https://doi.org/10.18593/ejjl.28582

DIREITO SOCIAL À EDUCAÇÃO E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER UMA ANÁLISE A PARTIR DE PROPOSIÇÕES LEGISLATIVAS

SOCIAL RIGHTS TO EDUCATION AND VIOLENCE AGAINST WOMEN: AN ANALYSIS FORM LEGISLATIVE PROPOSITIONS

Karina Gularte Peres1
Valmôr Scott Junior2

Resumo: Este estudo trata da associação entre o Direito Social à Educação e o enfrentamento da violência contra a mulher, com base em proposições legislativas do Congresso Nacional que se ocupam desses assuntos. A pesquisa busca evidenciar qual(is) concepção(ões) de educação estão presentes nessas propostas, bem como verificar como é disciplinado tal Direito Social nos referidos documentos. Justifica-se essa escolha pela compreensão de que a violência contra a mulher tem raízes sociais e culturais, assim como pelo fato de que a educação pode ser uma ferramenta útil na reconstrução de signos subjacentes ao tema e, ainda, pela percepção de que o enfrentamento da violência contra a mulher precisa ser (re)visitado e atualizado, tendo em vista as estatísticas relacionadas à matéria. Acerca da metodologia, a pesquisa compatibiliza com o método de abordagem indutivo e se caracteriza como uma pesquisa bibliográfica e documental, utilizando-se da análise de conteúdo para o exame das proposições legislativas. Como resultados, identificaram-se categorias pertinentes às abordagens de educação e às funções da educação. Destacaram-se, relativamente à primeira categoria, Abordagens de educação, a educação como Direito Social, como instrumento para a qualificação profissional e como via para a mudança cultural. Na segunda categoria, Funções da educação, identificou-se que a educação é invocada, principalmente, no intuito de prevenir a violência contra a mulher, de reabilitar os autores de tal violência e de emancipar as mulheres em situação de violência.

Palavras-chave: Direito social; Educação; Violência contra a mulher; Proposições legislativas.

Abstract: This study deals with the association between Social Right to Education and combating violence against women, based on National Congress proposed legislation about these issues. The research seeks to highlight which idea(s) of education stands by these proposals, additionally, verify how this social right is regulated in these documents. This choice is justified by the comprehension that violence against women has social and cultural roots, and also by the fact that education can be a useful tool to rebuild social signs implied in this issue, moreover, by the perception that combating violence against women must be revisited and updated, in the view of the statistics about the subject. As for the methodology, it consists of a bibliographic and documentary research, and uses inductive approach as a method and content analysis as a technique, to examine proposed legislation. The results identified categories concerning to education approaches and purposes, and also to the tools mentioned in the documents. Regarding the first category, Education approaches, the highlights were the ideas of Education as a Social Right, as an instrument for professional qualification and as a way for cultural change in the second category, Education purposes, it was identified that education is requested, mainly, in order to prevent violence against women, to rehabilitate the perpetrators of such violence and to emancipate victimized women.

Keywords: Social right; Education; Violence against women; Proposed legislation.

Recebido em 30 de agosto de 2021

Avaliado em 15 de março de 2022(Avaliador A)

Avaliado em 16 de março de 2022 (Avaliador B)

Avaliado em 23 de março de 2022 (Avaliador C)

Aceito em 20 de abril de 2022

Introdução

Este estudo é delimitado pela utilização de processos educativos para o enfrentamento da violência contra a mulher, com base nas proposições legislativas do Congresso Nacional acerca do assunto, assim como as respectivas ferramentas de efetivação, quando anunciadas no teor das proposições.

Parte-se da premissa de que a violência contra a mulher tem base em fatos culturais e sociais, construídos paulatinamente em cada contexto histórico, identificando-se no Direito Social à Educação uma possibilidade de enfrentar esse tipo de violência. A violência contra a mulher não se configura apenas em função de quem está em situação de violência, mas principalmente por suas razões, que são circunstâncias relativas ao gênero dessa vítima.

A Lei nº 11.340/2006 traz a definição de uma das formas desse tipo de violência no seu artigo 5º, dizendo que “configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Essa Lei, doravante referida por Lei Maria da Penha (LMP), também definiu diferentes tipos de violência, quais sejam: física, relativa à violação da integridade corporal; psicológica, a qual acarreta dano emocional ou afim; sexual, representada por violação da dignidade sexual; patrimonial, que resulte em redução do patrimônio da ofendida; e moral, traduzida em crimes contra a honra (BRASIL, 2019, p.669).

Importa mencionar que, ao tratar sobre violência contra a mulher, o termo “mulher” não pode ser padronizado, universal. O atendimento e proteção das diversas mulheres, equitativamente, também é um desafio que a legislação, as políticas públicas e a própria sociedade precisam superar. Do contrário, produz-se um parâmetro reducionista. No entanto, infelizmente, é recorrente a percepção de que “as mulheres brancas se tornam o referencial do que se entende por ‘mulheres’” (ALMEIDA; PEREIRA, 2012, p. 51), por exemplo.

É necessária a articulação do gênero com outros critérios – como classe, raça, orientação sexual etc. – sob pena de serem produzidos conceitos como aqueles que mantiveram as mulheres, social e legalmente, submissas por tanto tempo, pois não eram consideradas sujeitos de direitos. Nesse contexto, observa-se que “foram os homens os autores das grandes construções conceituais e das normatizações jurídicas e, por meio de um universalismo que negou a diferença dos sexos, mascarou-se o privilégio masculino sob a pretensa neutralidade dos sujeitos” (COLLING, 2017, p. 31). Assumir, atualmente, que o termo “mulher” define uma categoria universal, constituiria um paralelo com a negação referida acima, a qual constituiu um cenário que preteriu as mulheres, e cujos efeitos prejudiciais permanecem.

O desafio ultrapassa o exercício de instituir normas. Entretanto, a legislação é uma das ferramentas disponíveis para a reconstrução de signos culturais e sociais, a qual, por sua vez, é suscetível de mitigar as diferenças de gênero. Por isso, observar os caminhos trilhados pelo processo legislativo é uma das maneiras de identificar a condução do enfrentamento da violência contra a mulher, bem como de avaliar os efeitos das medidas que dele decorrem.

