca de direitos que são enquadrados como direitos sociais e não simplesmente de direitos individuais, como o que ocorre em regra nas análises da Corte de casos contenciosos.

Acerca da degradação ambiental supramencionada, as alegações dos representantes foram no sentido de que essa se deu por um processo contínuo e profundo que iniciou no século XX, em razão da introdução da criação de animais maiores pelos crioulos, como o gado, os quais teriam atacado a vegetação herbácea e arbórea, destruindo a capacidade de irrigação e regeneração do solo e provocando processos de desertificação e escavação, além de competirem com os mesmos pelo consumo de alimentos e água. Alegou ainda que a perda da flora afeta o habitat natural da fauna selvagem, a qual se deu não apenas em razão da manutenção de gado no território, mas também em decorrência da instalação de cercas no território, que constituiriam “obstáculos naturais” ao seu desenvolvimento. (CORTE IDH, 2020, p. 65, par. 187)

Sobre a violação de tais direitos, os representantes alegaram ainda que em razão da degradação ambiental e do “recinto” dos crioulos houve também uma violação do direito à alimentação e à agua das comunidades, isto porque os gados dos colonos crioulos: a) se alimentavam das mesmas frutas que as comunidades indígenas; b) comiam as raízes de árvores, impedindo a sua regeneração; c) consumiam a água que as próprias comunidades necessitavam para a sua subsistência, sendo que ainda por diversas vezes encontravam-se situações de contaminação da água pelas fezes dos animais; d) geravam uma diminuição da vida selvagem, afetando a caçada e uma parte importante da dieta das comunidades, e; e) destruíam as cercas que as comunidades indígenas construíam para suas culturas alimentares. Alegaram ainda que as cercas instaladas pelas famílias crioulas afetavam o trânsito da fauna silvestre, restringiam a liberdade de circulação das comunidades, impedindo os circuitos tradicionais da comunidade de circulação e caça, e muitas vezes continham reservatórios de água. (CORTE IDH, 2020, p. 65, par. 188)

Assim sendo, verifica-se que suscitou-se a violação de diversos direitos das comunidades indígenas reunidas na Associação Lhaka Honhat, decorrentes da violação ao direito à propriedade ancestral da terra e de inúmeras tentativas ineficazes de ter reconhecido e efetivado esse direito pelo Estado da Argentina, que levou o caso não apenas para a apreciação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, mas também para o julgamento perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

4 Razões fáticas e jurídicas da decisão final

Diversas foram as razões fáticas e jurídicas que levaram a Corte Interamericana de Direitos Humanos a uma decisão final sobre o caso, porém necessário destacar primeiramente qual foi o entendimento da mesma sobre quais seriam as vítimas do presente caso, para então adentrar as aludidas razões.

A Corte considerou que se referindo a direitos dos povos indígenas, era apropriado considerar que as “comunidades” indígenas fossem consideradas as supostas vítimas (CORTE IDH, 2020, p. 13, par.30), cujas variações nas quantidades ocorriam devido às características dos povos envolvidos que, por serem comunidades nômades, possuem uma estrutura social ancestral que envolvem a dinâmica “fissão-fusão” (CORTE IDH, 2020, p. 14, par. 33) e que, desta forma, fixar delimitações sobre as supostas vítimas sem conhecer características culturais dessas comunidades era contraditório com a própria proteção dos direitos dos povos e comunidades indígenas, os quais se baseiam em suas identidades culturais (CORTE IDH, 2020, p. 14, par. 34).

Desta forma, a Corte considerou que o caso era coletivo e que figuravam como supostas vítimas todas as comunidades indígenas indicadas pelos representantes em suas alegações finais, as quais totalizariam 132 comunidades indígenas que habitam a terra anteriormente indicada como “lotes fiscais 14 e 55” (CORTE IDH, 2020, p. 14, par. 35).

No que tange a violação ao direito à propriedade, a Corte considerou que para materializar os direitos territoriais dos povos indígenas abarcados pela proteção do art. 21 da Convenção, os Estados precisam prever um mecanismo eficaz nesse sentido, por meio de adoção das medidas legislativas e administrativas necessárias (CORTE IDH, 2020, p. 44, par. 116). Desta forma, a Corte evidenciou que em que pese o tribunal destaque e valorize de forma positiva o processo de diálogo seguido no caso (CORTE IDH, 2020, p. 50, par. 139), era necessário considerar também que os procedimentos deveriam ser adequados para garantir a propriedade das comunidades indígenas em seu território, sem que o Estado sujeitasse tal garantia à vontade dos indivíduos (CORTE IDH, 2020, p. 51, par. 144).

Quanto as alegações dos representantes sobre as violações aos direitos de circulação e residência, previstos no art. 22 da Convenção, a Corte esclareceu que o aludido artigo se refere à escolha do local de residência, entrada, saída e circulação no território nacional, o qual não seria aplicável ao caso, visto que o poder de uma pessoa para se deslocar em terras que a elas pertencem encontra-se incluído no direito de propriedade, bem como que o suposto impacto da instalação de cercas no local seria examinado em relação aos direitos contidos no artigo 26 da Convenção (CORTE IDH, 2020, p. 67, par. 194).

