https://doi.org/10.18593/ejjl.29220

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DISCURSO DE ÓDIO: O DIREITO BRASILEIRO À PROCURA DE UM MODELO

FREEDOM OF EXPRESSION AND HATE SPEECH: BRAZILIAN LAW IN SEARCH OF A MODEL

Eugênio Facchini Neto1

Maria Lúcia Boutros Buchain Zoch Rodrigues2

Resumo: O artigo analisa como o direito brasileiro vem tratando o discurso de ódio, especialmente no âmbito das redes sociais, e se está aparelhado para solucionar conflitos que, amplificados no ambiente da internet, põem em rota de colisão a liberdade de expressão e os direitos relacionados à personalidade. Partindo-se da defesa da mais ampla liberdade de expressão, procura-se examinar se há e, em caso positivo, quais são, os limites que se podem impor a discursos discriminatórios e ofensivos. Para tanto, analisam-se as experiências jurídicas estadunidense e alemã em relação ao tema, bem como se apontam algumas tentativas regulatórias das mídias sociais digitais na Europa e no Brasil, na tentativa de estabelecer limites ao hate speech, preservando tanto quanto possível a liberdade de expressão. Assim, serão brevemente analisadas as leis promulgadas na Alemanha (NetzDG), França (Loi AVIA), Portugal (Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital) e, no Brasil, aludindo-se ao Marco Civil da Internet e ao Projeto de Lei 2.630/20 (Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet). Do ponto de vista normativo, manifesta-se a opinião de ser necessária a implantação de um sistema de autorregulação regulada dos provedores de serviços de internet, com procedimentos e medidas eficazes a combater violações cometidas nas mídias sociais digitais, objetivando-se o desenvolvimento da necessária cultura de respeito e tolerância em face da diversidade. Do ponto de vista jurisdicional, procurar-se-á indicar qual o modelo seguido pelo direito brasileiro. Aventa-se a hipótese de que embora a jurisprudência do STF após a redemocratização do país tenha sido firme em prol de uma posição preferencial da liberdade de expressão, seguindo a tradição norte-americana, o mesmo não ocorre diante da presença do discurso de ódio. Aqui, o modelo seguido parece ser o alemão, em razão da maior proximidade dos documentos constitucionais vigentes em ambos os países, que a par da ampla proteção à liberdade de expressão, igualmente protegem, até com maior destaque, a dignidade da pessoa humana e seus direitos de personalidade, previsões, estas, ausentes na constituição estadunidense. A pesquisa realizada é de natureza teórica e utilizou procedimento comparativo, com abordagem qualitativa e prescritiva, valendo-se da técnica bibliográfico-documental.

Palavras-chave: discurso de ódio; liberdade de expressão; limites; direito comparado; modelo brasileiro.

Abstract: The article analyzes how Brazilian law has been dealing with hate speech, especially in the context of social networks, and whether it is equipped to resolve conflicts that, amplified in the internet environment, put freedom of expression and rights of personality on a collision course. Starting from the defense of the broadest freedom of expression, it seeks to examine whether there are and, if so, what are the limits that can be imposed on discriminatory and offensive speeches. For this purpose, the US and German legal experiences on the subject are analyzed, as well as some regulatory attempts of digital social media in Europe and Brazil, in an attempt to establish limits to hate speech, preserving as much as possible the freedom of expression. Thus, the laws enacted in Germany (NetzDG), France (Loi AVIA), Portugal (Portuguese Charter of Human Rights in the Digital Age) and in Brazil will be briefly analyzed, referring to the Marco Civil da Internet and the Bill 2,630/20 (Brazilian Law on Freedom, Responsibility and Transparency on the Internet). From a normative point of view, the opinion is expressed that it is necessary to implement a system of regulated self-regulation of internet service providers, with effective procedures and measures to combat violations committed in digital social media, aiming at the development of the necessary culture of respect and tolerance in the face of diversity. From a jurisdictional point of view, an attempt will be made to indicate the model followed by Brazilian law. It is hypothesized that although the jurisprudence of the Supreme Court after the country’s redemocratization has been firm in favor of a preferential position of freedom of expression, following the North American tradition, the same does not occur in the face of the presence of hate speech. Here, the model followed seems to be the German one, due to the closer proximity of the constitutional documents in force in both countries, which, in addition to the broad protection of freedom of expression, also protect, even more prominently, the dignity of the human person and its personality rights, provisions, these, absent in the US constitution. The research carried out is theoretical in nature and comparative in procedure, with a qualitative and prescriptive approach, using the bibliographic-documental technique.

Keywords: hate speech; freedom of expression; limits; comparative law; Brazilian model.

Recebido em 20 de setembro de 2021

Avaliado em 19 de outubro de 2021 (AVALIADOR A)

Avaliado em 13 de outubro de 2021 (AVALIADOR B)

Aceito em 17 de novembro de 2021

Introdução

O homem não basta a si mesmo; constrói-se pela conexão com o outro. É pelo tráfego de ideias que se forma a personalidade humana e se desenvolve a civilização. Daí o reconhecimento da liberdade de expressão como direito fundamental nos ordenamentos jurídicos democráticos. Costuma-se dizer que a liberdade de expressão é uma exteriorização da liberdade de pensamento (OSSOLA, 2012, p. 199). E a liberdade de pensamento se traduz na autodeterminação, com relação à formação livre, autônoma e íntima das concepções existenciais do ser humano (RODRIGUES JÚNIOR, 2009, p. 96).

Da chegada do correio eletrônico nos anos 90 ao surgimento de plataformas de comunicação e serviços de compartilhamento como Orkut, YouTube, Facebook, Twitter e Instagram, houve sucessivo alargamento dos espaços de relação social. As mídias sociais tornaram-se as novas “praças públicas”.

Esses novos canais ampliaram o acesso ao conhecimento e tornaram cada indivíduo um potencial criador de notícias, estimulando a interação. Novas vozes, amplificadas, passaram a ser ouvidas. E, nesse ambiente, ao contrário dos antigos meios de manifestação do pensamento (livros, jornais, rádio, televisão), substancialmente não há filtros ou censuras. Tudo é publicável na rede, onde o único filtro é do próprio emissor da mensagem.

Justamente pela ausência de filtros, a irrestrita exteriorização do pensamento muitas vezes implica violação a outros direitos, acarretando embate de difícil solução. Embora não seja nova, a problemática acentuou-se nos últimos anos, criando problemas especialmente em sociedades cada vez mais miscigenadas e plurais, onde certos grupos distinguem-se por traços identitários ou ideologias comuns.

Dessa diversidade de pensamento surgem naturais tensões. Porém, no ambiente da internet, muitas vezes ocorre uma polarização, dividindo grupos que têm características e orientações diferentes. Essa pluralidade, natural e saudável, muitas vezes descamba para a intolerância com o diverso, sendo este o caldo de cultura em que se manifesta o chamado “discurso de ódio” direcionado a pessoas e a grupos. Isso coloca em rota de colisão valores caros à pessoa humana como a liberdade de expressão, a igualdade e os direitos de personalidade.

O objetivo deste artigo é analisar como os ordenamentos jurídicos contemporâneos estão lidando com o tema, examinando-se especialmente o confronto entre o modelo norte-americano e o alemão, que se posicionam de forma parcialmente diversa. Enquanto aquele confere à liberdade de expressão uma posição preferencial, o modelo alemão, embora atribuindo forte proteção a essa liberdade, procura proteger concomitantemente a dignidade da pessoa humana e seus direitos de personalidade, não reconhecendo uma primazia apriorística à liberdade de expressão. Após o exame do estado da arte no direito comparado, com análise da doutrina, legislação e jurisprudência a respeito do tema, voltar-se-á a atenção ao ordenamento jurídico brasileiro, procurando verificar qual dos dois modelos mais se afina com nossa tradição e cultura jurídica e orienta nossa legislação e jurisprudência.

O trabalho está estruturado da seguinte forma: após exposição da análise da proteção conferida à liberdade de expressão no direito contemporâneo, analisar-se-á o discurso de ódio dentro desse contexto do embate com a liberdade de expressão. Após análise da situação no direito comparado, com especial destaque para os Estados Unidos e Alemanha, serão passadas em revista as mais modernas tentativas de regulação legislativa no direito europeu (com maior destaque para a Alemanha, França e Portugal). Por fim, procurar-se-á identificar em que modelo se enquadra o ordenamento jurídico brasileiro.

A pesquisa realizada é de natureza teórica e utilizou procedimento comparativo, com abordagem qualitativa e prescritiva, valendo-se da técnica bibliográfico-documental.

2 A liberdade de expressão e sua proteção no direito contemporâneo

A liberdade de expressão é um direito básico em todas as democracias liberais contemporâneas. Foi considerada “um dos mais preciosos direitos do homem” pela Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 (art. 11), e “a matriz, a indispensável condição, de praticadamente todas as demais formas de liberdade”, segundo afirmação do Justice Benjamin N. Cardozo ao julgar o caso Palko v. Connecticut, em 1937. Ambas essas passagens foram citadas no paradigmático caso Lüth, pelo Tribunal Constitucional alemão, em 1958 (OLIVIER, 2009, p. 883).

Sua justificativa é antiga. Alguns autores se destacaram na sua defesa, como é o caso de Mill (2001, p. 13), no séc. XVIII, que assim discorre sobre a única justificativa para que o Estado possa restringir a liberdade de alguém:

Que o único propósito pelo qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é prevenir danos a outros. Seu próprio bem, seja físico ou moral, não é uma garantia suficiente. Ele não pode ser legalmente compelido a fazer ou tolerar algo, porque será melhor para ele, porque o fará mais feliz, ou porque, na opinião dos outros, fazê-lo seria sensato ou mesmo correto. Essas são boas razões para protestar contra ele, ou debater com ele, ou persuadi-lo, ou suplicá-lo, mas não para forçá-lo ou puni-lo, caso ele faça o contrário. Para justificar essas medidas, o único tipo de conduta da qual se deseja dissuadi-lo deve ser aquela capaz de produzir mal a outra pessoa. O único tipo de conduta pelo qual alguém é responsável perante a sociedade é aquele que diz respeito aos outros. Na parte que apenas diz respeito a si mesmo, sua independência é um direito absoluto. Sobre si mesmo, seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano (MILL, 2001, tradução nossa).

Trata-se do denominado princípio do dano. Brink (2001, p. 121), reportando-se ao pensamento de Mill, distingue as restrições paternalistas e moralistas da liberdade das restrições da liberdade baseadas no princípio do dano. A restrição de A à liberdade de B é paternalista se for feita para o próprio benefício de B; é moralista se for feita para garantir que B aja moralmente ou não imoralmente. Por outro lado, a restrição de A à liberdade de B é uma aplicação do princípio do dano se A restringir a liberdade de B a fim de evitar danos a alguém que não seja B. Brink concorda com Mill ao referir que uma restrição à liberdade de alguém é legítima se e somente se satisfizer o princípio do dano.

O mesmo autor (BRINK, 2001, p. 122) assim sintetiza as quatro razões elencadas por Mill no segundo capítulo do seu On Liberty, para se opor à censura:

  1. uma opinião censurada pode ser verdadeira;
  2. mesmo se literalmente falsa, uma opinião censurada pode conter verdades parciais;
  3. ainda que totalmente falsa, uma opinião censurada ajuda a evitar que opiniões se tornem dogmas;
  4. como um dogma, uma opinião que não é contestada vai perder seu próprio sentido.

Em razão de seu elevado valor e prestígio, as liberdades de expressão foram erigidas, em praticamente todos os países, à condição de direitos fundamentais,3 que podem ser opostos ao Estado e a terceiros e impõem ações ao Poder Público no sentido de viabilizá-los – as chamadas dimensões negativa e positiva dos direitos fundamentais.

No entanto, é consenso que não há direitos absolutos. O que varia nos ordenamentos jurídicos democráticos é a proteção, mais extensa ou restrita, que essas liberdades recebem quando em confronto com outros valores de igual grandeza, como a igualdade e os direitos de personalidade.