A esse propósito, os diferentes tratamentos dispensados a tal violência no decorrer da história, inclusive pelo Direito (FERNANDES, 2015, p. 37), bem como as oscilações percebidas no papel social da mulher ao longo dessa trajetória, permitem a suposição de que exista relação entre violência contra a mulher e educação. Nesse sentido, cogita-se que na educação possam ser encontradas ferramentas úteis ao enfrentamento da violência contra a mulher.

Nesse âmbito, compreende-se que garantir o Direito Social à Educação pode prevenir a incidência da violência, em um primeiro momento. Para tanto, faz-se referência não apenas à educação de potenciais autores de violência, para que não se tornem autores de fato, mas também com a educação de vítimas em potencial, no sentido de permitir o discernimento sobre sua condição em situações muitas vezes naturalizadas e marginalizadas como violência, ou ainda para a conscientização do seu direito à não-violência.

A educação, por outro lado, pode ser invocada em conjunto com ações posteriores a episódios violentos, tanto para reeducar o autor da violência e evitar sua reincidência, quanto para emancipar a pessoa em situação de violência e permitir-lhe o retorno a uma vida com respeito à dignidade humana.

Nesta pesquisa, a ideia de educação coaduna-se à noção de socialização apresentada por Berger e Luckmann (1985, p. 14 ). Para os autores, fazer parte da sociedade significa participar de um processo dialético contínuo de assimilação dessa sociedade, compreendendo-a de forma objetiva – institucionalizada – e também subjetiva – dotando-a de sentido (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 16). Isso ocorre, também, pela via institucional, mas não apenas por ela.

Por isso, a educação referida neste projeto de pesquisa é abrangente, incluindo aprendizados externos a instituições de ensino, ou seja, além da educação formal. Isso porque considera-se que a educação é composta por todo ensinamento ou experiência, no sentido de operar na formação de sua compreensão e interpretação dos fenômenos. Portanto, vai além do conjunto de conteúdos transmitidos na escola, devendo ser contextualizada socialmente.

A educação está entre os direitos sociais garantidos explicitamente pelo artigo 6º, da Constituição Federal (BRASIL, 2019, p. 26 ). Porém, apesar da garantia formal inquestionável, nem sempre é garantida sua efetivação – situação comum a vários direitos. Por isso, para concretizá-los, é necessário utilizar de ferramentas de efetivação, ações que objetivam a realização de um interesse público. Exemplo disso são as políticas públicas, geralmente elaboradas e propostas pelo Poder Executivo e sujeitas à aprovação pelo Poder Legislativo (LA BRADBURY, 2016, p. 32).

Ainda, convém explicar as etapas da pesquisa, em seção dedicada à exposição da metodologia adotada, com destaque para a técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 2011, p. 27). Por fim, apresentam-se os resultados obtidos e procede- se a seu exame e discussão.

Identificou-se que as proposições selecionadas abordam a educação em três aspectos principais: relacionando-a à cidadania, utilizando-a como instrumento para a qualificação profissional e buscando promover uma mudança cultural. Percebeu- se, também, que a educação é bastante invocada para a prevenção da violência contra a mulher, assim como para a reabilitação de seus autores e para a emancipação das vítimas. Por último, observou-se que os textos examinados variam quanto ao nível de descrição das ferramentas de efetivação de suas propostas.

O estudo apresenta como pergunta de pesquisa: Considerando as proposições legislativas do Congresso Nacional que buscam enfrentar a violência contra a mulher, de que modo o Direito Social à Educação é abordado e que ferramentas são disciplinadas para colaborar com ações efetivas para combater esse tipo de violência?. O objetivo, por sua vez, consiste em verificar, a partir das proposições legislativas oriundas das duas casas do Congresso Nacional – Câmara dos Deputados e Senado Federal – que buscam enfrentar a violência contra a mulher, de que modo é abordado o Direito Social à Educação e que ferramentas são previstas para colaborar com ações efetivas para combater esse tipo de violência.

1 Direito Social à Educação no enfrentamento da violência contra a mulher

Os direitos sociais perpassam diversas áreas, sendo explicitamente previstos na Constituição Federal brasileira os direitos à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção da maternidade e à infância e à assistência aos desamparados (BRASIL, 2019, p. 26). Nem sempre tais direitos foram garantidos por meio de sua positivação, motivo pelo qual se entendeu pertinente iniciar este capítulo pela apresentação resumida do histórico dos direitos sociais, incluindo sua abordagem em outros países e em tratados internacionais e, principalmente, sua relação com a noção de cidadania.

1.1 Direito Social à Educação: contextualização

Este estudo trabalha com a ideia de que a educação pode contribuir com o enfrentamento da violência contra a mulher em três aspectos principais: prevenir a ocorrência da violência; reeducar o autor da violência, evitando sua reincidência; e emancipar a pessoa em situação de violência, permitindo-lhe seu retorno a uma vida com dignidade.

Portanto, a educação de todos é importante para o combate a essa violência. Não obstante, nessa percepção é válido apontar que dificultar o acesso das mulheres à educação, sendo elas vítimas em potencial, traz prejuízo substancial a dois dos três pontos acima apresentados. Primeiro, prejudica a prevenção do evento, pois é possível que algumas mulheres desconheçam a realidade de não- violência a que têm direito. Depois, impede ou obstaculiza a emancipação que lhes permite se afastar do ambiente violento a que são submetidas.

A educação ocupa lugar de destaque entre os direitos sociais, no entendimento de Oliveira (1995, p. 41), que a considera um pré-requisito para a aquisição e exercício dos demais direitos. Ele exemplifica citando a eventual dificuldade e decorrente prejuízo do analfabeto ao exercer o direito ao voto o que, destaca-se, pode ocorrer desde o acesso reduzido a informações para escolher seu candidato até a operacionalização do ato. Para o autor, a equiparação a pré- requisito faz com que a educação ultrapasse o status de direito social e seja vista como componente estrutural da democracia. Justificam-se, portanto, políticas públicas educacionais que tenham como objetivo a garantia – também – de um segundo direito, ou até da própria cidadania.