No que tange as supostas violações aos direitos a um ambiente saudável, a uma alimentação adequada, à água e a participar da vida cultural, a Corte primeiramente ressaltou que é o primeiro caso contencioso que teve que se manifestar sobre os aludidos direitos (CORTE IDH, 2020, p. 69, par. 201), o que ressalta a importância da análise do presente caso para os estudos do Direito Internacional e para a própria história da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

O primeiro desses direitos analisados pela Corte foi sobre o direito a um ambiente saudável, momento em que cita a Opinião consultiva 23-17, observando que naquela ocasião ela afirmou:

[...] que o direito a um ambiente saudável “constitui um interesse universal” e “é um direito fundamental para a existência da humanidade” e que “como um direito autônomo, protege os componentes do ambiente, [...] como florestas, mares, rios e outros, como interesses legais em si mesmos, mesmo na ausência de certeza ou evidência sobre o risco para os indivíduos. Trata-se de proteger a natureza”, não apenas por sua “utilidade” ou “efeitos” em relação aos seres humanos “mas por sua importância para os outros organismos vivos com os quais o planeta é compartilhado”. O que precede não impede, obviamente, que outros direitos humanos sejam violados como consequência de danos ambientais. (CORTE IDH, 2020, p. 70, par. 203)7 – tradução livre.

Desta forma, a Corte argumentou que diversos são os direitos que podem ser afetados em razão de problemas ambientais, o que pode ocorrer em intensidade ainda maior em certos grupos que se encontram em situação de vulnerabilidade, entre os quais se incluem os povos indígenas e as comunidades que dependem fundamentalmente de recursos ambientais, seja economicamente ou para sua sobrevivência. Assim, afirmou que os Estados são legalmente obrigados a enfrentar tais vulnerabilidades, de acordo com o princípio da igualdade e não discriminação (CORTE IDH, 2020, p. 73, par. 209).

No que tange ao direito à alimentação adequada, a Corte considerou, fundamentando-se especialmente nos apontamentos feitos pelo Comitê de Direito Econômicos, Sociais e Culturais no Comentário Geral nº 12, que versou sobre o direito humano à alimentação adequada, primeiramente, que tal direito se referem ao acesso das pessoas a alimentos que viabilizam uma adequada nutrição e preservação da saúde, sendo que tal direito só é exercido quando as pessoas possuem o acesso físico e econômico, a todo momento, à uma alimentação adequada ou aos meios de obter a mesma (CORTE IDH, 2020, p. 74-75, par. 216), sendo que o conteúdo básico desse direito inclui não apenas a disponibilidade de alimentos em quantidade e qualidade suficientes e a acessibilidade desses alimentos de maneira sustentável e sem que prejudique o gozo de outros direitos (CORTE IDH, 2020, p. 75, par. 218), como também devem ser aceitáveis para uma cultura específica, ou seja, que também devem ser levados em consideração, na medida do possível, os valores relacionados com a nutrição que é associada aos alimentos e ao consumo alimentar (CORTE IDH, 2020, p. 76, par. 220).

Desta forma, a Corte entendeu que o Estado tem o dever não apenas de respeitar o direito à alimentação, como também de garantir e proteger tal direito, de modo houve violação desse direito pelo Estado em razão de não efetuar o controle das atividades de indivíduos ou grupos com o fim de impedir que violem o direito à alimentação de outras pessoas (CORTE IDH, 2020, p. 76, par. 221).

Acerca do direito à água, a Corte afirmou que se trata de um direito protegido pelo art. 26 da Convenção Americana, isto porque as normas da Carta da OEA permitem derivar direitos dos quais, por sua vez, deriva o direito à água, e que tal direito vincula-se a diversos direitos, como o direito à um ambiente saudável, à alimentação adequada, à saúde e até mesmo ao direito de participar da vida cultural (CORTE IDH, 2020, p. 77, par. 222). A Corte acrescentou ainda em sua fundamentação que apesar do acesso à água implicar em obrigações de realização progressiva, os Estados têm obrigações imediatas, como garantir tal acesso sem discriminação e tomar medidas para alcançar sua plena realização, sendo que entre as obrigações de garantia do Estado está incluído o dever de proteger dos atos de indivíduos, exigindo que o Estado impeça terceiros de prejudicar o gozo do direito à água, além de garantir um mínimo essencial de água nos casos em que pessoas ou grupos de pessoas não conseguem acessar a água sozinhos (CORTE IDH, 2020, p. 80-81, par. 229).

Assim sendo, sobre o direito à água, a Corte afirmou que para que os Estados cumpram suas obrigações com relação ao aludido direito, é necessário que seja dada especial atenção a indivíduos e grupos de pessoas que tradicionalmente tiveram dificuldades para exercer esse direito, o que inclui, entre outros, os povos indígenas, devendo garantir que o acesso desses povos aos recursos hídricos em suas terras ancestrais seja protegido de qualquer transgressão e contaminação ilícita, além de fornecer recursos para que tais povos planejem, exercitem e controlem seu acesso à água (CORTE IDH, 2020, p. 81, par. 230). Desta forma, se infere que era também de responsabilidade do Estado da Argentina garantir que esse direito fosse acessível à esses povos vítimas no presente caso, reprimindo a conduta de terceiros (crioullos) que atentasse contra a efetivação desse direito.

Ademais, no que tange as alegações de violação do direito de participar da vida cultural, a Corte Interamericana de Direitos Humanos analisou tal direito incluindo o direito à identidade cultural como uma parcela desse direito, à luz de diversos instrumentos internacionais, tais como a Declaração Americana de Direitos Humanos, o Protocolo de San Salvador, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, entre outros, os quais preveem, em síntese, o direito de toda pessoa de participar da vida cultural de sua comunidade. Considerou ainda que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos prevê em ser artigo 27 que nos Estados em que existirem minorias étnicas, religiosas ou linguísticas não será negado que tais pessoas, em conjunto com os membros do seu grupo, tenham a sua própria vida cultural, a professarem e praticarem a sua religião e a falar em seu próprio idioma, além de destacar que a própria Constituição da Argentina reconhece a existência étnica e cultural dos povos indígenas Argentinos e garante o respeito a sua identidade. (CORTE IDH, 2020, p. 82-83, par. 232, 233, 234 e 235).