Na experiência brasileira, o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADPF 130/DF (2009), pela pena do Relator Min. Carlos Britto, afirmou que a liberdade de expressão teria o status de um “sobredireito”, aderindo, portanto, à concepção de liberdade preferencial. Todavia, tratou-se mais de uma “ênfase retórica, pois na mesma ocasião reconheceu a existência de limites e condicionantes à liberdade” (SAMPAIO, 2016, p. 2).

Compreender as escolhas jurídicas feitas no tratamento dessas tensões, naturais e inevitáveis, exige um exame da história, das raízes culturais e da ideologia política de cada país.

Há quem sustente que no choque entre a livre manifestação do pensamento e os direitos de personalidade, estes devam ter prevalência, em homenagem à dignidade da pessoa humana – que, afinal, seria a última ratio da proteção da liberdade.

Já outros defendem seja dada preferência prima facie à liberdade de expressão sobre outros direitos de igual grandeza – ainda que isso não signifique estabelecer uma hierarquia prévia entre as normas constitucionais, senão reconhecer-lhe uma posição de vantagem nos casos de conflito com outros bens fundamentais e impor ao intérprete um ônus argumentativo maior frente a hipóteses de restrição (SARLET; WEINGARTNER NETO, 2017).

A maioria dos países oscila entre esses posicionamentos, como se verá.

Um dos problemas mais agudos de nosso tempo diz respeito à amplitude da liberdade de expressão frente ao discurso de ódio, um fenômeno em crescimento nos mais diversos países, especialmente em tempos de grande polarização como o que vivemos. Pode-se dizer que “em todas as relações interpessoais, há uma ‘zona livre para ofensas’, que pode ser maior ou menor”, sendo que “nas redes sociais, essa ‘zona livre’ tende a ser mais ampla”. “Farpas trocadas dentro dessa ‘zona livre para ofensas’ são, em regra, irrelevantes ao direito, salvo situações excepcionais de abuso”, pois “ninguém tem salvo-conduto para violar direitos da personalidade de outrem”, uma vez que “as redes sociais têm poder devastador, capaz de assassinar a reputação de uma pessoa em poucos segundos ou de instigar massas irracionais a realizarem linchamentos virtuais ou até físicos” (OLIVEIRA, 2021, p. 276). O problema, assim, consiste em delimitar essas fronteiras entre o lícito, o aceitável, o reprovável e o proibido. É o tema que se passa a analisar.

2 O discurso de ódio, conceito e contextualização

Hate speech não é uma novidade. Mas, no passado, seu impacto era limitado, pois se restringia “aos círculos de conversa de determinado grupo, sendo ainda limitado pelo alcance, circulação e até mesmo conservação dos materiais escritos, como jornais e revistas” (OLIVEIRA, 2018, p. 349). As redes sociais é que o potencializaram, tornando o tema crucial nos tempos em que vivemos.

O discurso de ódio é um tipo de manifestação que, a despeito de não ter um conceito unívoco, em linhas gerais é descrita como conduta ou fala de cunho discriminatório, motivada por preconceito ou intolerância contra pessoa ou grupo, em função de características identitárias, entre as quais se incluem raça, etnia, religião, gênero, aparência física e orientação sexual ou político-ideológica.4

O exame de algumas normas de direito internacional, incorporadas ao nosso direito, permite que se identifique senão um conceito, ao menos uma noção do que seja discurso de ódio.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, promulgado em nosso país pelo Decreto n. 592, de 06 de julho de 1992, em seu art. 195 disciplina a liberdade de expressão, inclusive prevendo limites, ao passo que o art. 206 proíbe determinadas manifestações, inclusive o discurso de ódio “nacional, racial ou religioso” que ostentem a característica de “incitamento à discriminação, à hostilidade ou a violência”.

A Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 1966 e incorporada ao direito positivo brasileiro pelo Decreto n. 65.810, de 08.12.1969, vai ainda mais longe, restringindo toda difusão de ideias baseadas na superioridade e no ódio racial e banindo toda e qualquer atividade que promova e incite a discriminação racial (HERRERA, 2014, p. 255-256), como se vê da redação do seu art. IV.7

Mais recentemente, com a promulgação da Convenção Interamericana contra o Racismo e Formas Correlatas de Intolerância (com eficácia de Emenda Constitucional, já que aprovada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos de seus integrantes [art. 5º, § 3º, CF]), pelo Decreto Legislativo n. 1, de 2021, passamos a ter um conceito legal de discurso de ódio, pois referida Convenção, em seu art. 1º (6) prescreve que

Intolerância é um ato ou conjunto de atos ou manifestações que denotam desrespeito, rejeição ou desprezo à dignidade, características, convicções ou opiniões de pessoas por serem diferentes ou contrárias. Pode manifestar-se como a marginalização e a exclusão de grupos em condições de vulnerabilidade da participação em qualquer esfera da vida pública ou privada ou como violência contra esses grupos.

No âmbito europeu, a “Decisão-quadro 2008/913”, do Conselho da União Europeia, publicada em 28 de novembro de 2008, sobre a luta contra certas formas de manifestações racistas e de xenofobia por meio do direito penal, assim caracteriza o discurso do ódio:

Serão considerados puníveis como infrações penais determinados atos, tais como:

—A incitação pública à violência ou ao ódio dirigido contra um grupo de pessoas ou um membro de um desses grupos, definido com base na raça, cor da pele, ascendência, religião ou crença religiosa ou origem nacional ou étnica.

—A infração supramencionada, quando realizada através da difusão, por qualquer meio, de texto, imagens ou outro material.

—A apologia, negação ou banalização grosseira públicas dos crimes de genocídio ou contra a humanidade e crimes de guerra, tal como definidos no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (Artigos 6.o, 7.o e 8.o) e crimes definidos no Artigo 6.o do Estatuto do Tribunal Militar Internacional, quando esses comportamentos forem de natureza a incitar à violência ou ódio contra esse grupo ou os seus membros. (CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA, 2008).

Do ponto de vista doutrinário, o discurso do ódio vem sendo identificado principalmente por duas características: o ódio e o dano. Todavia, nem todos concordam em relação ao elemento ódio, pois muitas manifestações ofensivas a grupos identitários podem se dar sem este elemento, como ocorre quando se quer agradar a “sua” audiência mas sem realmente odiar o grupo atingido, ou quando um senso de “normalização” da discriminação é muito difundido na sociedade, a ponto de as pessoas nem perceberem o conteúdo odioso em suas práticas discursivas. Por exemplo, alguns discursos direcionados a uma pessoa ou grupo de pessoas identificadas por características identitárias podem não ter a intenção de incitar o ódio e até ser incapazes de realmente incitar o ódio contra eles, mas mesmo assim poderiam ser identificados como discurso de ódio. Suponha-se que um estudante branco vá até um estudante negro em um campus universitário e o chame de “negro” (lembrando-se que nos EUA, a expressão ‘nigger’ é considerada altamente discriminatória e humilhante), sem ironia ou com uma desastrada tentativa de iniciar uma amizade. Não há ninguém por perto. Não há a intenção de incitar ódio contra ele. Mas é certamente discurso de ódio, segundo Brown (2017a, p. 459/460).

Assim, o elemento ódio pode estar presente – e muitas vezes estará -, mas não como elemento obrigatório, pois o que realmente caracteriza o hate speech é sua capacidade de causar danos às vítimas8. Tais danos são os mais variados, atingindo não apenas indivíduos, mas toda a sociedade, diante da redução da participação dos atingidos no processo democrático. Os danos mais citados são os psicológicos e o déficit democrático (HARFF, 2021, p. 39).

Sarlet (2018) adere a tal visão e a amplia, referindo que “a tendência contemporânea, pelo menos na Europa e na seara de expressiva literatura, também no Brasil, tem sido sufragar um conceito alargado de discurso de ódio”, sendo que a principal razão pela qual se justifica o seu combate é o dano, individual e coletivo, que ele potencialmente acarreta. No plano individual, aponta-se como danos a “depressão, baixa autoestima, tentativas de suicídio, autoexclusão e automutilação pelas pessoas vitimadas”, ao passo que em perspectiva coletiva e difusa, o “desgaste dos laços de pertencimento social, acirrando sectarismos, divisão social, instabilidade política e mesmo ameaças para a democracia.”

O dano causado pelo hate speech é identificado com perfeição por Waldron (2012, p. 4), ao referir que apesar de sermos diversos em etnia, raça, aparência e religiões, embarcamos todos numa grande experiência de viver e trabalhar juntos. Cada grupo deve aceitar que a sociedade não é apenas para eles; mas é também para eles, junto com todos os outros. E cada membro de cada grupo deve poder cuidar de seus interesses, com a garantia de que não haverá necessidade de enfrentar hostilidade, violência ou discriminação. O discurso de ódio prejudica esse bem público (public good) ou torna muito mais difícil a tarefa de mantê-lo.

Seglow (2016, p. 13) adota um posicionamento que pondera os interesses de quem se expressa em face daqueles das vítimas atingidas e refere que o discurso de ódio mina diretamente o autorrespeito dos atingidos e não serve para promover o autorrespeito dos “oradores” (speakers). Por essa razão, entende ser evidente o dano causado pelo discurso de ódio.

Interessante concepção é exposta por Lafer (2020, p. 28-29), ao referir que considera “merecedores de um direito à verdade os grupos vulneráveis, vítimas do discurso de ódio e dos linchamentos virtuais, que acarretam, individual ou coletivamente. É um direito novo, mais abrangente que o direito à informação, merecedor da tutela dos direitos humanos”. E conclui dizendo que “o discurso de ódio e suas mentiras roubam as mentes da cidadania na res publica”.

Vê-se, portanto, que a defesa da repressão a condutas de desqualificação alheia reúne argumentos deontológicos, que veem o discurso de ódio como um mal em si mesmo e entendem que a liberdade deva ser limitada quando o comportamento afronta a dignidade da pessoa humana e viola o direito ao reconhecimento e à igualdade9. Tem-se como necessário coibir ofensas a indivíduos ou grupos, que por sua intensidade possam causar sentimentos de menoscabo ou gerar um silenciamento (chilling effect).10 É levada em conta a possibilidade de reação violenta, criando um ambiente de desrespeito generalizado. Por fim, mas não menos importante, há o receio de que os inimigos da democracia possam se valer dela para chegar ao poder e, após, suprimi-la. Surge, então, a defesa da intervenção estatal para prevenir e combater essas disrupções.

A defesa da liberdade de expressar ideias odiosas de forma quase ilimitada faz mais sentido ao liberalismo, que considera os benefícios que, mesmo assim, ela possa trazer à sociedade (CAVALCANTE FILHO, 2018, p. 69). Por esse prisma, o discurso discriminatório, por mais abjeto que seja, tem a utilidade de jogar luz sobre preconceitos, oportunizando o debate necessário à própria abolição das ideias abjetas mediante o contradiscurso. Ademais, não cabe ao Estado julgar a moralidade das condutas de seus cidadãos. Adeptos dessa visão consideram, ainda, que o paternalismo estatal prejudica o desenvolvimento do indivíduo, enfraquecendo-o; que ressentimentos represados podem resultar em ações violentas ou praticadas de modo velado; e que os restringir pode também estimular um excesso de regras de comportamento censórias, resultando no oposto da liberdade de expressão. Em consequência, defendem uma maior permissividade em relação a esses discursos, mesmo extremistas, de modo a que sejam garantidos.

O problema que se coloca, assim, é se a importante liberdade de expressão deve ser sempre garantida, ainda que ela possa ferir e prejudicar pessoas, grupos e a coletividade, ou se, ao contrário, os danos referidos constituem argumento suficiente para se limitar aquela liberdade. Entendendo-se pela possibilidade de limitação, impõe-se indicar objetivamente as condições que devem estar presentes para que tal se justifique.

Nesse cenário, no âmbito das redes sociais, deve ser repensado o papel dos provedores de aplicações. Afinal, apesar de esse espaço ter sido idealizado para ser ambiente livre de norma, onde a liberdade seria absoluta e os comportamentos pautados somente pela ética individual,11 como qualquer espaço em que haja interação entre pessoas, para além da troca de ideias e da expansão do conhecimento, acaba por servir de palco a abusos e conflitos de interesses.12

Atentas a esse fenômeno – e, logicamente, à possibilidade de sua responsabilização –, as próprias plataformas passaram a agir: em janeiro de 2021, Facebook e Instagram bloquearam perfis de Donald Trump, justificando a atitude com o argumento de que desde as eleições de 2016 o ex-Presidente norte-americano vinha propagando e promovendo desinformação (G1, 2021). Dias depois, foi a vez do Twitter excluir o seu perfil, alegando risco de mais incitação à violência depois que um grupo numeroso de apoiadores dele foram incitados a marchar até o Congresso, invadir o Capitólio e tentar impedir a aclamação da vitória de Joe Biden nas eleições, tendo o incidente resultado em mortes.