É por isso que se pode entender que negar a educação a alguns também é lhes negar outros direitos. Era o que acontecia no período colonial com as mulheres, consideradas parte do grupo que compunha o imbecilitus sexus (sexo imbecil), do qual também faziam parte as crianças e os doentes mentais , de acordo com Ribeiro (2000, p. 79). Essa visão sobre as mulheres, que predominava na época, tornava seu acesso à educação, na perspectiva mais otimista, restrito:No período colonial, as mulheres tiveram acesso restrito ou nulo à escolarização, podendo em alguns casos estudar em casa, com preceptores, ou em alguns conventos visando a vida religiosa. [...] a sociedade na época concebia a mulher para o casamento, ou para a vida religiosa, ou para o trabalho doméstico e escravo, práticas que precisavam de pouca ou nenhuma educação escolar (STAMATTO, 2002, p. 2-3).Além de ser o primeiro direito social referido no art. 6º da Constituição Federal de 1988, é nessa constituição que a educação passa a ter uma seção própria, a qual abre o capítulo que trata da educação, da cultura e do desporto. Oliveira (1999, p. 44) menciona que a Constituição atualmente vigente inova em sua redação ao explicitar os direitos e, ainda mais, por prever ferramentas de efetivação daquilo que dispõe.

O que é inovador, para além de uma maior explicitação dos direitos e de uma maior precisão jurídica, evidenciada pela redação, é a previsão dos mecanismos capazes de garantir os direitos anteriormente enunciados, estes sim, verdadeira novidade. São eles o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção e a ação civil pública. [...] Este detalhamento legal permite, do ponto de vista jurídico, amplo apoio a ações, até mesmo, por parte de associações da sociedade civil, visando garantir o Direito à Educação (OLIVEIRA, 1999, p. 65).O estabelecimento dos deveres do Estado acerca da educação demonstra a importância e a razão da caracterização desse direito como um direito social. Conforme anteriormente discutido, no que tange aos direitos sociais, predominam as prestações positivas. O aporte e a responsabilização do Estado importam porque a educação é necessária à promoção da dignidade e à fruição de uma liberdade real na sociedade, o que também são fatores que indicam seu status de direito social.

Esse aspecto do direito à educação também está positivado, não apenas na Constituição Federal, quando menciona que a educação visa ao pleno desenvolvimento da pessoa e ao seu preparo para o exercício da cidadania (BRASIL, 2019, p. 26), mas também na Lei 9.394/1995, por exemplo. A norma, comumente referida por Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDBEN), aponta como finalidades da educação o pleno desenvolvimento do educando e seu preparo para o exercício da cidadania (BRASIL, 2019, p. 591).

A Constituição Federal de 1988 e a LDBEN também fazem referência à substancialidade da educação na qualificação do indivíduo para o trabalho (BRASIL, 2019, p. 25; BRASIL, 2019, p. 591). Nesse sentido, cabe mencionar crítica de Santos (2019, p. 4), a respeito da lógica empregada nas escolas, a qual é predominantemente voltada ao trabalho, ao consumo e, associadamente, ao ideal de abundância como sinônimo de felicidade. Para a autora, o foco da educação escolar deve “partir de uma dinâmica distributiva de saberes, culturas, conhecimentos e competências” (SANTOS, 2019, p. 4). Sem prejuízo da acertada concepção, cabe observar que é justo que a capacitação para o trabalho seja um objetivo a ser perseguido pela educação, visto que é a principal maneira pela qual se atinge algum poder aquisitivo, o qual está fortemente conectado à liberdade – objetivada pelos direitos sociais – nas sociedades capitalistas, infelizmente.

A Constituição Federal de 1988, precisamente em seu art. 206, ainda elenca oito princípios norteadores da prática educacional. Nesse ponto, a constituição atual difere das anteriores, cujos princípios apresentados se traduziam em mandamentos mais definidos. Diversamente, na Constituição Federal de 1988, eles cumprem principalmente um papel balizador, em alguns casos requerendo a produção de leis.

Neste contexto, o princípio da igualdade de condições para acesso e permanência na escola merece destaque. La Bradbury (2016, p. 54) salienta, no entanto, que tal igualdade não pode ser apenas formal, sob pena de não se verificar a materialização do direito.

A igualdade formal é cumprida pela positivação constitucional, a qual impede que as instituições explorem aspectos discriminadores para a admissão ou manutenção de estudantes. Assim, o que a igualdade formal determina é que todos os estudantes sejam igualmente tratados. No entanto, o mesmo tratamento nem sempre garante a igualdade material ou substancial. Isso porque, para alcançar a igualdade de fato, pode ser necessário um tratamento desigual para pessoas desiguais, que lhes permita participar do processo educativo em real igualdade de condições (LA BRADBURY, 2016, p. 54-55).

Um exemplo que pode ilustrar a questão da igualdade material é trazido na Síntese de Indicadores Sociais (SIS), publicada pelo IBGE (2019). Ali, constata-se que quase metade (49,4%) das pessoas que não concluem o ensino fundamental fazem parte dos 20% da população com menor renda (IBGE, 2019). Formalmente, pode- se dizer que essa questão está atendida, no sentido de que a gratuidade também é um dos princípios que regem a educação, o qual está descrito no inciso IV (BRASIL, 2019, p. 26). Porém, tais dados demonstram que existe uma desigualdade substancial baseada na renda.

Até o presente momento, este estudo ocupou-se, basicamente, da educação formal, providenciada e respaldada pelo Estado, sendo dever do Poder Público. Contudo, ao introduzir a presente pesquisa, considerou-se que a educação abrange quaisquer processos que resultem em alguma forma de aprendizado. Nesse sentido, aproxima-se do conceito de socialização, proposto por Berger e Luckmann (1985, p. 30).

Segundo os autores, o indivíduo entende o mundo e o seu lugar por meio da socialização, a qual acontece em dois momentos principais. A socialização primária refere-se ao processo pelo qual o indivíduo se torna membro da sociedade. Trata-se de um processo cognitivo e emocional, pois a realidade a que pertence é apresentada por seus entes próximos, com quem tem um vínculo carregado de sentimentos. Essa realidade é interpretada, intuitivamente, como inevitável, intrínseca, e não como resultado de um processo social conduzido por pessoas (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 31).