Assim, a Corte entendeu que a diversidade cultural e sua riqueza devem ser protegidas pelos Estados, os quais têm a obrigação de proteger e promover esta diversidade, bem como de adotar políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos para que se garanta a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e da paz, fomentando o pluralismo cultural como a resposta política da diversidade cultural (CORTE IDH, 2020, p. 83, par. 238). Desta forma, a Corte Entendeu que:

[...] o direito à identidade cultural protege a liberdade das pessoas, inclusive agindo de forma associada ou comunitária, para se identificar com uma ou mais sociedades, comunidades ou grupos sociais, para seguir um estilo de vida ou estilo vinculado à cultura a que pertence e para participar de seu desenvolvimento. Nesse sentido, a lei protege os traços distintivos que caracterizam um grupo social, sem implicar negar o caráter histórico, dinâmico e evolutivo da cultura. (CORTE IDH, 2020, p. 84, par. 240)8 – tradução livre.

E acrescentou que entre as obrigações estatais em relação ao direito de participar da vida cultural, está a de adotar as medidas legislativas, administrativas e judiciais adequadas para a promoção e plena realização desse direito, sendo que o “proteger” exige que os Estados adotem medidas para impedir que outros atores interfiram nesse direito de outrem (CORTE IDH, 2020, p. 85, par. 242).

Prosseguindo na análise da violação de tais direitos, a Corte considerou que “os direitos acima mencionados estão intimamente ligados, de modo que alguns aspectos que fazem a observância de um deles pode se entrelaçar com a satisfação dos outros” (CORTE IDH, 2020, p. 85, par. 243), de modo que as ameaças ambientais existentes afetariam os alimentos, logo, o direito à alimentação, bem como o direito de participar da vida cultural e o direito à água, os quais são particularmente vulneráveis a danos ambientais (CORTE IDH, 2020, p. 86, par. 245).

Nesta toada, a Corte considerou a interdependência dos direitos analisados e a relação que o seu gozo apresenta nas circunstâncias do caso, os quais não deveriam ser entendidos de maneira restritiva (CORTE IDH, 2020, p. 96, par. 274), constatando que houve um impacto significativo no modo de vida das comunidades indígenas em relação ao seu território, cuja interferência nunca foi consentida pelas comunidades, e que caracterizou uma lesão ao gozo do seu território ancestral, afetando bens naturais e ambientais do território, incluindo o modo tradicional de alimentação dessas comunidades e seu acesso à água, caracterizando, assim, um prejuízo a identidade cultural relacionada com os recursos naturais e alimentares (CORTE IDH, 2020, p. 98-99, par. 284).

Constatou ainda que a falta de eficácia das ações do Estado da Argentina “também se enquadra em uma situação em que o Estado não garantiu às comunidades indígenas a possibilidade de determinar, livremente ou por meio de consultas apropriadas, as atividades relacionadas a seus interesses sobre seu território” (CORTE IDH, 2020, p. 99, par. 288), de modo que a Corte determinou que

[...] a Argentina violou, em detrimento das comunidades indígenas vítimas do presente caso, seus direitos, relacionados entre si, de participar da vida cultural, no que se refere à identidade cultural, ao meio ambiente, a alimentação e água saudáveis e adequadas, contidas no art. 26 da Convenção americana, em relação à obrigação de garantir os direitos previstos no artigo 1.1 do mesmo instrumento. (CORTE IDH, 2020, p. 99, par. 289)9

Por fim, acerca das alegações de violação de garantias e proteções judiciais, a Corte analisou as diversas ações judiciais mencionadas no caso (Ação de Amparo referente à construção da ponte internacional; Ações do Decreto 461/99 e da Resolução 423/99; Ação contra o referendo de 2005) e concluiu que houve violação do Estado a garantia do prazo razoável nas ações contra o Decreto 461/99 e a Resolução 423/99, o que violou o art. 8.1 da Convenção, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento (CORTE IDH, 2020, p. 104, par. 305).

Desta forma, vislumbra-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou, pautada em diversos fundamentos, que houve diversas violações do Estado da Argentina para com as comunidades vítimas do caso, em razão da violação do direito das mesmas ao território ancestral, o que incluiu a violação do direito à identidade cultural, ao meio ambiente saudável, ao direito à alimentação e ao direito à água, direitos esses que teve análise inédita pela Corte, vez que pela primeira vez houve o pronunciamento do referido Tribunal em ação contenciosa sobre direitos de ordem social e não apenas de ordem individual, como comumente ocorre nas demandas julgadas pela aludida Corte.

5 A tese firmada na decisão final

A decisão do caso em foco demandou da Corte uma análise profunda de diversos direitos arguidos como violados pelo Estado da Argentina em face das comunidades indígenas reunidas na Asociacion Lhaka Honhat, de forma que diversas foram as teses firmadas na decisão final da Corte, em relação a cada direito supostamente violado, e cujas razões fáticas e jurídicas para as mesmas já foram abordadas no tópico anterior.

Primeiramente quanto a violação do direito à propriedade, a Corte entendeu que, em que pese o Estado tenha reconhecido através de atos legais os direitos de propriedade das comunidades, tal reconhecimento deveria fornecer segurança jurídica à lei de forma que esta seja executória contra terceiros, cujas ações nesse sentido não foram concluídas. Assim, concluiu que o reconhecimento legal existente do direito de propriedade das comunidades indígenas sobre o seu território ainda não era adequado e suficiente para que houvesse o exercício pleno do direito de propriedade (CORTE IDH, 2020, p. 53, par. 149), além do fato de que ainda não havia sido demarcado o território e subsistia a permanência de terceiros no local (CORTE IDH, 2020, p. 58, par. 167). Assim, a Corte determinou que:

[...] o Estado violou, em detrimento das comunidades indígenas vítimas do presente caso, o direito de propriedade em relação ao direito de ter procedimentos adequados e com as obrigações de garantir direitos e adotar disposições de direito interno. Portanto, a Argentina violou o artigo 21 da Convenção em relação aos artigos 8.1, 25.1, 1.1 e 2. (CORTE IDH, 2020, p. 58, par. 168)10