No Brasil, em 16 de fevereiro, o Ministro Alexandre de Moraes decretou a prisão em flagrante de um deputado federal, nos autos do Inquérito 4781/DF, pela publicação de vídeo no YouTube, em que o parlamentar defende a adoção de medidas antidemocráticas e o cometimento de atos de violência contra membros da Corte.13 Em 13 de agosto de 2021 foi a vez da prisão de Roberto Jefferson, conhecido político, no âmbito do inquérito contra as “milícias digitais”, por suas postagens na rede estimulando a violência armada. Uma semana depois, no bojo do mesmo inquérito e pelas mesmas razões, foi decretada busca e apreensão domiciliar contra o cantor Sérgio Reis. Em maio passado, milhares de brasileiros saíram às ruas de várias capitais do país, no auge da pandemia da Covid-19, em passeatas a favor e contra o governo federal, havendo, dentre os manifestantes favoráveis, apoiadores de um novo golpe militar. Todos esses fenômenos, de uma maneira ou de outra, estão relacionados com o uso da internet e das plataformas digitais.

A formação de grupos é intermediada por algoritmos digitais, que controlam perfis e aproximam usuários por critérios de afinidade, aumentando a sensação de pertencimento ao mesmo tempo em que excluem quem pensa diferente, criando as chamadas bolhas ideológicas.14 Esse sentimento de “familiaridade” não raro encoraja que a indignação de alguns seja expressa de forma incontida, agressiva e emocional. É quando o debate ultrapassa os limites da simples tensão entre ideias boas e más, transmudando-se em atos de hostilidade e violência moral, que lançados em grupos ou páginas da internet, rompem fronteiras e se eternizam.

Nesse cenário de complexidades, questiona-se em que medida o Estado e os próprios provedores, como entes privados, podem ou devem intervir nesses espaços, originalmente pensados para existir sem quaisquer contenções, e que, ocupados por bilhões de pessoas, tornaram-se cruciais para o exercício da comunicação (VALENTE, 2020, p. 30; SCHREIBER, 2020).

Nesse contexto de dúvidas, cabe o exame da experiência de ordenamentos jurídicos estrangeiros de larga tradição na matéria, especialmente o estadunidense e o alemão, cujos enfrentamentos ao discurso de ódio, embora diversos, influenciam a doutrina e a jurisprudência brasileiras. Costuma-se dizer que o conceito norte-americano de liberdade de expressão está baseado na liberdade negativa, que lhe confere uma posição preferencial que só poderia ser limitada em caso de perigo claro e iminente de desordens públicas. Já o conceito alemão estaria calcado na liberdade positiva, outorgando-se papel preferencial à dignidade da pessoa humana frente à liberdade de expressão (FUENTE, 2010, p. 67). É o que se passa a analisar, com uma breve referência a outras experiências.

3 Análise comparatista, com especial destaque para os direitos estadunidense e alemão: aproximações e distanciamento em relação ao direito brasileiro

No âmbito do direito comparado, relativamente ao embate entre a proteção da liberdade de expressão e o discurso de ódio, costuma-se identificar uma grande divisão entre os Estados Unidos de um lado, e as demais democracias contemporâneas de outro. Segundo Rosenfeld (2003, p. 1523), por exemplo, os EUA conferem ampla proteção constitucional ao discurso de ódio como uma das formas possíveis de expressão, ao passo que tanto as convenções internacionais quanto a legislação de países como Canadá, Alemanha e Reino Unido, proíbem o discurso de ódio e o submetem a sanções penais.15 No caso da África do Sul, é a própria Constitução que o proíbe.16 A França possui uma das legislações mais rigorosas a esse respeito, criminalizando a incitação de ódio racial, discriminação, violência ou negação da existência de crimes contra a humanidade, tudo isso sendo interpretado amplamente como uma espécie de direito a não ser ofendido ou criticado (HALLBERG; VIRKKUNEN, 2017, p. 90).

Na impossibilidade de alargarmos o foco da análise, serão examinadas a seguir as experiências norte-americana e alemã a respeito do tema, pois simbolizam duas posições bem diversas entre si e que são as mais analisadas pela doutrina. Embora sejam países culturamente afins, democráticos e observantes do estado de direito, quanto ao discurso de ódio o enfrentamento legal e jurisdicional do problema aponta para visões diferentes, mais protetiva da liberdade de expressão do lado norte-americano, mais garantidora da dignidade da pessoa humana do lado alemão.17 Tanto uma posição quanto a outra encontram defensores.18

As diferenças quanto ao enfrentamento jurídico entre esses dois países explicam-se pela sua diversa experiência histórica, pois grupos específicos em cada um deles foram objeto de discriminação. Em razão da tragédia do Holocausto, prevaleceu na Alemanha uma elevada sensibilidade relativamente ao discurso de ódio tendo os judeus como alvo. Outros grupos discriminados mais recentemente, como os turcos, não costumam ter a mesma proteção. Já nos Estados Unidos, a escravidão e a segregação racial colocaram a população negra como merecedora de uma mais elevada proteção frente ao discurso de ódio (HAUPT, 2005, p. 302, 334).19

3.1 Estados Unidos

É difusa a convicção de que a ampla proteção conferida à liberdade de expressão nos Estados Unidos é uma “parte integrante da cultura americana, resultado da nossa história e experiência”(SEDLER, 2006, p. 378), encontrando muitos defensores.20

Embora nos Estados Unidos a liberdade de expressão tenha sido consagrada como direito fundamental em 1791, quando entrou em vigor a Primeira Emenda à Constituição, foi só a partir do final da segunda década do século XX que a Suprema Corte passou a se ocupar do tema, com o julgamento dos primeiros casos envolvendo leis penais que proibiam a divulgação de ideias anarquistas, comunistas ou contrárias ao alistamento militar e à entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial (FISS, 2005, p. 20).

Até então predominava a concepção de que não eram possíveis censuras prévias ou restrições à livre manifestação - admitindo-se, porém, que seus autores fossem punidos pelos excessos e abusos cometidos (FACCHINI NETO, 2020). Foi o Justice Oliver Wendell Holmes, em votos dissidentes proferidos a partir de 1919, quem, inspirando-se em Milton e Stuart Mill, começou a delinear a concepção da liberdade de expressão como um “livre mercado de ideias”21 e a estabelecer parâmetros interpretativos para a definição dos discursos que mereceriam maior ou menor proteção.

Concebeu-se, então, a ideia de que o debate não deveria ser interditado, já que as melhores ideias acabariam por se sobrepor. Nas palavras de Holmes Junior (1919), “o melhor teste da verdade é o poder do pensamento competindo no mercado para ser aceito.” Desse modo, as más ideias não deveriam ser silenciadas, mas conhecidas, compreendidas e confrontadas até serem derrotadas, não cumprindo ao Estado regulá-las ou tecer quaisquer juízos de valor.22

No desenvolvimento dessa formulação, a partir da década de 40 a liberdade de expressão passou a gozar de posição preferencial quando em confronto com outros direitos,23 só podendo ser coibida se implicasse algum perigo claro e iminente à segurança e à ordem pública.24 Com isso, passou a ser considerada, até os dias de hoje, um direito quase absoluto, albergando mesmo o discurso de ódio, que só deixa de ser amparado caso tenha o intuito e o condão de provocar imediatamente uma ação25 ilegal.26

Entretanto, é preciso que se tenha em mente que essa visão se insere em uma concepção defensiva, de liberdade compreendida como um direito à não intervenção do Estado na esfera individual.27 Por esse viés, entende-se que cumpre ao Poder Público apenas se abster, e não regular ou interferir, não podendo, salvo em casos extremos, vedar ou restringir discursos por conta de seu conteúdo.28

Isso explica as razões pelas quais a jurisprudência da Suprema Corte estadunidense sobre a liberdade de expressão é baseada, fundamentalmente, na ideia de que não é papel do governo regular o que pode, ou não, ser dito. Salvo em situações em que a fala ou a conduta sejam capazes de incitar ou produzir uma ação ilegal iminente (imminent lawless action), a manifestação é protegida independente de seu desvalor e da ofensividade de seu conteúdo (ANDRADE, 2020, p. 213, 215).

É corrente a lição de que a ampla tutela à liberdade de expressão sob a Primeira Emenda garante um debate robusto sobre todas as questões públicas, sendo imprescindível para manter a democracia ao possibilitar a manifestação de reivindicações concorrentes e a obtenção de contribuições plurais para a tomada de decisões políticas (TSESIS, 2009, p. 497). Além disso, é essencial para o gozo da autonomia pessoal, possibilitando a mais ampla disseminação de toda e qualquer ideia. Perante a Primeira Emenda, não existe “má ideia” e o remédio para a linguagem imprópria é “more speech, and not enforced silence”. É parte da cultura norte-americana que as pessoas se sintam «livres para falar o que pensam», sem precisar temer sanções por dizerem algo que seja ofensivo ou impopular. O governo não pode tomar decisões sobre quais ideias podem ser expressas ou não. Bem ou mal, este é American way (SEDLER, 2006, p. 384).

Em artigo seminal, Post (1991, p. 322, 326-327) havia chamado a atenção para a importância do discurso, tanto para a autodeterminação pessoal quanto para o desenvolvimento deliberativo da opinião pública. Aqueles que defendem a imposição de restrições à propaganda de ódio, Post argumenta, “carregam o fardo de justificar” o valor democrático de tal política. O discurso público é tão crucial para o desenvolvimento de uma vontade coletiva democrática, que “o discurso racista é e deve ser imune à regulamentação do discurso público”.

Em outras palavras, nos EUA, porque o objeto da proteção é a ordem e a paz públicas, e não o direito das vítimas de eventual agressão, somente os discursos capazes de causar reação violenta e imediata (fighting words) (SARMENTO, 2006) podem ser coibidos, ao lado de poucas outras exceções, como o chamado teste de Brandenburgo29 (Brandenburg Test) e a difamação (defamation law) (HARFF, 2021, p. 86). Enquanto as fighting words são normalmente dirigidas diretamente a um indivíduo, o Brandenburg Test aplica-se a discursos direcionados a grupos ou multidões de pessoas (EBERLE, 2004, p. 963).

De fato, admite-se geralmente que a Primeira Emenda significa que o governo não pode restringir a liberdade de expressão por causa de sua mensagem, suas idéias, seu assunto ou seu conteúdo.30 Todavia, ao longo do tempo a Suprema Corte norte-americana criou várias exceções a esse princípio geral,31 como em casos de difamação (libel),32 obscenidade33 ou pornografia,34 commercial speech,35 e linguagem ofensiva36 (offensive language).37 A fonte de todas essas exceções ao princípio da neutralidade governantal frente ao conteúdo do “discurso” encontra-se no caso Chaplinsky v. New Hampshire, julgado em 1942. Chaplinsky é o único caso em que a Suprema Corte manteve uma condenação fundada na expressão de fighting words.38 Chaplinsky era uma Testemunha de Jeová que costumava pregar nas ruas de Rochester, New Hampshire. Apesar da advertência dos policiais de que ele deveria se retirar, uma vez que “a multidão estava ficando inquieta”, ele continuou sua pregação, sendo depois conduzido até a delegacia de polícia, em um esforço para protegê-lo da multidão que se tornara violenta. Chaplinsky então se referiu ao Delegado dizendo que “você é um fascista desgraçado, como todos os agentes públicos de Rochester são fascistas.” O Delegado não reagiu com violência às declarações de Chaplinsky, mas prendeu-o por violar uma lei estadual que estabelecia: “Nenhuma pessoa deve dirigir qualquer palavra ofensiva, irônica ou irritante a qualquer outra pessoa que esteja em lugar público, nem chamá-la por qualquer nome ofensivo ou irônico.” A subsequente condenação de Chaplinsky foi confirmada pela Suprema Corte dos Estados Unidos (GARD, 1980, p. 531-532).