Diversamente, a socialização secundária é intermediada por pessoas designadas para tal tarefa em função de uma relação de trabalho. Isso torna manifesto, para o indivíduo, que aquela troca tem o escopo específico de educá-lo a respeito de algo, o que permite delimitá-la espaço e temporalmente, o que não ocorre na socialização primária.

Além disso, é relativamente fácil anular a realidade das interiorizações secundárias. A criança vive quer queira quer não no mundo tal como definido é pelos pais, mas pode alegremente deixar atrás o mundo da aritmética logo que sai da aula. Isto torna possível destacar uma parle da personalidade e da concomitante realidade, fazendo-as só ter importância para a situação funcional específica em questão. O indivíduo estabelece então uma distância entre seu eu total e sua realidade, de um lado, e o eu parcial funcionalmente especifico e a realidade deste de outro lado (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 190).

De acordo com o exemplo, a socialização secundária está relacionada à concepção de educação formal, ou seja, a educação propiciada pelas instituições. Com efeito, diz-se que a socialização secundária insere o indivíduo em áreas específicas dentro daquele mundo assimilado no processo de socialização primária. Por isso, tem-se que a socialização secundária pressupõe um indivíduo já socializado. Contudo, o processo de socialização é dialético e constante, de modo que nunca está definitivamente concluído.A socialização primária termina quando o conceito do outro generalizado (e tudo quanto o acompanha) foi estabelecido na consciência do indivíduo. Neste momento é um membro efetivo da sociedade e possui sujetivamente [sic] uma personalidade e um mundo. Mas esta interiorização da sociedade, da identidade e da realidade não se faz de uma vez para sempre. A socialização nunca é total nem está jamais acabada (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 184).Diante dessas dimensões de socialização, percebe-se que a experiência pessoal se traduz em aprendizados, motivo por que se entende que a educação não está presente apenas no ambiente escolar ou assemelhado. Da mesma forma, tem- se que a educação ocorre continuamente na vida dos indivíduos, adentrando espaços diversos. Por isso, importa fomentar valores como o respeito e a valorização do outro, por exemplo, nas várias esferas de atuação do ser humano, para que nenhum motivo seja mais passível de justificar o desprezo que culmina em diversas formas de violência.

2 Encaminhamentos metodológicos

A pesquisa foi constituída por duas etapas interligadas. A primeira etapa é relativa ao referencial teórico, em que, inicialmente, foram abordados os direitos sociais, em especial, o Direito Social à Educação. Nessa esteira, apresentaram-se definições de direitos sociais propostas a partir de diferentes perspectivas, bem como se demonstrou a concepção constitucional do Direito Social à Educação.

As proposições legislativas, objeto de análise, remetem à pesquisa documental, inserindo este trabalho no campo da pesquisa empírica em Direito, de acordo com Reginato (2017, p. 193-194). Com efeito, Mezzaroba e Monteiro (2019, p. 120) definem a pesquisa empírica como aquela em que o objeto é observado em suas dimensões concretas, em consideração à experiência fática que permite realizar inferências.

Tais proposições foram analisadas para compreender como o Congresso Nacional aborda a educação no âmbito do combate à violência contra a mulher.

Essa operação indica o cunho qualitativo da pesquisa e a compatibiliza com o método de abordagem indutivo, em que “a partir, por exemplo, da observação de um ou de alguns fenômenos particulares, uma proposição mais geral é estabelecida” (MEZZAROBA; MONTEIRO, 2019, p. 84). A técnica utilizada para o exame desses documentos foi a análise de conteúdo.

No que concerne à análise documental e à análise de conteúdo, Bardin (2011, p. 52) evidencia algumas das diferenças entre as atividades relativas a cada uma. A principal distinção reside no objeto: a análise documental se dedica ao exame de documentos, ao passo que a análise de conteúdo visa às mensagens. A autora também afirma que a análise documental objetiva a representação condensada da informação, para consulta e armazenamento, enquanto a análise de conteúdo busca identificar indicadores que levem a inferências acerca de realidades não perceptíveis na superfície da mensagem.

No caso da análise de conteúdo, pode-se dizer que o trabalho consiste em uma interpretação menos superficial e posterior organização da mensagem, de acordo com as inferências possíveis conforme os critérios – categorias, índices e indicadores etc. – utilizados.

[...] atualmente, e de modo geral, designa-se sob o termo de análise de conteúdo: Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens (BARDIN, 2011, p. 48).

Os documentos selecionados foram analisados, inicialmente, a partir de uma leitura flutuante e, após, por meio de uma leitura exploratória. Posteriormente, deles foram extraídos os trechos que atendem ao objetivo geral da pesquisa: analisar, a partir das proposições legislativas oriundas das duas casas do Congresso Nacional – Câmara dos Deputados e Senado Federal – que tratam sobre violência contra a mulher, de que modo é abordado o Direito Social à Educação e que ferramentas são previstas para efetivação das propostas.

A partir das proposições legislativas, após a leitura flutuante e a leitura exploratória, foram definidos os excertos que servem de base para apoiar a compreensão sobre a temática desta pesquisa, os quais são identificados, na técnica aplicada, como unidades de registro. Esses excertos foram organizados em categorias, criadas com base no corpus em conjunto com o referencial teórico (BARDIN, 2011, p. 37).

Antes de avançar, convém mencionar o conceito de proposição oferecido pelo art. 100, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, segundo o qual “proposição é toda matéria sujeita à deliberação da Câmara” (BRASIL, 1989).

Os documentos a serem analisados, inicialmente, foram definidos pelo tipo de proposição: com base no art. 59 da Constituição Federal, que dispõe sobre o processo legislativo, foram escolhidas apenas as proposições tendentes a originar algum dos tipos normativos citados em tal dispositivo. Dessa forma, as informações documentais foram buscadas em proposições passíveis de gerar emenda à Constituição; Lei complementar, ordinária ou delegada; medida provisória; decreto legislativo; e resolução (BRASIL, 2019, p. 45).