Ante o reconhecimento de violação do direito de propriedade das comunidades indígenas em foco, a Corte determinou que o Estado da Argentina adote e conclua as ações necessárias, sejam elas legislativas, administrativas, judiciais, registrais, notariais ou de qualquer outro tipo, a fim de delimitar, demarcar e outorgar um título coletivo que reconheça a propriedade de todas as comunidades indígenas vítimas sobre o seu território (CORTE IDH, 2020, p. 108, par. 327). Além disso, determinou a obrigação do Estado de abster-se de realizar atos, obras ou empreendimentos sobre o território indígena ou, se assim fizerem, que tais atos devem ser precedidos de informação sobre a proposta para as comunidades e da realização de consultas prévias adequadas, livres e informadas (CORTE IDH, 2020, p. 109, par. 328). Por fim, determinou ainda ações concretas do Estado para fazer a retirada da população crioulla do território indígena, preferencialmente com procedimentos que visem a retirada voluntária dos mesmos (CORTE IDH, 2020, p. 109-110, par. 329), bem como que removam do território as cercas instaladas e os gados pertencentes a população crioulla (CORTE IDH, 2020, p. 110, par. 330).

Quanto a violação aos direitos ao meio ambiente saudável, à alimentação, à água e a identidade cultural, a Corte reconheceu que houve a lesão ao direito à água potável pelas comunidades em razão da criação de gado e atividades desenvolvidas no território pela população crioulla, bem como degradação ambiental em razão do desmatamento ilegal, com a consequente violação aos referidos direitos (CORTE IDH, 2020, p. 110-111, par. 331), de forma que determinou uma série de medidas para a restituição desses direitos pelo Estado da Argentina, ao qual foi atribuída responsabilidade pela violação a tais direitos.

Entre as medidas de reparação desses direitos, determinou que o Estado da Argentina, no prazo de 6 meses a partir da notificação da aludida sentença, identificasse entre as pessoas que integram as comunidades indígenas vítimas do caso aquelas que encontravam-se em situação crítica de falta de acesso à água potável ou alimentação, que pudessem estar em estado grave de saúde e de vida, e formulasse um plano de ação que determinassem as ações que o Estado realizaria para atender tais situações de forma adequada, assinalando o tempo em que as mesmas seriam executadas, devendo iniciar as implementações imediatamente a apresentação do referido plano. (CORTE IDH, 2020, p. 11, par. 332)

Adicionalmente a essas medidas, e visando produzir efeitos permanentes para a preservação dos bens e serviços básicos de forma adequada e periódica, bem como para uma preservação e melhoramento dos recursos ambientais, a Corte determinou que o Estado da Argentina realizasse um estudo, no prazo de 1 (um) ano da notificação da sentença, no qual estabelecesse ações que deveriam ser efetivadas para: a conservação da água, superficiais e subterrâneas, existentes no território indígena a que se refere o caso, bem como para evitar sua contaminação e tratar a contaminação existente; garantir o acesso permanente a água potável pelas pessoas integrantes das comunidades indígenas vítimas; evitar que continuem ocorrendo diminuição dos recursos florestais no território, bem como promover a sua progressiva recuperação, e; possibilitar de forma permanente que todas as pessoas integrantes das aludidas comunidades tenham acesso a alimentação de forma nutricional e culturalmente adequada (CORTE IDH, 2020, p. 111, par. 333). Quanto ao desmatamento ilegal, a Corte determinou ainda que o Estado promova ações de monitoramento e acompanhamento, inclusive a partir de denúncias (CORTE IDH, 2020, p. 112, par. 336).

A Corte, no que tange a lesão aos direitos a identidade cultural, ao meio ambiente saudável, à alimentação e à água, ordenou ainda que o Estado da Argentina crie um fundo de desenvolvimento comunitário que tenha por efeito, principalmente, reparar o dano a identidade cultural sofrido pelas comunidades vítimas, bem como como compensação pelos danos materiais e imateriais sofridos por elas (CORTE IDH, 2020, p. 112, par. 337 e 338). Determinou que o fundo de desenvolvimento comunitário seja destinado para ações que visem a recuperação da cultura indígena, incluindo entre seus objetivos, o desenvolvimento de programas referentes a segurança alimentar e a documentação, estimulando a difusão da história das tradições das comunidades indígenas vítimas (CORTE IDH, 2020, p. 112, par. 339).

Sobre tais direitos, determinou ainda que o Estado adote todas as medidas administrativas, legislativas, financeiras, de recursos humanos e de quaisquer outras índoles necessárias para a constituição desse fundo (CORTE IDH, 2020, p. 113, par. 340), no qual a Argentina deverá destinar o montante de U$ 2.000.000,00 (dois milhões de dólares dos Estados Unidos da América) (CORTE IDH, 2020, p. 113, par. 342).

Ademais, a Corte determinou que pelo prazo de 6 (seis) anos após a notificação da sentença, o Estado apresente informações periódicas, detalhando as ações e avanços efetivados para o cumprimento de cada uma das medidas de restituição do direito ordenadas (CORTE IDH, 2020, p. 113, par. 344), bem como determinou que, no prazo de 6 (seis) meses a Argentina publique a sentença em diversos espaços de circulação nacional (CORTE IDH, 2020, p. 115, par. 348) e difunda um resumo da sentença através de emissora de rádio de ampla cobertura, que alcança toda a extensão dos lotes fiscais 14 e 15 do Departamento da Rivadavia na província de Salta, em espanhol e nas línguas das comunidades indígenas (CORTE IDH, 2020, p. 115 par. 349).