Tema por muito tempo recorrente na história e na jurisprudência norte-americana diz respeito à queima de cruz (cross burning), uma cerimônia tradicional dos seguidores da Ku-Klux-Klan para simbolizar a supremacia branca e o desprezo aos negros. Trata-se de um problema persistente e difícil para o país porque é um vestígio de uma história de escravidão e apartheid. A queima de cruz é um “symbol of hate”, como afirmado ainda em 2003 pela Suprema Corte (caso Virginia v. Black, 538 U.S. 343, 344). Ela é considerada uma espécie de discurso de ódio, porque expressa uma mensagem de ódio baseada em identidade racial (EBERLE, 2004, p. 953).

Essa tradição jurisprudencial libertária, assentada em uma cultura individualista, que confere uma posição preferencial (quase que absoluta) à liberdade de expressão nos EUA tem raízes na sua ideologia política liberal. Embora venha sendo criticada por forte corrente doutrinária39, parte da magistratura40 e setores da própria sociedade – que veem na sua aplicação um desprezo ao princípio da igualdade,41 também inscrito na Bill of Rights –, ainda nãosinais de qualquer alteração de seus rumos (CAVALCANTE FILHO, 2018, p. 123-124).

Alemanha

Na Alemanha, a liberdade de expressão também tem enorme relevância, sendo considerada um dos mais importantes direitos da pessoa humana. Contudo, diversamente do que ocorre nos EUA, é a dignidade que ostenta a condição de valor fundante. Isso fica claro desde a leitura da Lei Fundamental daquele país (LF), que além de tutelar a igualdade e os direitos da personalidade, estabelece limites claros ao exercício das liberdades comunicativas.

Esse reconhecimento da dignidade humana como princípio fundamental estruturante do sistema jurídico constitucional serve de diretriz ao exercício do poder estatal, aproximando-o do direito brasileiro (SARLET; GODOY, 2021, p. 272). Baseado na função integradora que o princípio da dignidade exerce naquele ordenamento, o Tribunal Constitucional42 o utiliza como régua hermenêutica e, embora também atribua à liberdade expressiva uma posição de primazia, vale-se da ponderação entre os direitos fundamentais como instrumento para extrair a norma adequada ao caso concreto. Além disso, o povo alemão, diferente do estadunidense, atribui ao Poder Público a tarefa de promover o bem comum, mediante políticas inclusivas e afirmativas que reconheçam e respeitem o pluralismo característico de uma sociedade multifacetada.

Por esse prisma é que, embora de modo mais restrito do que nos EUA, também lá o Tribunal Constitucional acabou reconhecendo uma certa preferência às liberdades comunicativas.43 Todavia, isso não se aplica ao discurso de ódio, sobre o qual aquela Corte tem tido posições mais rigorosas, haja vista decisões reiteradas no sentido da legalidade de leis que criminalizam a negação44 do Holocausto45 e a proibição de manifestações artísticas que não tenham conteúdo crítico, mas mero objetivo de humilhar ou ofender alguém. Isso porque a sociedade germânica, mais orientada pela valorização da pessoa como membro de uma comunidade, tende a aceitar maiores restrições ao discurso nocivo como forma de proteção a cada um e de reforçar os vínculos interpessoais.

Há inclusive quem critique a regulação protetiva alemã por ser acanhada, enfraquecendo a proteção das vítimas de discurso de ódio, em razão do prazo prescricional muito reduzido para a defesa judicial dos interesses lesados, que seria de apenas dois meses para ajuizar ação por danos morais e para obter medidas processuais de acautelamento, segundo a AGG (Allgemeines Gleichbehandlungsgesetz – Lei geral alemã sobre tratamento igualitário, de 2006, que é igualmente aplicada para o discurso de ódio discriminatório). Referida lei também não autoriza demandas coletivas por organizações não governamentais que atuem contra formas de discriminação (COUNTRY REPORT, 2018, p. 4).

Na sequência, far-se-á uma síntese comparativa entre os dois modelos, com breves referências também a outras experiências.

3.3 Síntese comparativa

Da análise dos dois grandes modelos quanto ao discurso de ódio, percebe-se que se os norte-americanos olham mais para o discurso, aceitando a agressão em prol do fortalecimento do cidadão e na crença de que o ódio será vencido pelo contradiscurso, os alemães têm sua atenção voltada para o ódio, optando por proteger a honra e a dignidade, embora a custo de eventual prejuízo ao debate público (BRUGGER, 2007, p. 194).

Do ponto de vista da estrutura normativa, identifica-se claramente uma distinção entre os dois modelos. Enquanto no modelo norte-americano a liberdade de expressão não encontra nenhum limite na Constituição, cuja Primeira Emenda inclusive veda a edição de leis que possam restringir tal direito, no modelo alemão as limitações à liberdade de expressão encontram-se previstas na própria Lei Fundamental, que contém várias normas indicativas de restrições, sendo a mais importante o art. 5º da GG, que refere os limites decorrentes da necessidade de proteção da honra, da juventude, além de mencionar aqueles derivados das leis em geral (art. 5º(2)).

Comparando os dois modelos, um apoiado no valor liberdade e o outro fundado no valor dignidade, Eberle (2008, p. 2-5, 74-75) refere que a constituição norte-americana é “value-neutral”,46 pois confere liberdade ao cidadão para perseguir seus próprios objetivos e interesses, sem qualquer interferência estatal, inexistindo uma “ordem objetiva de valores” pela qual os cidadãos devam se pautar, como ocorre na Alemanha. Portanto, a ideia americana de liberdade significa “freedom from government”. Uma outra diferença é que na concepção alemã – e europeia em geral –, direitos são acompanhados de deveres, refletindo uma “value-ordered constitution”, o que significa uma concepção de liberdade como “freedom with, not from, government”. Consequentemente, nessa concepção, o Estado é obrigado a agir para proteger a liberdade e a dignidade de todos, ao contrário da visão norte-americana em que apenas se espera que o Estado não viole tais direitos. Nos Estados Unidos, acredita-se que o cidadão, protegido contra o governo, pode melhor perseguir os interesses que escolher em um “mercado livre”. A crença é que “free markets are for the pursuit of economic interests. Free speech is for the pursuit of identity, voice, participation, or governing.” Assim como o free market teria a habilidade de se autocorrigir, salvo excepcionais necessidades de intervenção externa, o free speech igualmente deveria funcionar livremente, sendo absolutamente excepcional qualquer intervenção institucional (seja por leis, seja por decisões judiciais).

Em outra obra, Eberle (1997, p. 894-900) já havia aprofundado o tema das diferentes abordagens nos Estados Unidos e na Alemanha, relativamente à liberdade de expressão frente ao discurso de ódio. Afirmou então que, nesse aspecto, o direito americano é mais individualista e mais zeloso na sua proteção da liberdade de expressão, ao passo que a Alemanha é menos incisiva nessa tutela, pois em caso de conflito com o valor da dignidade humana, opta-se por este. Outra diferença é que o direito alemão exerce uma influência maior sobre a sociedade do que o direito americano, em razão da “ordem objetiva de valores” de que é prenhe a Lei Fundamental alemã, e que compele que a legislação – e sua interpretação e aplicação – leve em conta tal “efeito irradiante”, atingindo não só os atores estatais, mas toda a sociedade. Já a constituição norte-americana apenas constitui a moldura externa dentro da qual se movimenta o governo, sem impor direções aos indivíduos que compõem a sociedade, pois há uma clara divisão entre a esfera pública e a privada. Atores privados são livres para agir para além da influência da constituição, pois suas condutas são reguladas apenas pela legislação e pela common law. Na Alemanha, ao contrário, normas protetoras da privacidade e da reputação são fortes fatores que limitam as liberdades comunicativas. Por exemplo, nos Estados Unidos alguém pode dizer “white son of a bitch, I’ll kill you” (branco filho de uma p., eu te mato) (Gooding v. Wilson, 405 U.S. 518 [1972]), mas ninguém pode chamar outrem de “cripple” (aleijado) na Alemanha (Cripple, 86 BVerfGE 1, 8 [1992]). Ou, então, nos Estados Unidos pode-se fazer uma caricatura envolvendo um conhecido pregador religioso – e politicamente ativo –, simulando sua primeira experiência sexual como tendo ocorrido em uma latrina, bêbado, com sua mãe (Hustler Magazine v. Falwell, 485 U.S. 46 [1988]), mas não se pode fazer uma caricatura de um conhecido político alemão como se fosse um porco copulando com a justiça (Strauss Political Satire, 75 BVerfGE 369 [1987]). Por outro lado, enquanto a Constituição alemã, fundada em valores, enfatiza liberdades positivas e negativas, direitos e responsabilidades, a Constituição norte-americana prevê apenas liberdades negativas e coloca ênfase apenas em direitos. Uma explicação possível que Eberle aventa para essas diferenças reside em que nos Estados Unidos nunca houve uma aristocracia, monarquia, uma religião dominante e apoiada pelo Estado, um sistema educacional unificado ou uma população relativamente homogênea; exatamente o contrário ocorreu na Alemanha em relação a todos esses fatores. Isso influenciou as ideias sobre liberdades comunicativas, como se exemplifica com o sentido de honra pessoal na Alemanha, que é altamente valorizado e reflete o passado aristocrático e feudal alemão. Em conclusão, Eberle refere que essas discrepâncias refletem diferenças culturais importantes: nos Estados Unidos, a ampla e irrestrita liberdade de expressão é o valor preeminente que acomuna os cidadãos e caracteriza uma identidade nacional, radicalmente individualista. Já na Alemanha, as liberdades comunicativas são importantes, mas o valor preeminente é a dignidade humana. Assim, as liberdades comunicativas devem ser exercidas dentro dos limites da ordem social: ao se expressar, o orador deve levar em consideração o impacto do seu discurso sobre os outros e sobre a sociedade.

Excelente, também, a análise comparativa efetuada por Kommers (1980, p. 695) a respeito desses dois modelos. Refere ele que a autoridade não pode licitamente guiar os homens em direção à verdade, pois é o mercado de idéias que a determina. Na teoria americana, “verdades” não podem ser incorporadas ao direito público de forma a legitimar a proibição de qualquer pessoa ou grupo de atacá-las verbalmente ou mudá-las por meios políticos. Na Alemanha, porém, o discurso é juridicamente valorizado por sua capacidade de criar uma comunidade. A visão alemã sustenta que a liberdade de expressão requer a observância de certas tradições de civilidade; exige que as pessoas que participam do fórum público de discussão falem a verdade e o façam com respeito pela honra e dignidade de outras pessoas. Em suma, o objetivo do discurso político na teoria alemã é criar uma tradição de civilidade e uma comunidade de cidadãos responsáveis.

Esses dois modelos básicos – o norte-americano, baseado na liberdade, e o alemão, baseado na dignidade – constituem os dois extremos de uma linha contínua que vai da proteção à liberdade à proteção da dignidade. As democracias ocidentais situam-se entre esses dois extremos, frequentemente combinando princípios extraídos de ambos os modelos. Mas virtualmente todas essas democracias (com destaque para França, Holanda, Dinamarca, incluindo-se também países de Common Law, como Inglaterra, Canadá e Austrália), com nítida exceção dos Estados Unidos, situam-se mais próximas do polo da dignidade do que da proteção irrestrita da liberdade, punindo o discurso de ódio através principalmente da legislação penal. Por essa razão se fala do excepcionalismo do modelo norte-americano (CARMI, 2008, p. 277, 361-363).

Como se verá mais adiante, defende-se, neste artigo, que nossas raízes jurídicas e culturais justificam nossa maior proximidade com o modelo europeu do que com o norte-americano. O retrospecto histórico que nos aproxima dos EUA, com a chaga da escravidão negra, e nos distancia da experiência alemã, por não termos vivenciado o fenômeno do holocausto, não é suficientemente forte para nos fazer pender para o modelo norte-americano.47

4 Recentes tentativas de regulação legislativa no direito europeu

O debate acerca dos limites da tolerância é permanente. Na realidade jurídico-social brasileira, de inúmeras desigualdades, não parece viável o Estado circunscrever-se à posição de mero observador de afrontas à dignidade humana.