Portanto, as proposições analisadas, além de trazerem os temas violência contra a mulher e educação, enquadram-se como Proposta de Emenda à Constituição (PEC), Projeto de Lei Complementar (PLP), Projeto de Lei Ordinária (PL), Projeto de Decreto Legislativo (PDL), Projeto de Resolução (PRC) ou Medida Provisória (MPV). Com efeito, tais espécies são referidas pela Câmara dos Deputados como principais . Os tipos mencionados alcançam proposições cuja classificação especifica sua origem, e por isso têm designação ligeiramente diferente conforme a Casa em que estejam tramitando
Também se inclui o Projeto de Lei de Conversão (PLV) de medida provisória.

Sendo assim, a lista completa de proposições a serem utilizadas no presente estudo é a que segue: a) Proposta de Emenda à Constituição (PEC); b) Projeto de Lei Complementar (PLP); c) Projeto de Lei Ordinária (PL); d) Projeto de Lei do Congresso Nacional (PLN); e) Projeto de Lei da Câmara dos Deputados (PLC); f) Projeto de Lei do Senado Federal (PLS); g) Projeto de Decreto Legislativo (PDL); h) Projeto de Decreto Legislativo do Congresso Nacional (PDN); i) Projeto de Decreto Legislativo da Câmara dos Deputados (PDC); j) Projeto de Decreto Legislativo do Senado Federal (PDS); k) Projeto de Resolução da Câmara dos Deputados (PRC); l) Projeto de Resolução do Senado Federal (PRF/PRS)
m) Projeto de Resolução do Congresso Nacional (PRN); n) Medida Provisória (MPV); o) Projeto de Lei de Conversão (PLV).

Dito isso, explica-se que, além da restrição referente ao tipo de proposta, esta pesquisa delimitou-se sob três recortes: (a) Recorte referente à fonte: seleção de proposições legislativas disponibilizadas nos sites oficiais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, precisamente, por meio da ferramenta de pesquisa avançada fornecida por cada site; (b) Recorte referente ao tema: seleção de proposições que tratam, conjuntamente, sobre violência contra a mulher e sobre educação; (c) Recorte temporal: seleção de proposições que compreendem o período entre 2001 e 2019.

O recorte temporal da pesquisa foi definido considerando a forma de coleta de dados: a busca foi limitada, inicialmente, ao começo da disponibilidade pública de proposições legislativas nos sites oficiais das duas casas do Congresso Nacional, o que ocorreu em 2001, quando da criação do Sistema de Informações Legislativas – Módulo Tramitação (Sileg)
. Com efeito, a proposição legislativa mais antiga encontrada é datada de 2001, sendo este o termo inicial. O termo final será o ano de 2019, por anteceder imediatamente o período de análise dos dados. Diante disso, serão observados todos os documentos correspondentes a esse intervalo, excetuando-se eventuais resultados que demonstrem inconsistência com o objetivo da busca.

Na sequência, procedeu-se ao detalhamento da busca de informações, realizada separadamente em relação a cada Casa do Congresso Nacional, iniciando-se na Câmara dos Deputados e, após, no Senado Federal.

A partir da leitura desses documentos buscou-se verificar que abordagens do Direito Social à Educação são utilizadas para o enfrentamento da violência contra a mulher, a fim de classificar os dados em categorias criadas durante a leitura das informações coletadas, conforme já explicado.

Resumidamente, foram coletados os documentos que compunham as proposições legislativas pertinentes ao assunto e analisados com vistas a identificar as formas de conceber a educação que estivessem ali presentes, utilizando-se a análise documental e aplicando técnicas pertinentes à análise de conteúdo.

3 Resultados e discussão

Após a busca das proposições legislativas disponíveis, por meio da consulta nos sites oficiais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, foi realizada a seleção de acordo com critérios determinados nos encaminhamentos metodológicos. A pesquisa realizada no site oficial da Câmara dos Deputados retornou 17 resultados; e no site oficial do Senado Federal, por sua vez, foram encontrados nove documentos que atendem aos critérios da busca.

Para melhor compreensão, introduz-se a apresentação dos resultados. A Tabela 1, composto pelas proposições a serem efetivamente examinadas, conjugando-se aquelas que já estiveram tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal – e por isso apareceram separadamente, nas duas listas de resultados. A data de apresentação informada corresponde à proposição originária, identificada pelo destaque em negrito.

Tabela 1 – Proposições legislativas selecionadas para análise.

Designação CD

Designação SF

Ementa

Apresentação

PL 5246/2001

PLC 23/2004

Dispõe sobre a inclusão da questão da “violência contra a mulher” como parte dos temas transversais integrantes dos parâmetros curriculares nacionais. NOVA EMENTA: Insere na Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o art. 27-A, para indicar um conjunto de temas transversais que devem ser contemplados nos currículos plenos do ensino fundamental e médio.

29/08/2001

PL 4559/2004

PLC 37/2006

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, e dá outras providências.

NOVA EMENTA DA REDAÇÃO FINAL: Cria

mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção de Belém do Pará; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera os Decretos-Lei nºs 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal e 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984; e dá outras providências.

03/12/2004

PL 6484/2006

Acrescenta artigo à Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que “estabelece as diretrizes e bases da educação nacional” para indicar um conjunto de temas transversais que devem ser incluídos nos currículos plenos do ensino fundamental e médio.

16/01/2006

PL 2431/2007

Dispõe sobre a inclusão, nos currículos escolares, de conteúdos e práticas que contribuam para o combate da violência doméstica contra a mulher, ampliando a efetividade da Lei Maria da Penha, Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, notadamente no tocante à implementação dos incisos V, VIII e IX de seu art. 8º.

13/11/2007

PLS 74/2012

Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes de bases da educação nacional, para incluir nos currículos do ensino fundamental e médio conteúdos relativos à prevenção da violência contra a mulher, a criança e o idoso.

29/03/2012

PLS 216/2013

Altera a Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006, que Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, para determinar a reserva de vagas gratuitas nos cursos técnicos de formação inicial e continuada, oferecidos pelos Serviços Nacionais de aprendizagem, para mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

04/06/2013

PL 10018/2018

PLS 233/2013

Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para determinar reserva de vagas em cursos oferecidos pelos Serviços Nacionais de Aprendizagem e pelo Sebrae às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

17/06/2013

PL 6010/2013

Altera o art. 27 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para explicitar a necessidade dos conteúdos curriculares da educação básica enfatizarem como diretriz o respeito a igualdade de gênero e na prevenção e enfrentamento a violência doméstica e contra pessoas em situação de vulnerabilidade.