Por fim, como medidas de não repetição, a Corte ordenou que o Estado adote medidas legislativas ou de outro caráter que forem necessárias para que, conforme as pautas indicadas na sentença, seja dada segurança jurídica ao direito humano de propriedade comunitária indígena, prevendo procedimentos específicos para tal fim (CORTE IDH, 2020, p. 116, par. 354).

Desta feita, vislumbra-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme fundamentação exposta no tópico anterior, entendeu pela responsabilidade do Estado da Argentina pela violação às comunidades indígenas vítimas ao direito à propriedade do território em razão da ancestralidade, a qual originou a lesão de diversos outros direitos humanos dessas comunidades, como o direito a identidade cultural, à alimentação, à água e ao meio ambiente saudável, os quais também teve responsabilidade atribuída ao aludido Estado, razão pela qual determinou uma série de medidas de reparação, proteção e não repetição das aludidas violações.

6 Crítica

Conforme se verificou nos tópicos anteriores, o presente caso se mostra como um marco na história da Corte Interamericana de Direitos Humanos, pois é o primeiro caso contencioso analisado pela Corte em que ela se manifesta sobre a violação dos direitos à um meio ambiente saudável, à alimentação, à água e a identidade cultural, fundamentando sua análise na previsão do art. 26 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos11.

É interessante destacar que a análise da Corte não dissociou da forma como os referidos direitos vêm sendo tratados pela doutrina. No que tange ao direito ao meio ambiente saudável, a Corte já havia se manifestado em uma Opinião Consultiva (OC ٢٣-١٧) proposta pela Colômbia, isto porque os países já haviam percebido que “[...] os problemas ambientais ultrapassam fronteiras e não têm como serem resolvidos senão pela cooperação entre eles” (MAZZUOLI, ٢٠١٣, p. ١٠٢٦), e utilizou-se de diversos argumentos do referido documento no presente caso.

Na referida Opinião Consultiva a Corte já havia se manifestado traçando uma correlação entre os direitos humanos e o meio ambiente, afirmando haver uma estreita relação entre a vigência dos direitos econômicos, sociais e culturais – que incluiria o ao meio ambiente saudável – e os direitos civis e políticos, bem como que as diferentes categorias de direitos acabam por constituir um todo indissolúvel que se fundamenta no reconhecimento da dignidade da pessoa humana e que exigem uma tutela e promoção permanente para alcançar a sua vigência plena (CORTE IDH, 2017, p. 22, par. 47).

Assim, se observa que na decisão da Corte aqui em foco ela levou em consideração essa correlação do direito ao meio ambiente saudável com outros direitos, como o direito à alimentação, à água, e a identidade cultural, ainda mais se tratando de violações que envolvem comunidades indígenas, que são “minorias” por excelência, que guardam um traço cultural comum presente em todos os indivíduos (SIQUEIRA; CASTRO, 2017, p. 111).

Necessário destacar que o termo minorias pode ser atribuído à população indígena na medida em que, na compreensão das diferenças existentes entre grupo de vulneráveis e minorias, verifica-se que enquanto os grupo de vulneráveis buscam exercer seus direitos sem guardar a preservação do traço que o colocou em discriminação para o restante da sociedade, as minorias, ao contrário, buscam justamente ter direitos e exercê-los preservando o objeto de discriminação, em razão do mesmo fazer parte do seu traço cultural, de um elemento identificador da sua cultura, da identidade que reúne aquele ser aos demais do seu grupo específico (SIQUEIRA; CASTRO, 2017, p. 118), no qual a população indígena se inclui justamente em razão de visar ter assegurado os seus direitos preservando a sua cultura e identidade cultural que as diferenciam do restante da sociedade.

Sobre minorias, ensina Séguin (2002, p. 9), que as mesmas possuem um número de contingente numericamente inferior de indivíduos, os quais são destacados por uma característica que os distinguem dos demais habitantes do país, estando em menor quantidade e ocupando uma posição de não-dominância, onde se encontram as minorias religiosas, étnicas e linguísticas, todavia, na sociedade contemporânea, “nem sempre diz respeito a um grupo que possui o menor número de pessoas, pelo contrário, por vezes são numerosos” (SIQUEIRA; CASTRO, 2017, p. 111).

Ademais, importante destacar que em se tratando de comunidades indígenas, a cultura é um fator que exerce preponderância no cotidiano, vida e pensamento dessas pessoas, e esta “pode ser aproximadamente resumida como o complexo de valores, costumes, crenças e práticas que constituem o modo de vida de um grupo específico” (EAGLETON, 2005, p. 54-55) ou como “o conjunto de características espirituais e materiais, intelectuais e afetivas distintas que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que engloba [...] modos de vida, modos de viver juntos, sistemas de valores, tradições e crenças” conforme definição da UNESCO para “cultura”12.

Nesta toada, o ser indígena implica necessariamente na reunião de elementos de sua história passada, do momento atual, de lutas políticas e processos de resistência e das perspectivas futuras, referentes ao respeito à diversidade cultural que os marcam, à garantia de seus territórios e ao reconhecimento das pessoas indígenas como sujeitos de direito, sendo que a afirmação dessa identidade étnica ocorre por meio do fortalecimento dos laços grupais e das práticas culturais, no intento de preservar e recuperar aspectos culturais que marcam a distinção étnica dos mesmos (CORREIA; MAIA, 2021, p. 3).

Assim, a cultura para os indígenas envolve não apenas as suas ações tradicionais manifestadas em rituais, mas também na sua relação com a terra (em especial com as terras ancestrais), com os alimentos, com a fauna e flora, enfim, com todo o ambiente que vivem e do qual extraem sua sobrevivência.

Nesse sentido, e levando em consideração principalmente o direito à alimentação, faz-se importante destacar os ensinamentos de Maciel (2001, p. 149) de que “a escolha do que será considerado ‘comida’ e do como, quando e por que comer tal alimento, é relacionada com o arbítrio cultural e com uma classificação estabelecida culturalmente”, ou seja, a alimentação não pode ser compreendida apenas como o mero ato de comer, pois ela é também um ato social e um ato cultural (DANIEL; CRAVO, 1989).