Não se pode perder de vista que a liberdade de expressão não é uma garantia absoluta, encontrando um dos seus limites precisamente na vedação do discurso de ódio, pois o Estado não pode olvidar o “efeito silenciador do discurso”, já que “quando há um desequilíbrio de poderes a voz do vulnerável acaba por ser silenciada e a voz do opressor, amplificada” (CAMPOS; BARBOSA; SILVA, 2021, p. 15).

Se a repressão da intolerância não promove, por si, a igualdade e a fraternidade desejadas pelo legislador constituinte, tampouco a só implementação de políticas públicas afirmativas parece ser suficiente para a concretização dessa promessa (SARMENTO, 2006). Tanto é assim que as minorias, com o passar dos anos, têm se fortalecido e organizado para enfrentar preconceitos. Exemplos disso são grupos e movimentos como Black Lives Matter e LGBTQIA+. Ainda assim, o preconceito e a intolerância seguem fazendo vítimas e exigindo respostas dos ordenamentos jurídicos que sejam suficientes para proteger os mais vulneráveis48, devendo os Estados assumir o compromisso com essa defesa, assegurando a eficácia dos direitos fundamentais também no âmbito das relações privadas (FACCHINI NETO, 2003, p. 41-45), legislando, aplicando as normas e implementando políticas públicas que os garantam49.

Conforme alerta Hoffmann-Riem (2021, p. 41/42):

É necessário salvaguardar não só o direito de exercer a liberdade, mas também a proteção contra as consequências do uso da liberdade por outros. Isso inclui também a garantia de proteção contra as consequências danosas do uso das liberdades individuais, ou seja, os direitos de terceiros, mas também a lesão a interesses legais coletivamente significativos. Estes últimos incluem o funcionamento da democracia, uma ordem de comunicação pluralista, proteção contra manipulações, prevenção de assimetrias de poder (...).

No desempenho dessa tarefa, alguns países, especialmente europeus, vêm empreendendo tentativas de regulações legais, diante do que foi assentado pela Resolução 1510 (2006) do Parlamento do Conselho da Europa, sobre “Freedom of expression and respect for religious beliefs”, na qual foi reafirmado o valor da liberdade de expressão de forma a mais ampla possível, mas sublinhando que o discurso de ódio contra qualquer grupo religioso era incompatível com a Convenção Europeia de Direitos Humanos (VENICE COMMISSION, 2010, p. 11).

Ainda nesse ambiente, é de se referir o importante julgamento do caso Belkacem v. Bélgica, em 27 de junho 2017, pela Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH), no qual foi fixada uma clara orientação a respeito. Afirmou-se, na ocasião, a compatibilidade da condenação de Belkacem, cidadão belga, líder e porta-voz de organização muçulmana, por ter divulgado vídeos que incitavam a discriminação de pessoas não mulçumanas. O vídeo fazia apologia da jihad e convocava os internautas para atos de combate. Belkacem recorreu à CEDH, invocando a liberdade de expressão garantida pelo art. 10 da Convenção Europeia. A CEDH, porém, aplicou o disposto no art. 17 da Convenção, entendendo ter havido abuso no exercício da liberdade de expressão, em razão do “caráter ofensivo, discriminatório e violento do conteúdo dos vídeos postados pelo recorrente, direcionado a todos não muçulmanos”, que contrariavam os “valores da tolerância, da paz social e da não discriminação que subjazem e permeiam a Convenção Europeia dos Direitos Humanos.” Referiu-se, também, que “a propagação na internet de discursos apologéticos convocando para atos de violência pode ser classificada como discurso de ódio e que, por tal razão, cada Estado signatário da convenção tem o direito de se opor a movimentos de tal natureza.” Diante de tudo isso, afirmou-se que a condenação de Belkacem era “compatível com a Convenção Europeia, a jurisprudência da corte e as recomendações do Conselho da Europa e da União Europeia, destinadas a combater o incitamento ao ódio, à discriminação e à violência” (SARLET, 2018).

No âmbito mais restrito da União Europeia (integrada por 28 países, ao contrário dos 47 países que integram o Conselho da Europa), ainda não há uma diretiva ou regulamento diretamente voltado à regulação do discurso de ódio na internet, embora possam ser citadas algumas iniciativas da Comissão Europeia “para o combate ao racismo e à intolerância, como é o caso de um código de conduta de 13/5/2016, em parceria com Facebook, Twitter, YouTube, Google e Microsoft, e uma recomendação sobre o tratamento dispensado a conteúdos ilegais na internet, de 1º/3/2018” (SARLET, 2018).

A Alemanha foi pioneira ao promulgar a Lei geral de fiscalização das redes (Netzwerkdurchsetzungsgesetz, mais conhecida pela sua abreviação: NetzDG), aprovada em 2017. Ao fazê-lo, impôs aos provedores de internet obrigação de propiciar aos usuários meios ágeis de reclamação acerca de conteúdos ilícitos, a serem bloqueados ou eliminados mediante decisão fundamentada. Com isso, implementou sistemática similar à conhecida como notice-and-takedown, em que o provedor retira a publicação ofensiva, fundamentadamente, e notifica o autor, em prazos variáveis de acordo com a maior ou menor evidência da lesão. Além disso, prevê situações em que devem ser apresentados relatórios semestrais, sob pena de multa de até cinco milhões de euros (§ 4 (2)).50

No entanto, a lei é alvo de intensas discussões, com aplausos de quem entende bem-vindo o estabelecimento de regras protetivas claras, e críticas dos que anteveem riscos às liberdades comunicativas, como a possibilidade de censura e silenciamento. A avaliação da licitude pelo próprio provedor e os critérios a serem adotados para essa definição estão dentre os aspectos polêmicos. Também se discute a efetividade da regulação em face do alcance extraterritorial das infrações que se destina a coibir.

Na França, em julho de 2019, foi promulgada a Loi Avia. Inspirada na lei alemã, a norma francesa de combate aos conteúdos de ódio na internet já entrou em vigor com os principais dispositivos afastados pelo Conselho Constitucional, que manteve somente os de caráter preventivo, entendendo os demais como ameaças à liberdade de expressão (EICHENBERG, 2020).

Recentemente, em maio de 2021, Portugal promulgou a Carta Portuguesa de Direitos Humanos da Era Digital (Lei 27/2021), visando à “transformação da internet num instrumento de conquista da liberdade, igualdade e justiça social e num espaço de promoção, proteção e livre exercício dos direitos humanos, com vista a uma inclusão social em ambiente digital” (art. 2º). Diferencia-se dos estatutos antes mencionados pela inexistência de sanções às empresas fornecedoras de serviços. A Carta limita-se a determinar ao Estado a promoção de ações voltadas a assegurar os direitos humanos no ambiente digital, define a desinformação e estabelece uma série de direitos aos cidadãos.

Inspirada na NetzDG alemã, entrou em vigor no dia 10 de janeiro de 2021, na Rússia, uma lei de remoção de conteúdos ilícitos, prevendo sanções pecuniárias elevadas aos seus violadores. Outra lei foi promulgada em fevereiro de 2021, com o objetivo de obrigar a remoção de conteúdos tidos como ilegais pela lei anterior, por parte de grandes redes sociais. O toque político que permite vislumbrar o intuito de censura é identificado pelos conteúdos tidos como ilícitos: convocação da juventude para participar de protestos proibidos, exacerbação do número de manifestantes, difusão de falsas informações sobre a violência policial nos encontros.

Resta analisar em qual desses modelos inspira-se o regime brasileiro.

5 O direito brasileiro em busca de um modelo

Entre nós, a liberdade de expressão é direito que vem percorrendo um longo caminho desde a Carta Imperial de 1824. No entanto, embora tenha sido prevista em todas as Constituições, sua consagração efetiva na ordem jurídica ocorreu somente após o fim do regime militar,51 diante do destaque que lhe deu a Carta de 1988, ao lhe dedicar vários incisos do art. ٥º, o art. ٢٠٦, II e III e o art. ٢٢٠. Isso demonstra a opção do constituinte em ressaltar sua importância, constatando sua essencialidade ao desenvolvimento da personalidade humana, demonstrando também o compromisso assumido pelo país em garantir a existência de uma sociedade plural e democrática.

O entendimento segundo o qual se reconhece uma posição de vantagem da liberdade de expressão frente a outros direitos fundamentais parece ser a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, como demonstra o julgamento da ADPF 130/DF, em que foi declarada a não recepção da Lei de Imprensa pela CF/88 e a posição privilegiada atribuída às liberdades comunicativas no âmbito da informação. No acórdão, a Corte foi enfática ao afirmar que na ponderação entre os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa, de um lado, e os direitos à imagem, honra, intimidade e vida privada, de outro, aqueles têm preferência, diante da importância da imprensa livre para a formação do pensamento crítico e para democracia, sem prejuízo de eventuais responsabilizações penal, civil e administrativa, em casos de violação dos demais direitos, além da possibilidade de resposta.52

Em sede doutrinária, Barroso (2008, p. 109) observa que as liberdades de informação, expressão e imprensa encontram limites na própria Constituição, aludindo aos direitos da personalidade, à segurança da sociedade e à proteção da infância e da adolescência.

Todavia, em relação ao discurso de ódio como fator limitador da liberdade de expressão, o STF não dispõe de um volume jurisprudencial suficiente a indicar a presença de padrões interpretativos consolidados.53

Citado em muitos estudos sobre o tema, o julgamento de Siegfried Ellwanger segue sendo o mais representativo dos casos envolvendo discurso de ódio (RHC 82.424/RS). Ellwanger, editor gaúcho que pregava o revisionismo histórico e negava o Holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial, publicando obras antissemitas próprias e de terceiros, foi condenado pelo crime de racismo e teve proibida a distribuição de suas produções. A defesa impetrou habeas-corpus, argumentando que judeus não constituem raça, mas um povo. O STF então deliberou que escrever, editar, divulgar e comercializar livros fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias contra a comunidade judaica, constitui crime de racismo, previsto no art. 20 da Lei 7716/89; e embora o direito do réu à liberdade de expressão não tenha sido invocado no writ, a Corte trouxe o assunto a debate, proclamando, em suma, a prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. Com isso, afirmou que as liberdades públicas não são incondicionais e devem ser exercidas de maneira harmônica, nos limites definidos na Constituição, não podendo servir de salvaguarda a ilícitos contra a honra.

O julgamento em questão divide opiniões sobre a metodologia nele adotada, tendo aberto margem a críticas sobre o uso do juízo de ponderação54 para tipificação penal; a fragmentação teórica dos votos, resultando o julgamento mais da soma de decisões individuais do que a assunção de uma posição pela Corte, além de não ter sido aprofundada a distinção entre a defesa de ideias e incitação (CAVALCANTE FILHO, 2018). No entanto, sem adentrar nesse exame, pode-se afirmar que o STF não agasalhou, sob o manto da liberdade, a conduta identificada como discurso55 de ódio.

Vale, ainda, citar o RHC 146.303/RJ, julgado em março de 2018, no qual o STF manteve a condenação de um pastor da Igreja Pentecostal que havia proferido ataques a crenças alheias, no intuito de rebaixá-las e desmerecê-las, assim como a seus seguidores, pregando o fim de outras religiões e imputando fatos criminosos a seus devotos e sacerdotes. Na ocasião, foi dito que a liberdade religiosa não albergaria esse tipo de manifestação.

A posição preferencial apriorística das liberdades comunicacionais agasalhada pelo STF alcança, ao que parece, o direito de expor pensamentos ofensivos, desde que não tenha seja extremo, com intuito de aniquilar grupo ou indivíduo ou capaz de gerar violência imediata ou atentar contra as instituições democráticas. Conforme referido por Alexandre de Moraes, no bojo do inquérito que atualmente tramita no STF, condutas contrárias ao regime democrático, que preguem violência, arbítrio e desrespeito à separação dos Poderes e aos direitos fundamentais não podem ser aceitas.

Como se vê, embora a jurisprudência do STF sobre o discurso de ódio ainda seja escassa, permite concluir não ser possível afirmar-se que diante dele a Corte constitucional adote a mesma postura que assume ante conflitos envolvendo as liberdades comunicativas em geral (SARLET, 2019). O hate speech, por sua essência desconstrutiva e seu desvalor para o indivíduo e a sociedade, não tem encontrado amparo na jurisprudência brasileira.