17/07/2013

PL 2805/2015

Dispõe sobre a inclusão anualmente, na programação pedagógica das escolas da rede de educação básica do País, do debate sobre o tema do combate à violência contra a mulher.

27/08/2015

PL 3795/2015

Altera a redação dos artigos 32 e 36 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para inserir novas disciplinas obrigatórias nos currículos dos ensinos fundamental e

médio.

01/12/2015

PL 5001/2016

PLS 9/2016

Acrescenta inciso V ao art. 23 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para estabelecer, como medida protetiva de urgência à ofendida, a frequência do agressor a centro de educação e de reabilitação. NOVA EMENTA: Altera o art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para estabelecer como medidas protetivas de urgência frequência do agressor a centro de educação e de reabilitação e acompanhamento psicossocial.

02/02/2016

PL 4620/2016

Acrescenta parágrafo ao art. 23 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, para assegurar aos dependentes em idade escolar de mulher vítima de violência doméstica ou familiar, em caso de mudança de domicílio por ordem judicial, o direito à matrícula em escolas de educação básica mais próximas da nova residência.

03/03/2016

PL 8390/2017

“Altera a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, para estabelecer a medida protetiva de frequência a centro de educação e reabilitação do agressor.”

24/08/2017

PL 1619/2019 (NºAnterior: PL 8599/2017)

PL 1619/2019

Acrescenta dispositivo à Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, para dispor sobre a prioridade da mulher que sofre violência doméstica à vaga para seus filhos nos centros de educação infantil. NOVA EMENTA: Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para garantir a matrícula dos dependentes da mulher vítima de violência doméstica e familiar em instituição de educação básica mais próxima de seu domicílio.

14/09/2017

PL 598/2019

PL 598/2019

Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para incluir conteúdo sobre a prevenção da violência contra a mulher nos currículos da educação básica.

12/02/2019

PL 1909/2019

Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir conteúdos relativos à prevenção da violência contra a mulher como temas transversais, bem como adicionar o tema dos direitos humanos e cidadania no rol dos componentes curriculares obrigatórios da educação básica.

02/04/2019

PL 4264/2019

Acrescenta dispositivo à Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, a fim de dispor sobre o acesso prioritário para as mulheres em situação de violência doméstica e familiar nas ações integradas de orientação, recolocação e qualificação profissional implementadas pela União, Distrito Federal, Estados e Municípios.

06/08/2019

PL 5418/2019

Dispõe sobre Política Nacional de Prevenção e de Combate à Violência contra a Mulher na educação superior pública federal (Pnae-M).

08/10/2019

PL 5509/2019

Altera a redação do § 9º do art. 26 da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir conteúdos relativos à prevenção de todas as formas de violência contra a mulher como conteúdo curricular de caráter transversal na educação básica.

15/10/2019

PL 6115/2019

Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, para promover a capacitação profissional de mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

20/11/2019

Fonte: os autores.

Apresentadas as proposições legislativas selecionadas para análise, sua pretensão e situação, procede-se à leitura exploratória de seus textos iniciais, que abrangem a proposta legal e a justificativa do autor. A partir dessa leitura, emergem categorias e subcategorias que servem de auxílio para compreender como o Congresso Nacional aborda a educação em suas proposições legislativas, bem como quais são as ferramentas previstas para efetivar essas propostas.

3.1 Contextualização da categorização das informações

Após a etapa de preparação do material, foram extraídos trechos que fazem referência à educação, enquanto tema. Então, mesmo que a educação estivesse representada por outras palavras, considerou-se que o segmento era uma unidade de registro válida (BARDIN, 2011, p. 134-135).

Após essas etapas, foi realizada a categorização das unidades de registro destacadas do corpus de análise. No caso, tais unidades são as menções ao tema “educação” presentes nos excertos isolados do material analisado. Tais excertos são, por sua vez, unidades de contexto, necessários para compreensão dos segmentos categorizáveis (BARDIN, 2011, p. 24).

Nessa esteira, convém resgatar o problema de pesquisa: considerando as proposições legislativas do Congresso Nacional que buscam enfrentar a violência contra a mulher, de que modo o Direito Social à Educação é abordado para combater esse tipo de violência?

O referido problema de pesquisa pode ser estratificado, resultando em duas indagações: como o Congresso Nacional aborda a educação nas proposições legislativas e que ferramentas de efetivação são previstas nas mesmas proposições. No que concerne à primeira indagação, há duas diferentes dimensões que geram categorias. A primeira corresponde à abordagem de educação adotada, ou seja, que concepção de educação se revela no material analisado. A segunda dimensão de análise se associa à função da educação no enfrentamento da violência contra a mulher. Tais dimensões se traduzem em duas grandes categorias: Abordagens de educação e Funções da educação.

Cada uma delas abriga três subcategorias. Na categoria Abordagens de educação, foram adotadas as subcategorias Educação como Direito social; Educação para a qualificação profissional; e Educação para a mudança cultural. Na categoria Funções da educação, estão as subcategorias Prevenção; Reeducação; e Emancipação. Todas as categorias e subcategorias serão explicadas oportunamente.

A seguir, serão apresentados pontualmente alguns excertos que ilustram essas categorias e subcategorias. Trata-se dos excertos considerados mais significativos, que melhor elucidam os motivos da classificação adotada.

Diante dessas considerações, passa-se à contextualização e análise das informações de acordo com as categorias e subcategorias, assim como à discussão das proposições conforme a categorização proposta.

3.1.1 Categoria 1: Abordagens de educação

A primeira categoria, denominada: Abordagens de educação, divide-se nas subcategorias: Educação como Direito Social; Educação para a qualificação profissional; e Educação para a mudança cultural.

Figura 1 – Categoria 1: Abordagens de educação.

Fonte: os autores.

Embora as denominações adotadas busquem ser autoexplicativas, procede- se a breves explanações acerca de cada uma dessas subcategorias, seguidas pelos excertos pertinentes.