Ademais, defende Siqueira (2013, p. 26) que o reconhecimento dos hábitos alimentares enquanto aspectos culturais importantes enseja uma maior proteção a pessoas e grupos que, em face de suas culturas diferenciadas, precisam e merecem ser protegidas, além de que, em função da vulnerabilidade das mesmas, tal reconhecimento pode permitir a inclusão social dessas pessoas ou, ao menos, evitar com que haja a exclusão social delas.

Neste ínterim, as comunidades indígenas enquanto minorias, encontram-se em situação de vulnerabilidade e constantemente sofrem discriminação, porém ainda assim querem guardar o traço objeto de discriminação pois são esses os traços formadores da identidade e cultura dos mesmos (SIQUEIRA; CASTRO, 2017, p. 114), o que coloca em evidência o princípio fundamental da igualdade e não-discriminação, que passaram a ser invocados nas últimas décadas em relação a indivíduos e grupos de indivíduos em situação de vulnerabilidade, mas que, em que pese as bases para atendê-los e protege-los já se encontravam em instrumentos internacionais desde meados dos séculos XX, o combate à discriminação parece um trabalho ou uma luta sem fim (TRINDADE, 2016, p. 44-45), daí a importância do reconhecimento da Corte acerca da dimensão cultural do direito à alimentação dos indígenas como um meio de, ao menos, evitar a exclusão social desses povos.

Acrescenta-se ainda que na sentença do presente caso a Corte mencionou acerca de um apontamento feito pelo Relator Especial das Nações Unidas sobre o direito à alimentação, em que ele explica que:

Compreender o que o direito à alimentação significa para os povos indígenas é muito mais complexo do que o que resulta de uma simples análise das estatísticas sobre fome, desnutrição ou pobreza. Muitos povos indígenas têm suas próprias concepções particulares do que é comida, fome e subsistência. Em geral, é difícil separar conceitualmente o relacionamento dos povos indígenas com os alimentos dos seus territórios, recursos, cultura, valores e organização social.

[...] Seu direito à alimentação geralmente depende muito do acesso e controle sobre suas terras e outros recursos naturais em seus territórios. (CORTE IDH, 2020, p. 89, par. 254)13 – destaque nosso.

Nesse sentido também ensina Sartori Junior (in: BARRETO; ZAGHLOUT; MARQUES, 2019, p. 164):

É possível afirmar, portanto, de maneira enfática e sintética que somente quando estão em seus territórios os povos indígenas encontram meios para sua sobrevivência física e cultural alcançando as condições dignas necessárias para o desenvolvimento de suas vidas. Ademais, levando-se em consideração a importância do território nas cosmovisões indígenas, na medida em que esta é inerente ao seu ser, o ato de privá-los dela acarreta graves violações de direitos humanos.

Assim, vislumbra-se que na sentença em foco observou-se o fato de que o direito à alimentação está interligado com inúmeros outros direitos, em consonância com o que aponta a doutrina, de modo que a violação da propriedade ancestral das comunidades indígenas reunidas na Associação Lhaka Honhat pela presença e exploração de terceiros no referido território, trouxeram inúmeros reflexos para direitos tão essenciais para a própria vida, sustento, saúde, identidade cultural e dignidade dessas comunidades, em reconhecimento inédito pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que até então não havia enfrentado a violação de direitos sociais em seus julgamentos contenciosos e que, a partir da referida sentença, abriu precedentes para que novos debates nesse sentido venham a surgir.

Ademais, necessário destacar que a violação de direitos tão essenciais como o direito à alimentação, à água, ao meio ambiente equilibrado e a identidade cultural acabam acarretando também a violação da própria dignidade da pessoa humana, que se revela como o princípio dos princípios e que deve ser aplicado como parâmetro de interpretação para todos os demais (MORAES, 2019, p. 19), pois se assenta sobre o pressuposto de que cada ser humano desfruta de uma posição especial no universo e possui um valor intrínseco (BARROSO, 2014, p. 14) e cuja função precípua é “atribuir força normativa à Constituição e conferir eficácia máxima aos direitos fundamentais negativos e prestacionais” (WEDY, 2018, 206), onde se incluem o direito à saúde, à alimentação, à moradia, etc., e os quais se identificam com os direitos humanos reconhecidos em diversos tratados internacionais.

Com efeito, tais transgressões acarretam ainda na violação dos direitos da personalidade das pessoas que integram essas comunidades indígenas, pois tais direitos são tão “essenciais ao desenvolvimento e realização da pessoa, que fundados na dignidade da pessoa humana, garantem o gozo e respeito ao seu próprio ser, em todas as dimensões, espirituais e físicas” (FOLLONE; RODRIGUES, 2017, p. 317).

Os direitos da personalidade se referem, assim, a “um círculo de direitos necessários; um conteúdo mínimo e imprescritível da esfera jurídica da pessoa” (PINTO, 1985, p. 87) em que se tutela “o real e potencial físico e espiritual de cada homem em concreto, ou seja, o conjunto autônomo, unificado, dinâmico e evolutivo dos bens integrantes da sua materialidade física e do seu espírito reflexivo, socioambientalmente integrados” (CAPELO DE SOUZA, 2003, p. 117), os quais foram violados de diversas formas no caso em tela.