Respondendo à indagação inicial sobre a qual dos modelos encontra-se alinhado o ordenamento brasileiro, concordamos com a análise de SARLET (2015), ao referir que

a atribuição de uma posição preferencial à liberdade de expressão não parece, salvo melhor juízo, compatível com as peculiaridades do direito constitucional positivo brasileiro, que, neste particular, diverge em muito do norte-americano e mesmo inglês. Aliás, nosso sistema, nesse domínio, está muito mais afinado com o da Alemanha, onde a liberdade de expressão não assume uma prévia posição fundamental na arquitetura dos direitos fundamentais.

Esse também é o entendimento de Barroso (2020, p. 120), em sede doutrinária, ao referir que o discurso de ódio não é protegido na Alemanha e nem no Brasil. Invocou a decisão do caso Ellwanger para comprovar a afirmação e referiu que “a mesma linha de entendimento foi adotada relativamente a ameaças, agressões e discriminações contra pessoas da comunidade GBGTI+, ao equiparar a homofobia ao racismo.” (ADO 26, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 26.06.201956).57

Do ponto de vista do direito legislado, ainda não temos uma legislação específica sobre discurso de ódio. Todavia, há vários dispositivos legais esparsos que podem ser invocados para, de forma indireta e em conjunto, construir um conceito de discurso de ódio. Além dos dispositivos constitucionais já referidos, que protegem concomitantemente a liberdade de expressão mas também os direitos de personalidade, o pluralismo, a igualdade e banem a discriminação,58 é de se referir especialmente a Lei 7.716/89 (que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor), denominada Lei do Racismo, com as alterações introduzidas pelas Leis 9.459/97, 12.288/10 e 12.375/12, cujo art. 20 considera crime punido com reclusão de um a três anos e multa “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” A pena de reclusão é elevada para dois a cinco anos “Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza” (§2º). Essa pena majorada também é prevista para a conduta de “Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo” (§ 1º). Os incisos do §3º ainda preveem que o juiz possa determinar a busca e apreensão dos materiais ou exemplares utilizados para a prática dos crimes, a cessação das transmissões radiofônicas, televisivas ou da publicação por qualquer meio e ainda a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores.

Por sua vez, o Código Penal, no art. ١٤٠, caput, tipifica como crime “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro”, ao passo que o §3º prevê como injúria qualificada se consistir “na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”.

Outras normas em vigor em nosso direito positivo também ajudam a construir a ideia de que o discurso de ódio é vedado em território nacional, como se conclui pelo exame do art. 13, inc. 5, do Pacto de San José da Costa Rica, do art. 20 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (ambos em vigor no Brasil desde 1992), do art. 4º da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (em vigor no Brasil desde 1969), do art. 3º da Lei 2.889/56 (Lei do Genocídio), do art. 26, I, da Lei 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), do art. 1º, VII da Lei 10.466/2002 (sobre infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme), e arts. 57-A a 57-J da Lei 9.504/97 (Lei das Eleições).59

Por último, deve ser referido que tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2630/2020, popularmente conhecido como “Lei das Fake News”, que propõe um conceito de “crime de ódio” ao referir, em seu art. 3º, que “constitui crime de ódio a ofensa à vida, à integridade corporal, ou à saúde de outrem motivada por preconceito ou discriminação em razão de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade religião, situação de rua e deficiência”. Já no art. ٤º, conceituam-se os “crimes de intolerância”. Enquanto alguns autores o saúdam como forma de distribuir os deveres de proteção dos direitos fundamentais, atribuindo aos provedores a necessidade de se envolverem na formulação de regras de autorregulamentação, e ao poder público a regulação das condutas, outros defendem sua total rejeição, preocupando-se com a transformação das plataformas em entes que não só se autorregulam, como concedem e retiram direitos dos usuários, suprimindo a pluralidade de pensamento.60

É hora de concluir.

6 Considerações finais

O objetivo deste artigo era trazer um panorama das discussões doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas do enfrentamento do discurso de ódio, à luz de algumas experiências estrangeiras e também no Brasil.

Finalizado, reafirma-se a importância e atualidade do tema, demonstrando-se o tamanho do desafio imposto pelo mundo digital às ordens jurídicas: encontrar o justo equilíbrio na proteção aos direitos fundamentais atingidos pelo discurso de ódio. Para tanto, parece que a melhor posição seja aquela que não coloca o Estado como mero expectador do irrestrito embate de ideias e de expressões, mas que, ao contrário, exige uma intervenção regulatória, seja através de legislação, seja através de uma jurisprudência coerente que interprete e densifique normas fundamentais protetivas não só da liberdade de expressão como também de outros direitos imprescindíveis para uma vida digna. Os Estados devem entender que sociedades cada vez mais plurais do ponto de vista social, étnico, religioso e cultural, só podem manter-se agregadas quando se garantir a dignidade das pessoas, em um clima de mínimo respeito mútuo entre os seus cidadãos. Seria claramente preferível se o ódio pudesse ser derrotado pela razão. Mas como isso frequentemente não ocorre, parece não haver alternativa senão combater o discurso de ódio através da regulação, a fim de assegurar um mínimo de civilidade na arena pública.

No caso brasileiro, tem-se que a jurisprudência do STF está adequada às demandas sociais contemporâneas da salvaguarda da liberdade de expressão, da igualdade e dos direitos de personalidade, ao realizar a ponderação entre os princípios. No entanto, também incumbe ao Estado brasileiro a regulação dos deveres das plataformas que propiciam esses canais de comunicação, dada a insuficiência do desenvolvimento de políticas públicas de estímulo à tolerância.

Concluiu-se, também, que embora a jurisprudência da Suprema Corte norte-americana ofereça ensinamentos valiosos, a ordem jurídica brasileira parece se aproximar mais dos valores que inspiram a ordem jurídica alemã, especialmente tal como interpretada pelo seu Tribunal Constitucional.

Defende-se que a exteriorização de ideias e opiniões discriminatórias e preconceituosas deva ter seu grau de ofensividade avaliado circunstancialmente, com base em parâmetros legais mínimos, que, protegendo a liberdade de expressão, a restrinja somente quando violar a dignidade da pessoa humana. Não se trata, portanto, de proibir manifestações ignóbeis, desprezíveis, repugnantes ou minoritárias, por simples desacordo em relação a elas, senão pela gravidade e concretude do dano que possam causar. Nesses casos, entende-se que não basta oportunizar o direito de resposta ou compensação pecuniária: será preciso instituir mecanismos que propiciem ao ofendido uma defesa célere e eficaz.

Na importante arena das redes sociais, que tenderá a servir de palco para a maior parte das manifestações de pensamento no futuro, em detrimento das formas clássicas de extravasamento das liberdades comunicativas, acredita-se que o engajamento dos provedores, em um sistema de autorregulação regulada, que permita a participação ativa dos usuários nesse processo, contribua para o debate acerca do respeito à diversidade e torne mais eficaz a proteção aos direitos de personalidade. Afinal, pelas razões que antes foram expostas, não é possível deixar apenas aos “termos de uso” de entes privados a formatação das regras e sua aplicação.

Certamente equívocos serão cometidos. Acredita-se, contudo, que todos os esforços, sejam legislativos, judiciais ou de políticas públicas, devam mirar no desenvolvimento de uma cultura de respeito à tolerância.

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Endereço posta para correspondência: 90450-171, Eugênio Facchini Neto, Rua Artur Rocha, 669, Bairro Auxiliadora, Porto Alegre, RS.


1 Doutor em Direito Comparado pela Universidade de Florença ns Itália; Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP); Professor Titular do PPGD/PUCRS; Desembargador no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; Orcid: https:orcid.org/0000-0001-9978-886X; eugenio.facchini@pucrs.br

2 Mestranda em Direito no PPGD pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS); Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS); Juíza de Direito no Rio Grande do Sul; Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5025-236X; mlbuchain@uol.com.br

3 Conforme, por todos, Sarlet (2021, p. 512), para quem: “Para uma compreensão geral das liberdades em espécie que podem ser reconduzidas à liberdade de expressão (gênero), e considerando as peculiaridades do direito constitucional positivo brasileiro, é possível apresentar o seguinte esquema: (a) liberdade de manifestação do pensamento (incluindo a liberdade de opinião); (b) liberdade de expressão artística; (c) liberdade de ensino e pesquisa; (d) liberdade de comunicação e de informação (‘liberdade de imprensa’); (d) liberdade de expressão religiosa.”

4 Para aprofundamento do exame das tentativas doutrinárias de conceituação do discurso de ódio, ver Andrade (2020, p. 144-151).

5 “Artigo 19.

1. ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.

2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.

3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:

a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;

b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.” (BRASIL, 1992).

6 “Artigo 20.

1. Será proibida por lei qualquer propaganda em favor da guerra.

2. Será proibida por lei qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou a violência.” (BRASIL, 1992).

7 “Artigo IV.

Os Estados partes condenam toda propaganda e todas as organizações que se inspirem em idéias ou teorias baseadas na superioridade de uma raça ou de um grupo de pessoas de uma certa cor ou de uma certa origem ética ou que pretendem justificar ou encorajar qualquer forma de odio e de discriminação raciais e comprometem-se a adotar imediatamente medidas positivas destinadas a eliminar qualquer incitação a uma tal discriminação, ou quaisquer atos de discriminação com este objetivo tendo em vista os princípios formulados na Declaração universal dos direitos do homem e os direitos expressamente enunciados no artigo 5 da presente convenção, eles se comprometem principalmente:

a) a declarar delitos puníveis por lei, qualquer difusão de ideias baseadas na superioridade ou ódio raciais, qualquer incitamento à discriminação racial, assim como quaisquer atos de violência ou provocação a tais atos, dirigidos contra qualquer raça ou qualquer grupo de pessoas de outra cor ou de outra origem técnica, como tambem qualquer assistência prestada a atividades racistas, inclusive seu financiamento;

b) a declarar ilegais e a proibir as organizações assim como as atividades de propaganda organizada e qualquer outro tipo de atividade de propaganda que incitar a discriminação racial e que a encorajar e a declara delito punivel por lei a participação nestas organizações ou nestas atividades.

c) a não permitir às autoridades públicas nem às instituições públicas nacionais ou locais, o incitamento ou encorajamento à discriminação racial.” (BRASIL, 1969).

8 Para se ter uma ideia de até onde podem ir os haters na sua tentativa muitas vezes orquestrada de denegrir imagens alheias, prejudicando intensa e maldosamente vidas alheias, recomenda-se a esclarecedora e instigante leitura de Mello (2020).

9 No processo civilizatório, percebeu-se que a proteção da liberdade deve ser compatibilizada com preocupações minimamente igualitárias, porque “liberdade social é também a liberdade de ação do mais forte”, ao passo que “a igualdade social é precisamente a igualdade de oportunidades do mais fraco.” (PIEROTH; SCHLINK, 2012. p. 206). Procura-se, portanto, equilibrar liberdade de ação com igualdade de oportunidades, razão pela qual sustenta-se que “o Estado Constitucional busca uma igualdade liberal, ou seja, uma liberdade uniforme (MORLOCK; MICHAEL, 2016. p. 585). Fiss (2005) refere que uma das maneiras de realmente assegurar ampla liberdade igualitária de expressão consiste em, por vezes, reduzir as vozes de alguns para que as de outros possam ser ouvidas.

10 Sobre as razões que causam esse efeito silenciador, verficiar Brink (2001, p. 140/141).

11 Balkin (2018, p. 1.151) sustenta, por exemplo, que o objetivo da liberdade de expressão é proteger e fomentar uma cultura democrática, na qual os indivíduos têm igual oportunidade de participar em questões de interesse público e de influenciar-se mutuamente. O início da Internet potencializou tudo isso, pois a partir dela as pessoas puderam se tornar suas próprias emissoras, falando para um número indefinido de pessoas, não apenas em seus próprios países, mas em todo o mundo. Armados com tecnologias digitais, indivíduos comuns podem contornar os controles da mídia tradicional.