3.1.1.1 Subcategoria 1: Educação como Direito Social

A Educação como Direito Social considera excertos em que a educação aparece como um componente da cidadania. Nesse caso, a educação é manifestada como um direito a ser garantido ao indivíduo em virtude de sua participação na sociedade e, também, com o propósito de possibilitar que essa participação seja efetiva.

O primeiro excerto apresentado faz parte da justificação do PL 5246/2001 ( BRASIL, 2001, p. 49.510), de iniciativa da Câmara dos Deputados, o qual tramitou no Senado Federal como PLC 23/2004. De acordo com esse texto: o Ensino Fundamental deve assegurar a todos “a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e [...]”. (PL 5246/2001) (BRASIL, 2001, P. 49.510) (grifo nosso)”

Entre as proposições com iniciativa no Senado Federal, destacam-se duas: o PLS 598/2019 (referido pelo mesmo número em ambas as Casas) e o PL 1909/2019 (que não foi enviado à Câmara dos Deputados).

No PLS 598/2019 (BRASIL, 2019, p. 01) , alega-se que a perspectiva ali apresentada: “se alinha com a diretriz da Carta Magna de que a educação deve proporcionar a formação do ser humano em sua plenitude, a partir da conjunção de esforços entre o Estado e a sociedade.” (PL 598/2019) (BRASIL, 2019, p. 01) (grifo nosso)

O texto pede a aprovação apontando que um dos seus objetivos é propiciar a formação do ser humano:A partir desse entendimento e com o intento de viabilizar os meios de formação de um ser humano [...]”. (PL 598/2019)(BRASIL, 2019, p. 01) (grifo nosso)

Tais excertos coadunam com a discussão sobre direitos sociais, educação e cidadania realizada na parte teórica desta pesquisa e refletem a acepção segundo a qual os direitos sociais consistem em um dos pilares da cidadania – composta, também, pelos direitos civis e direitos políticos – pois entendem que o Direito Social à Educação ocupa função expressiva na construção dos cidadãos.

A respeito da consciência de seus direitos enquanto cidadão, o PL 1909/2019 (BRASIL, 2019b, p.03) observa: “é importante oferecer momentos de reflexão e de construção de competências para que o indivíduo possa [...] identificar o não atendimento de seus direitos fundamentais e tomar as devidas providências [...].” (PL 1909/2019b) (BRASIL, 2019, p. 03) (grifo nosso)

O projeto reforça essa afirmação ao apontar a relevância dessa demanda para muitas mulheres em situação de violência, conjecturando que o desconhecimento dos próprios direitos colabora para a manutenção da condição em que se encontram:

Como exemplo da ausência desse conhecimento, podemos citar a situação de muitas mulheres, vítimas de violência doméstica, que se calam, por não conhecerem seus direitos e não saberem como acessar os canais para fazer com que eles efetivamente sejam respeitados. (PL 1909/2019) (BRASIL, 2019b, p. 04) (grifo nosso)

Conforme já comentado, a violência contra a mulher está presente, também, em situações naturalizadas, em que o ato nocivo para a mulher não é compreendido como transgressor. Contudo, importa admitir que, nem sempre, os meios disponíveis para lidar com tais casos de violência são acessíveis ou eficientes.

3.1.1.2 Subcategoria 2: Educação para a qualificação profissional

Na subcategoria Educação para a qualificação profissional, busca-se vincular o processo educativo referido na proposição examinada com melhores oportunidades no mercado de trabalho. Isso pode ser verificado tanto na pretensão de inserir ou reinserir a pessoa no mercado de trabalho, passando a ocupar uma vaga de emprego, quanto no intuito de obter uma promoção ou melhor colocação profissional.

O PL 6115/2019 (BRASIL, 2019c, p. 02), proposto na Câmara dos Deputados, se insere nesta categoria por propor: “[...] prioridade na ocupação de vagas nos cursos de capacitação e nos cursos técnicos de formação inicial e continuada realizados pelos Serviços Nacionais de Aprendizagem’ para mulheres em situação de violência doméstica.” (PL 6115/2019) (BRASIL, 2019c, p. 02) (grifo nosso)

A mesma proposição aponta uma contradição acerca da desqualificação da mulher no mercado de trabalho:

O presente projeto de lei destina-se a enfrentar uma das pontas dessa problemática, a da desqualificação da mulher no mercado de trabalho por conta, paradoxalmente, do fato de ter ela assumido uma carga desproporcional de trabalho no interior da família. O caminho adotado pelo projeto é [...] promover a capacitação das mulheres para o mercado de trabalho. (PL 6115/2019) (BRASIL, 2019c, p. 02) (grifo nosso)

Este excerto merece destaque. Embora o pronome “ela” apareça como agente do verbo “assumir”, geralmente não significa uma assunção voluntária. A responsabilidade por tarefas domésticas e de cuidado recai sobre as mulheres, mas isso não exprime, necessariamente, a sua vontade. Identifica-se, na realidade, como fruto de uma sociedade que encerrou as mulheres no âmbito privado – ou lhes atribuiu ofícios desprivilegiados e mal remunerados, como no caso de muitas mulheres pobres e mulheres negras.

A proposta do PL 6115/2019 reforça a pretensão do PLS 233/2013 (BRASIL, 2013, p. 02), inicialmente, apresentado no Senado Federal, com trâmite na Câmara dos Deputados sob a designação PL 10018/2018. Convém apresentar excerto da justificação: “apresentamos o presente projeto de lei, acrescentando à Lei Maria da Penha dispositivo que garanta, a essas brasileiras, acesso gratuito aos cursos de qualificação oferecidos pelos Serviços Nacionais de Aprendizagem.” (PLS 233/2013) (BRASIL, 2013, p. 02) (grifo nosso)

Concretamente, observa-se que nem sempre há uma relação direta entre qualificação profissional e êxito profissional. De acordo com o IBGE (2018, p. 7), “independentemente de as mulheres apresentarem os melhores resultados educacionais em média, elas ainda não alcançaram resultados compatíveis com sua qualificação no mercado de trabalho”.