Essa defesa pautada em uma compreensão mais abrangente sobre os direitos da personalidade, se justificam na medida em que limitar os direitos da personalidade apenas a direitos tidos como individuais, torna a tutela desses direitos ineficaz frente a necessária tutela de um desenvolvimento livre e pleno da personalidade, no qual direitos como o direito à alimentação, o direito à cultura, à educação, à saúde, entre outros, são de precípua importância. Nesse sentido:

[...] em que pese a doutrina majoritária defenda uma tutela dos direitos da personalidade mais restrita e fechada em direitos civis e privados, como vida, integridade física, honra, nome, entre outros, ou seja, a tutela de direitos normalmente identificados como direitos fundamentais de primeira dimensão, tem-se que apenas tais direitos não são suficientes para uma proteção efetiva do pleno desenvolvimento da personalidade e para a concretude da dignidade da pessoa humana, núcleo central dos direitos da personalidade. Nesse sentido, o que se vislumbra é que ausente, nesses direitos denominados como direitos da personalidade, tal como reconhecidos, elementos essenciais para que possa haver o efetivo desenvolvimento da personalidade de forma plena, e que permita assegurar, de forma concreta, o “mínimo” para a real tutela da personalidade humana e de toda a sua potencialidade, fazendo-se imperioso, assim, o reconhecimento de que direitos como educação, moradia, saúde e alimentação constituem requisitos indispensáveis para que se possa defender a tutela dos direitos da personalidade de modo eficaz. (SIQUEIRA; KASSEN; SOUZA, 2020, p. 71)

Deste modo, e compreendendo os direitos da personalidade em uma perspectiva mais abrangente e que considera a importância exercida pelos direitos sociais no pleno desenvolvimento da personalidade das pessoas, tem-se que as violações ocorridas no caso analisado configuram-se, além de violações a direitos humanos e fundamentais, violações também a direitos da personalidade dos membros das comunidades indígenas em foco, o que se acentua ainda mais em razão dos prejuízos que a própria cultura dos mesmos tiveram, ou seja, de uma parte essencial para a vida e desenvolvimento da personalidade de cada pessoa da comunidade, em razão das adaptações que foram obrigados a ter ao longo do tempo para a manutenção de suas vidas no aludido território, como por exemplo a inserção de alimentos industrializados em suas refeições.

Por fim, foi possível vislumbrar, assim, que os apontamentos da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso da Associação Lhaka Honhat trouxerem uma tutela muito mais eficaz do direito desses povos a terra ancestral na medida em que reconheceu a completa interligação existente entre a terra indígena e o exercício de diversos outros direitos desses povos, incluindo o direito à identidade cultural, ao meio ambiente saudável, à alimentação e à água como próprio pressuposto para a vida e liberdade da população indígena, o qual, em que pese não houve o apontamento expresso na sentença proferida, acabou por reconhecer a importância desses direitos para o próprio desenvolvimento livre e pleno da personalidade desses indivíduos, que encontravam-se constantemente violados em razão da não garantia a propriedade ancestral da terra indígena pelo Estado da Argentina, de modo que, ao imputar responsabilidades estatais para a recuperação e manutenção desses direitos, garantiu, via de consequência, a efetividade dos direitos da personalidade desses povos, o que deve ser referendado como louvável e extremamente necessário no contexto da tutela e efetivação dos direitos da personalidade.

Referências

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SIQUEIRA, Dirceu Pereira; CASTRO, Lorenna Roberta Barbosa. Minorias e grupos vulneráveis: a questão terminológica como fator preponderante para uma real inclusão social. Revista Direitos Sociais e políticas Públicas (UNIFAFIBE), v. 5, n.1, p. 105- 122, 2017. Disponível em: http://www.unifafibe.com.br/revista/index.php/direitos-sociais-politicas-pub/article/view/219/pdf. Acesso em: 11 nov. 2021.

SIQUEIRA, Dirceu Pereira; KASSEN, Jamille Sumaia Serea; SOUZA, Bruna Caroline Lima de. Da relação dos direitos sociais com o pleno desenvolvimento da personalidade: uma análise sob a ótica da dignidade da pessoa humana. Revista Plenum Direito Administrativo, ano VII, n. 21, p. 59-74, abr./jun. 2020.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A visão humanística da missão dos tribunais internacionais contemporâneos. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2016.

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WEDY, Gabriel. Desenvolvimento sustentável como direito fundamental e o princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 12, n. 38, jan./jun. 2018. Disponível em: http://dfj.emnuvens.com.br/dfj/article/view/723/939. Acesso em: 09 nov. 2021.


  1. 1 Mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade Cesumar; Especialista em Direito Processual Civil pela UNINTER; Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Maringá, na condição de bolsista PROUNI; Advogada. https://orcid.org/0000-0003-3486-9268. brunacarolinelimadesouza@gmail.com.

  1. 2 Pós-doutorado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino - ITE/Bauru; Especialista Lato Sensu em Direito Civil e Processual Civil pelo Centro Universitário de Rio Preto; Coordenador e Professor Permanente do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Cesumar; Professor de graduação em direito da Universidade de Araraquara; Professor de graduação em direito do Centro Universitário Unifafibe; Professor de graduação em direito do Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos (UNIFEB); Advogado. https://orcid.org/0000-0001-9073-7759. dpsiqueira@uol.com.br.

  1. 3 La Comisión recomendó al Estado: “1. […] concluir prontamente la formalización del proceso llevado a cabo respeto de los [l]otes […] 14 y 55, teniendo en cuenta, además de los estándares interamericanos señalados en el […I]nforme [de Fondo], los siguientes lineamientos: - [L]os peticionarios tienen el derecho a un territorio indiviso que les permita desarrollar su modo de vida nómada; las 400.000 hectáreas que el gobierno ha prometido adjudicarles debe[n] ser continu[as], sin obstáculos, subdivisiones ni fragmentaciones, sin perjuicio de los derechos de otras comunidades. – [R]emover las cercas que han sido puestas dentro del territorio indígena. - [C]ontrolar la deforestación. 2. Otorgar reparaciones por las violaciones al derecho a la propiedad territorial y al acceso a la información derivadas del desarrollo de obras públicas sin llevar a cabo consultas previas ni estudios de impacto ambiental, y sin otorgar a las comunidades los beneficios derivados de las mismas. 3. Asegurar que en la demarcación del territorio y la aprobación de cualquier futura obra pública o concesión que se realice en tierras ancestrales, el Estado lleve a cabo consultas previas, informadas, estudios de impacto ambiental y otorgue los beneficios derivados, de conformidad con los estándares interamericanos”.