12 As redes sociais estão moldando o nosso tempo. Como referiu Chander (2015, p. 547-548), “the zeitgeist of an age is perhaps more likely to be reflected on Twitter than either the New York Times or CBS.” A hashtag serviu como um democratizador da fala, permitindo que qualquer pessoa tivesse seus pensamentos ecoando em todo o mundo. Assim, a hashtag facilita um comentário de baixo para cima sobre as questões do momento, permitindo a conexão de pensamentos de indivíduos distintos. A hashtag deu às pessoas comuns o poder de envolver o mundo em qualquer tópico que escolherem e a capacidade de ouvir o que seus semelhantes queriam dizer sobre um assunto específico. Isso é ótimo, mas também preocupante, diante do potencial “desvirtuamento da comunicação social, mediante discursos de ódio, campanhas de desinformação (fake news) e o assustador deep fake.” (BARROSO, 2020, p. 83). Esse último autor aporta percuciente reflexão no sentido de que se imaginou que “no mundo interconectado por computadores seria possível a criação de uma abrangente esfera pública digital capaz de viabilizar o exercício da democracia deliberativa, fundada num debate amplo entre pessoas livres e iguais, com oferecimento de razões e prevalência do melhor argumento. Na vida real, porém, verificou-se certa frustração dessas expectativas: até aqui, a internet não encorajou um diálogo racional sobre matérias de interesse coletivo, mas, ao revés, fomentou a tribalização, em que grupos com opinião formada – e muitas vezes radicais – falam para si” (BARROSO, 2020, p. 89).

13 Note-se que em junho de 2020 o STF considerou legítima a abertura e continuidade do inquérito aberto para apurar “comportamento massivo de grupos radicais, orquestrados e financiados com o propósito de desestabilização da democracia e viabilização de uma ruptura institucional. O Tribunal assentou que manifestações que visam a abalar a independência do Poder Judiciário, pela via da ameaça aos membros do STF e a seus familiares, atentam contra os Poderes instituídos, contra o Estado de direito e contra a democracia” (BARROSO, 2020, p. 122).

14 Sobre o controle digital do comportamento e a influência dos algoritmos nas experiências e atitudes das pessoas ver Hoffmann-Riem (2021, p. 61-65).

15 No mesmo sentido, Brugger (2003a, p. 2). Ressalte-se que há críticas doutrinárias quanto à opção exclusiva de usar a legislação penal para combater o discurso de ódio. Brown (2017b, p. 609/610), por exemplo, refere que “there is no earthly reason for that society not to start to look for a plurality of ways of responding to hate speech, and to embrace the idea that the criminal law is not the only way of combating hate speech.”

16 De fato, a seção 16(2) da Constituição da República Sul-Africana refere que a liberdade de expressão não abrange propaganda de guerra, incitação de violência iminência, ou discurso de ódio “fundado em raça, origem étnica, gênero ou religião” – sobre isso, ver Barendt (2012, p. 895, 903).

17 Kommers (1980, p. 693) também refere a preocupação do Tribunal Constitucional alemão em limitar a liberdade de expressão se seu conteúdo apresentar ameaça potencialmente perigosa para a segurança de uma “free democratic basic order”.

18 Defendendo a tradição norte-americana, por exemplo, Weinstein (2017, p. 527) afirma que “hate speech restrictions can undermine the legitimacy of antidiscrimination laws, both in terms of their popular acceptance but even more crucially with respect to the morality of their enforcement.”

19 Baker (2008, p. 22) discorda, por isso, que Alemanha e Europa tenham mais razões históricas do que os Estados Unidos para reprimir mais enfaticamente o discurso de ódio, diante do legado da escravidão afro-americana.

20 Heinze (2006, p. 545), por exemplo, sustenta que o modelo americano é superior e preferível para o combate à intolerância por meios não coercitivos, pregando a abolição das restrições europeias ao discurso de ódio.

21 Na verdade, o termo originariamente utilizado no caso Abrams v. United States, em 1919, não foi livre mercado de ideias (marketplace of ideas), mas sim livre troca de ideias (free trade in ideas). O termo que passou a ser utilizado amplamente - livre mercado de ideias – só foi empregado no voto concorrente do Justice William O. Douglas, por ocasião do julgamento do caso United States v. Rumely, em 1953, segundo Nunziato (2019, p. 1.523).

22 Elena Kagan, em artigo doutrinário escrito quando ainda não integrava a Suprema Corte norte-americana, referiu que, segundo Holmes, não existem ideias verdadeiras ou falsas a priori e abstratamente. Elas só adquirem essas características quando emergem da livre discussão pública, razão pela qual não deve o Estado intervir no debate, decidindo qual ideia é correta, verdadeira ou errônea (KAGAN, 1996, p. 512). Uma boa análise dessa visão pragmática do direito norte-americano é fornecida por CATÃO (2021, p. 257-268).

23 Conforme o julgamento do caso Jones v. City of Opelika.

24 Doutrinariamente, muitos sustentam a necessidade de se abandonar o teste do clear and present danger, substituindo-o por critérios mais objetivos – é o caso de Dow e Shieldes (1998, p. 1218-1219).

25 Sirvam de exemplo os emblemáticos casos NSPA v. Skokie (1977) (que envolvia a pretensão do partido nazista norte-americano de realizar uma passeata na pacata cidade de Skokie, cuja população era 57% judia, dos quais 5.000 eram sobreviventes de campos de concentração. A passeata teria a participação de 30 manifestantes, vestindo o uniforme do partido, que incluía a suástica. A Suprema Corte afirmou que “a habilidade da sociedade Americana de tolerar a defesa mesmo das doutrinas odiosas esposadas pelos autores sem abandonar seu compromisso com a liberdade de expressão e de reunião é, talvez, a melhor proteção que temos contra o estabelecimento de qualquer tipo de regime nazista neste país); R.A.V. v. Saint Paul (1992) (no qual um grupo de racistas queimou uma cruz de madeira no gramado da residência de uma família de negros, para intimidá-los, tendo a Suprema Corte reformado a decisão condenatória e afirmado que “Let there be no mistake about our belief that burning a cross in someone’s front yard is reprehensible. But St. Paul has sufficient means at its disposal to prevent such behavior without adding the First Amendment to the fire”); Snyder v. Phelps (2011) (o caso envolvia uma manifestação de fundamentalistas religiosos em local próximo de onde se realizava o funeral do soldado Matthew Snyder, morto no Iraque. Como Snyder era homossexual, os manifestantes portavam cartazes: “Thank God for Dead Soldiers; Fags Doom Nations; America is Doomed; You’re going to hell”. A Suprema Corte confirmou a sentença absolutória dos manifestantes).

26 Note-se que a primeira vez que a Suprema Corte enfrentou o discurso de ódio foi por ocasião do julgamento do caso Beauharnais vs. Illinois, em 1952. Tratava-se de recurso da condenação criminal de alguém que “promovera a distribuição de panfletos em Chicago, nos quais conclamava os brancos a se unirem contra os negros e evitarem a miscigenação racial, acusando os afrodescendentes de serem os responsáveis por estupros, roubos e outros crimes.” A Suprema Corte manteve a condenação e “validou a idéia de group libel (difamação coletiva)”. Somente por ocasião do caso Brandenburg v. Ohio tal entendimento foi reformado – sobre esses casos, ver Sarmento (2006).

27 Conforme Sarlet (2021, p. 46-47), para quem “os direitos fundamentais são produto peculiar do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de cunho marcadamente individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado.”

28 Admitem-se, contudo, algumas formas de regulação que atendem ao quesito da neutralidade, como quando o governo impede o uso de amplificadores nas vias públicas no horário noturno, ou quando o governo regula uma atividade sem discriminar um ponto de vista específico (view point discrimination), como ocorre quando o governo municipal bane anúncios comerciais no metrô de forma geral, sem se restringir a um conteúdo publicitário específico – nesses termos, Harff (2021, p. 64).

29 O chamado teste de Brandenburg foi fixado no caso Brandenburg v. Ohio, julgado em 1969. Clarence Brandenburg, um líder da Ku Klux Klan, havia convidado um repórter para assistir e filmar uma cerimônia de queima da cruz (cross-burning cerimony), onde foi filmado fazendo apologia da supremacia da raça branca e denegrindo negros e judeus. Pregava vingança contra os líderes da nação que haviam protegido os negros. Foram filmados também uma dúzia de homens encapuçados brandindo armas. Brandenburg foi condenado criminalmente sob uma lei do Estado de Ohio que incriminava a associação criminosa (Criminal Syndicalism Act), mas foi absolvido pela Suprema Corte, que firmou o princípio segundo o qual “as garantias constitucionais de liberdade de expressão e de imprensa não permitem que um Estado proíba a defesa do uso da força ou da violação da lei, exceto quando tal defesa é dirigida a incitar ou produzir ação ilegal iminente e é provável que incite ou produza tal ação ”. De acordo com Chemerinsky (2015, p. 1048-1049), segundo essa reformulação do clear and present danger test, uma punição por incitamento só poderia ocorrer quando estivessem presentes três requisitos: um dano iminente, a clara percepção de que o incitamento produziria uma ação ilegal, bem como a intenção de causar uma ilegalidade iminente. No mesmo sentido Vile (2014, p. 307) e Patrick (2006, p. 49-50).

30 Como afirmado no caso Police Dep’t of Chicago ver Mosely (1972).

31 Nesse sentido, FCC v. Pacifica Foundation, 438 U.S. 726 (1978) e Young v. American Mini Theatres, Inc., 427 U.S. 50 (1976).

32 Como se vê dos casos Gertz v. Robert Welch, Inc., 418 U.S. 323 (1974); New York Times Co. v. Sullivan, 376 U.S. 254 (1964); Beauhamais v. Illinois, 343 U.S. 250 (1952).

33 Conforme casos Paris Adult Theatre I v. Slaton, 413 U.S. 49 (1973); Miller v. California, 413 U.S. 15 (1973); Roth v. United States, 354 U.S. 476 (1957).

34 Para uma ótima análise da questão da pornografia no âmbito da liberdade de expressão e seus limites, no direito comparado, ver Belavusau (2016, p. 185-227).

35 Friedman v. Rogers, 440 U.S. 1 (1979); Virginia State Bd. of Pharmacy v. Virginia Citizens Consumer Council, Inc., 425 U.S. 748 (1976); Valentine v. Chrestensen, 316 U.S. 52 (1942). Sobre o tema da Liberdade de expressão e direito de publicidade, ver VOLOKH (2016, p. 255-290).

36 Erznoznik v. City of Jacksonville, 422 U.S. 205 (1975) e Cohen v. California, 403 U.S. 15 (1971).

37 Segundo Barroso (2020, p. 118), “não merecem proteção da Primeira Emenda, de acordo com a Suprema Corte, obscenidade, falsidade deliberada, crimes contra a honra, incitação ao crime e palavras que incitem o ódio e a violência (fighting words).”

38 Fighting words são palavras que, em seu contexto, tendem a evocar respostas viscerais e violentas, provocando a imediata quebra da paz, como referido no caso Chaplinsky v. New Hampshire (1942) (BRINK 2001, p. 130). As fighting words não são consideradas discurso protegido pela Primeira Emenda; seu eventual pequeno valor social não supera o dano psicológico causado à vítima, levando-se também em conta a potencial resposta violenta causada por elas (GARD, 1980, p. 534).

39 Rosenfeld (2003, p. 1566-1567), por exemplo, afirma que à medida em que o hate speech pode se espalhar quase que instantaneamente por todo o mundo, e que as nações se tornam cada vez mais heterogêneas do ponto de vista social, étnico, religioso e cultural, a necessidade de uma regulação se torna cada vez mais impositiva. Estados não podem mais justificar seu compromisso com a neutralidade, devendo, ao contrário, abraçar o pluralismo, garantir a dignidade das pessoas e esforçar-se para manter um mínimo de respeito mútuo entre os seus cidadãos. Seria claramente preferível se o ódio pudesse ser derrotado pela razão. Mas como isso frequentemente não ocorre, parece não haver alternativa senão combater o discurso de ódio através da regulação, a fim de assegurar um mínimo de civilidade na arena pública.