  1. 4 Dela participaram: a) pela Comissão Interamericana: Luis Ernesto Vargas, Comissário; Silvia Serrano Guzmán e Paulina Corominas, advogados da Secretaria Executiva; b) pelas supostas vítimas: Francisco Pérez e Rogelio Segundo, membros de Lhaka Honhat, e Diego Morales, Matías Duarte e Erika Schmidhuber Peña, do CELS e c) para o Estado: Javier Salgado, Agente Titular, Diretor de Litígios Internacionais em Matéria Direitos Humanos do Ministério das Relações Exteriores e Culto; Ramiro Badía, Agente Suplente e Diretor Nacional de Assuntos Jurídicos da Secretaria de Direitos Humanos e Pluralismo Cultural da Nação; Siro de Martini, Assessor do Ministério da Justiça e Direitos Humanos da Nação; Pamela Caletti, Promotora Estadual da Província de Salta, e Ana Carolina Heiz, Coordenadora Geral da Promotoria Estadual da Província de Salta.

  1. 5 Artigo 22. Direito de circulação e de residência

    1. Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir em conformidade com as disposições legais.

    2. Toda pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio.

    3. O exercício dos direitos acima mencionados não pode ser restringido senão em virtude de lei, na medida indispensável, numa sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e liberdades das demais pessoas.

    4. O exercício dos direitos reconhecidos no inciso 1 pode também ser restringido pela lei, em zonas determinadas, por motivo de interesse público.

    5. Ninguém pode ser expulso do território do Estado do qual for nacional, nem ser privado do direito de nele entrar.

    6. O estrangeiro que se ache legalmente no território de um Estado Parte nesta Convenção só poderá dele ser expulso em cumprimento de decisão adotada de acordo com a lei.

    7. Toda pessoa tem o direito de buscar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de perseguição por delitos políticos ou comuns conexos com delitos políticos e de acordo com a legislação de cada Estado e com os convênios internacionais.

    8. Em nenhum caso o estrangeiro pode ser expulso ou entregue a outro país, seja ou não de origem, onde seu direito à vida ou à liberdade pessoal esteja em risco de violação por causa da sua raça, nacionalidade, religião, condição social ou de suas opiniões políticas.

    9. É proibida a expulsão coletiva de estrangeiros.

  1. 6 DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS

     Artigo 26.  Desenvolvimento progressivo

      Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados. 

  1. 7 No original: “Afirmó en esa oportunidad que el derecho a un medio ambiente sano “constituye un interés universal” y “es un derecho fundamental para la existencia de la humanidad”, y que “como derecho autónomo […] protege los componentes del […] ambiente, tales como bosques, mares, ríos y otros, como intereses jurídicos en sí mismos, aun en ausencia de certeza o evidencia sobre el riesgo a las personas individuales. Se trata de proteger la naturaleza”, no solo por su “utilidad” o “efectos” respecto de los seres humanos, “sino por su importancia para los demás organismos vivos con quienes se comparte el planeta”. Lo anterior no obsta, desde luego, a que otros derechos humanos puedan ser vulnerados como consecuencia de daños ambientales.”

  1. 8 No original: 240. La Corte entiende que el derecho a la identidad cultural tutela la libertad de las personas, inclusive actuando en forma asociada o comunitaria, a identificarse con una o varias sociedades, comunidades, o grupos sociales, a seguir una forma o estilo de vida vinculado a la cultura a la que pertenece y a participar en el desarrollo de la misma. En ese sentido, el derecho protege los rasgos distintivos que caracterizan a un grupo social, sin que ello implique negar el carácter histórico, dinámico y evolutivo de la cultura.

  1. 9 No original: 289. Por lo dicho, la Corte determina que Argentina violó, en perjuicio de las comunidades indígenas víctimas del presente caso, sus derechos, relacionados entre sí, a participar en la vida cultural, en lo atinente a la identidad cultural, a un medio ambiente sano, a la alimentación adecuada, y al agua, contenidos en el artículo 26 de la Convención Americana, en relación con la obligación de garantizar los derechos prevista en el artículo 1.1 del mismo instrumento.

  1. 10 No original: 168. Por lo expuesto, la Corte determina que el Estado violó, en perjuicio de las comunidades indígenas víctimas en este caso [...], el derecho de propiedad en relación con el derecho a contar con procedimientos adecuados y con las obligaciones de garantizar los derechos y adoptar disposiciones de derecho interno. Por ello, Argentina incumplió el artículo 21 de la Convención en relación con sus artículos 8.1, 25.1, 1.1 y 2.

  1. 11 Artigo 26 -  Desenvolvimento progressivo: Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados. 

  1. 12 Definição contida na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO, em seu preâmbulo, p. 1.

  1. 13 No original: “comprender lo que significa el derecho a la alimentación para los pueblos indígenas es mucho más complejo que lo que dimana de un simple análisis de las estadísticas sobre hambre, malnutrición o pobreza. Muchos pueblos indígenas tienen sus propias concepciones particulares de lo que es la alimentación, el hambre y la subsistencia. En general, es difícil separar conceptualmente la relación de los pueblos indígenas con los alimentos, de sus relaciones con la tierra, los recursos, la cultura, los valores y la organización social.

    [...] Con frecuencia, su derecho a la alimentación depende estrechamente del acceso y el control que tengan respecto de sus tierras y otros recursos naturales existentes en sus territórios.”