40 Mesmo dentro da Suprema Corte tais críticas sempre existiram, como se vê do voto dissidente proferido pelo Justice Robert Jackson no caso Terminiello v. Chicago, em 1949. O caso envolvia um padre católico que fora condenado em Chicago porque atacara judeus, comunistas, o Presidente Roosevelt e a primeira-dama, durante uma reunião de cristãos veteranos de guerra. Uma multidão do lado de fora protestara e arremessara pedras contra janelas e portas do auditório. O padre foi preso com base na legislação local que configurava como crime comportamentos que acarretassem a quebra da paz pública por provocar agitações e distúrbios. A Suprema Corte, por uma maioria de 5 a 4, entendeu que tal norma violava a liberdade de expressão, afirmando que a função da liberdade de expressão consiste precisamente em convidar à disputa, ainda que possa criar agitações ou insatisfações. Em seu voto dissidente, Jackson alertou para o perigo de que se a interpretação da Primeira Emenda não fosse feita com um pouco de sabedoria prática, acabaria por converter o Bill of Rights em um “pacto suicida.”

41 Para Fiss (2005, p. 42), “aqueles que favorecem a liberdade frequentemente se referem ao papel que a liberdade de expressão desempenhou assegurando igualdade nos anos 1960, sugerindo que o debate aberto e livre é uma precondição para alcançar uma igualdade verdadeira e substantiva. Mas certamente o contrário também pode ser verdade: que uma política verdadeiramente democrática não será alcançada até que as condições de igualdade tenham sido inteiramente satisfeitas.”

42 Grimm (2015, p. 9-10) pondera que o papel eminente desempenhado pelos direitos fundamentais na Alemanha seria inimaginável sem a jurisprudência da Corte Constitucional Federal.

43 Isso é válido especialmente em relação ao discurso político crítico, no qual a Corte Constitucional alemã permite críticas robustas, agressivas, explícitas e até exageradas, especialmente quando envolve políticos notórios. Todavia, em se tratando de cidadãos sem visibilidade pública, somente uma menor agressividade é admitida (BRUGGER, 2003b, p. 24).

44 Costuma-se acentuar que a posição de cada país frente ao discurso de ódio está muito ligada às peculiaridades de seu passado. Isso seria particularmente nítido na Alemanha, onde se percebe que a abordagem da questão do discurso de ódio está vinculada ao trauma do holocausto. O entendimento legal e jurisprudencial desenvolvido após a segunda grande guerra seria uma resposta a esse capítulo negro da história alemã, proclamando-se coletivamente que o holocausto realmente ocorreu, mas que medidas foram tomadas para que isso nunca mais torne a ocorrer (KÜBLER, 1998, p. 336). Assim, as maiores limitações ao discurso de ódio situam-se precisamente na legislação que penaliza a promoção ou glorificação do nazismo ou negação do holocausto. O §130(3) do Código Criminal alemão prevê que quem publicamente aprove, negue, ou trivialize o holocausto está sujeito a uma pena de até cinco anos de prisão. O discurso de ódio também se estende a insultos a segmentos da população, grupos nacionais, raciais ou religiosos, ou caracterizados por costumes étnicos – nesses termos, Hallberg e Virkkunen, (2017, p. 89). Recentemente, em 03.10.2019, a Corte Europeia de Direitos do Homem julgou o caso Pastörs v. Germany e convalidou a legislação e jurisprudência alemãs quanto a esse aspecto. Udo Pastörs, político de extrema direita, havia feito um discurso em Parlamento estadual, criticando evento realizado naquela casa legislativa em memória do holocausto, fazendo alusão à chamada “mentira de Auschwitz” (Ausschwitzlüge). Foi ele condenado a oito meses de prisão e multa de 6 mil euros por calúnia e difamação contra a memória do povo judeu. A condenação foi mantida em grau de recurso e também pelo Tribunal Constitucional alemão, que rejeitou a alegação de imunidade parlamentar e de exercício de sua liberdade de expressão. Pastörs então recorreu à C.E.D.H., que entendeu que nem a liberdade de expressão, nem a imunidade parlamentar, podem servir de escudo para afastar condenações, penais ou civis, de quem abuse de tais liberdades e privilégios, atentando contra valores fundamentais da ordem constitucional, como democracia, liberdade, igualdade e dignidade humana – nesses termos e sobre esse caso, ver FRITZ (2021, p. 11 e 12).

45 Legislação que proíbe a negação do holocausto existe também na França. Em 1991 teve repercussão a expulsão, de uma Universidade francesa, do professor de literatura Robert Faurisson, que sistematicamente negava a existência das câmaras de gás. Em 2006, pelo mesmo fato, foi condenado a três meses de prisão, além de multa de 7.500 euros. Interessante notar que em 1980 Noam Chomski, judeu norte-americano e com um pensamento crítico que nitidamente o coloca do outro lado do espectro ideológico de Faurisson, assinou uma petição pública em defesa da liberdade de expressão de Faurisson. Trata-se de um exemplo concreto de defesa da liberdade de expressar pensamento que odiamos – sobre esse episódio, ver Shina (2009, p. 120, 122).

46 Brugger (2003a, p. 39), aliás, refere que nos Estados Unidos, a perda de neutralidade por um ente governamental é considerada um pecado capital.

47 Essa também foi a conclusão a que chegaram Harff e Duque (2020, p. 292): “Neste sentido, o Brasil parece estar mais alinhado à tradição alemã, em comparação com a norte-americana (...).”

48 Sarlet e Sarlet (2020, p. 143), por exemplo, sustentam que a ausência de regulação do discurso de ódio implica potencial violação da dignidade da pessoa e de seus direitos de personalidade, razão pela qual defendem uma “autorregulação regulada”. Em outra obra e outra parceria, Sarlet e Hartmann (2019, p. 97) retoma o tema, explicando que autorregulação regulada significa que “é aceitável que as plataformas possuam alguma autonomia na gestão da manifestação, mas um controle externo não pode ser descartado”. Também sobre autorregulação da internet e os direitos fundamentais, ver Brown (2016, p. 339-350).

49 As características de ausência de prévia censura, instantaneidade, ubiquidade e capacidade de imediata e infinita reprodução das redes sociais a tornam um campo fértil e perigoso para o discurso de ódio e das fake news. A auto-censura foi abandonada, diante de sua ineficácia. Além dela, diferentes abordagens são discutidas: responsabilidade objetiva ligada a uma obrigação de monitorar, responsabilidade subjetiva ligado a um mecanismo de “notice-and-take-down” e comportamentos aderentes a códigos de conduta adotados voluntariamente (KAESLING, 2019, p. 160). O problema em se optar pela via exclusiva da autorregulação pelas redes sociais reside nas falhas que elas podem cometer, como no caso da decisão equivocada do Facebook de retirar de sua plataforma a célebre imagem da menina Kim Phuc correndo nua após ataque de napalm ocorrido na Guerra do Vietnam, ou do aplicativo iFood, de excluir de cardápios nomes de pratos típicos da culinária portuguesa como “Batatas ao Murro” e “Punheta de Bacalhau”, por considerá-los ofensivos – Sobre esses episódios, ver Holter (2016) e Alves (2021).

50 Sobre essa lei, ver Benkler, Faris e Roberts (2018, p. 362); Heldt (2019, p. 337); Eifert (2018, p. 79); Bonifacic (2020); e Faleiros Júnior (2021, p. 209).

51 Barroso (2020, p. 111-113) refere que “a censura no Brasil vem de longe”, pois já após a vinda da família real para o Brasil, em 1808, foi criada a Imprensa Régia, cuja junta diretora tinha a missão de examinar todos os textos a serem publicados, devendo proibir a impressão de “papeis e livros cujo conteúdo contrariasse o governo, a religião e os bons costumes”. Mais adiante, durante o Estado Novo foi criado o Departamento de Imprensa e Propaganda em 1939, com competência de “fazer a censura do teatro, cinema, funções recreativas e esportivas, radiodifusão, literatura social e política e da imprensa”. Mais recentemente, durante a ditadura militar de 1964 a 1985, a censura atingiu fortemente todos os setores. Apenas durante a vigência do AI 5 (1968-1978), “cerca de 500 filmes, 450 peças, 200 livros e mais de 500 letras de música sofreram veto”.

52 Também há quem defenda a superação da tese da posição preferencial, sob pena de a primazia conferida à liberdade de expressão transformar, pela via hermenêutica, direitos invioláveis em direitos merecedores de proteção reduzida quando em conflito com os da coletividade (SOARES; MANSUR 2020, p. 41).

53 Além dos referidos no texto, podem ser citados os seguintes casos em que a questão também foi debatida, inclusive no âmbito de inquéritos que tramitaram no STF, embora nem sempre enfrentada diretamente em razão de algum tema prejudicial (como imunidade parlamentar, por exemplo): STF: Inquérito 3.590. Rel. Min. Marco Aurélio. Investigado: Marco Antônio Feliciano. J. em 12.08.2014; Mandado de Injunção n. 4733. Rel. Min. Edson Fachin. Impetrante: Associação Brasileira de Gays, lésbicas e transgêneros – ABGLT. Impetrado: Congresso Nacional. J. em 13.06.2019; STF: Inquérito n. 3.706. Rel. Min. Roberto Barroso. Autor: Ministério Público Federal. Investigado: Jair Messias Bolsonaro; STF. Inquérito 4.694. Rel. Min. Marco Aurélio. Autor: Ministério Público Federal. Investigado: Jair Messias Bolsonaro. J. em 11.09.2018.

54 Dentre os críticos, Sarmento (2006) cita Virgílio Afonso da Silva (2005) e Cattoni (2006). Nesse sentido, também, v. a crítica endereçada por Streck (2018, p. 38-41), ao referir que “afirmar que existe uma ‘colisão’ entre valores, neste caso, implica dizer que, ao mesmo tempo, a conduta de Ellwanger era legal e ilegal (...) [Ocorre que, segundo esse jurista] no caso Ellwanger, não havia nada a ser ponderado.”

55 Em passagens do acórdão, constou que “o preceito fundamental da liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito fundamental não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalecem os princípios da dignidade da pessoa humana e da dignidade jurídica”. O Min. Celso de Mello foi enfático a respeito: “a liberdade de expressão não pode amparar comportamentos delituosos que tenham, na manifestação do pensamento, um de seus meios de exteriorização, notadamente naqueles casos em que a conduta desenvolvida pelo agente encontra repulsa no próprio texto da Constituição, que não admite gestos de intolerância que ofendem, no plano penal, valores fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana, consagrados como verdadeiros princípios estruturantes do sistema jurídico”. Já o Min. Jobim referiu que “o ódio racial causa lesão ao objetivo de uma política de igualdade, que é uma política democrática. A igualdade, portanto, é precondição para a democracia e o objetivo da liberdade de opinião” – uma boa análise do caso e suas repercussões encontra-se em Schaffer (2020, p. 73-88).

56 Nesta Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão o STF reconheceu o discurso de ódio como limitador do exercício da liberdade de expressão de cunho religioso, no contexto da criminalização da prática de homotransfobia. Da ementa daquele julgamento, proferido em sede de repercussão geral e, portanto, com efeito vinculante para toda a jurisdição pátria, constou expressamente: “O discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações e manifestações que incitem a discriminação, que estimulem a hostilidade ou que provoquem a violência (física ou moral) contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, não encontra amparo na liberdade constitucional de expressão nem na Convenção Americana de Direitos Humanos (Artigo 13, § 5º), que expressamente o repele.” Análise desse julgamento e das questões ali suscitadas encontra-se em Amparo (2020, p. 167-182).

57 Também Mendes e Branco (2020, p. 279) assim se posicionam, ao afirmar que “o discurso de ódio, entre nós, não é tolerado. (...) Contra o discurso de ódio (...) há de se considerar, ainda mais, o efeito inibidor dessas práticas à plena participação dos grupos discriminados em atividades da sociedade civil.”

58 O art. 3º, IV, da C.F. refere ser objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; o art. 5º refere que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, ao passo que seu inc. XLI refere que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” e o inc. XLII prevê que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível”.

59 Todas essas normas foram referidas na pesquisa efetuada por Luccas, Gomes e Salvador (2020, p. 77).

60 Corforme posicionamentos divergentes em Borges, Longhi e Martins (2021, p. 35-51), bem como em Laurentis e Ferreira (2020).