No caso das mulheres em situação de violência, estas constatações também são importantes, pois a educação, neste caso, apresenta-se com potencial de, além da colocação no mercado de trabalho, possibilitar sua saída da rotina de violência sofrida. No entanto, para um resultado eficaz, não se pode ignorar que há outros importantes fatores operando nesse processo, os quais merecem atenção do legislador.

3.1.1.3 Subcategoria 3: Educação para a mudança cultural

Por fim, a Educação para a mudança cultural é identificada em proposições que associam a violência contra a mulher e seu enfrentamento a conjunturas culturais subjacentes, apontando a educação como um instrumento propício para ressignificar contextos que servem de fundamento para as condutas violentas.

Esta subcategoria emerge com frequência nos projetos analisados. Neste cenário, convém mencionar o PL 2431/2007 (BRASIL, 2007, p. 05), de iniciativa da Câmara dos Deputados. No trecho a seguir, faz referência a dispositivos da LMP que versam sobre ações educativas no tratamento da violência contra a mulher.

Iniciativas como essas, são, no nosso entendimento, cruciais para que possamos assegurar meios permanentes de coibição dessa chaga social que nos aflige, a saber, a violência contra as mulheres e meninas brasileiras. Sem uma mudança cultural que atinja os valores mais profundos, as atitudes mais comuns, os comportamentos mais corriqueiros de todos os homens e mulheres de nossa sociedade – a começar por nossas crianças e por nossos jovens –, dificilmente teremos a chance de ver se transformarem as relações interpessoais, hoje tãoperpassadas por agressividade, maus tratos, ressentimentos e grosserias. (PL 2431/2007) (BRASIL, 2007, p. 05) (grifo nosso)

Nesta subcategoria, destacam-se também o PLS 9/2016 (BRASIL, 2016, p. 02), de autoria do Senado Federal, que tramitou na Câmara dos Deputados como PL 5001/2016, e o PL 8390/2017, com trâmite apenas nesta Casa. O texto desses projetos coincide em grande parte, inclusive em trechos que abrigam os segmentos atinentes à subcategoria ora comentada. Diante disso, serão citados em conjunto.

A Educação para a mudança cultural é mencionada no teor das proposições, quando se faz alusão a experiências de reflexão sobre identidade de gênero e machismo. Outra menção ocorre quando são comentadas determinações da Convenção de Belém do Pará, da qual o Brasil é signatário.

Lembramos, por fim, que a Convenção de Belém do Pará recomenda aos Estados que adotem todas as medidas ao seu alcance para modificar os padrões sociais e culturais de conduta de homens e mulheres, inclusive a formulação de programas formais e não formais adequados a todos os níveis do processo educacional, a fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras práticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violência contra a mulher. (PLS 9/2016 (BRASIL, 2016, p. 02)) (grifos nossos)

Diante dos excertos apresentados, subentende-se que há consenso sobre a importância de aspectos culturais para que ocorra uma mudança perene no que tange à violência contra a mulher. Ainda, observa-se que a educação é considerada um importante instrumento para conduzir a reinterpretação cultural que se faz necessária.

3.1.2 Categoria 2: Funções da educação

A segunda categoria, denominada Funções da educação, refere-se à finalidade da estratégia educacional e ao momento em que é aplicada, em relação à violência a ser combatida. Esta categoria também contém três subcategorias, conforme mostra a Figura 2.

Figura 2 – Categoria 2: Funções da educação esquematizada.

Fonte: os autores.

Da mesma forma que na categoria anterior, procede-se à explicação de cada subcategoria e, na sequência, à apresentação e discussão dos trechos correspondentes.

3.1.2.1 Subcategoria 1: Prevenção

A primeira subcategoria, Prevenção, agrupa as ações que antecedem o evento violento, seja no intuito de evitar sua ocorrência, seja na promoção de preparo institucional para o adequado tratamento dos casos que não possam ser obstados. Nesta subcategoria aparecem, majoritariamente, propostas de alteração dos currículos escolares e ações de formação e capacitação profissional para integrantes de instituições.

A alteração curricular é contemplada, aproximadamente, na metade das proposições analisadas. Entre os textos que a sugerem, observa-se diferenças em relação ao momento de explorar a questão – no Ensino Fundamental; no Ensino Médio; e, de modo vinculado às atividades de ensino, pesquisa e extensão, na Educação Superior – e à forma de implementar o currículo, que varia entre a inclusão como tema transversal e a criação de disciplina específica
Todavia, a justificativa para as propostas coincide pois, no geral, afirmam que a educação escolar é adequada para promover a reflexão pretendida, já que se trata de uma fase importante do processo de socialização das crianças. O PL 1909/2019 (BRASIL, 2019d, p. 03) , de iniciativa do Senado Federal, assim discorre:

Nesse contexto, não se pode ignorar o papel que a educação exerce, pois é nos ambientes escolares que, de maneira geral, entramos em contato com nossos pares e com a diferença. É na escola que descobrimos, desde os mais tenros anos, que nossos desejos não são sempre os mais adequados para a coletividade e que existem pessoas diferentes de nós, nos mais variados aspectos, e que, mesmo não compartilhando conosco semelhanças na orientação sexual, nas condições econômicas ou no credo religioso, essas pessoas merecem respeito e consideração. (PL 1909/2019) (BRASIL, 2019d, p. 03) (grifos nossos)

Alguns projetos alegam que os alunos não seriam os únicos contemplados por essas propostas. O PL 2431/2007 (BRASIL, 2007, p.06 ), proposto na Câmara dos Deputados, apresenta o potencial de replicação dos conteúdos escolares no ambiente doméstico:

Precisamos das crianças e dos jovens alunos, que podem e devem diariamente ouvir, ver e transmitir em casa e em classe o que aprendem e o que testemunham, na teoria e na prática, nos livros e na convivência. (PL 2431/2007) (BRASIL, 2007, p. 06) (grifo nosso)

As atividades escolares repercutem fora da sala de aula. Abordar certo tema demanda uma aproximação dos professores com esse assunto, pois precisam apropriar-se e atualizar seus conhecimentos para preparar as atividades. Uma vez realizadas essas atividades, podem se tornar pauta das conversas dos estudantes mesmo fora da escola, entre si ou com seus amigos de outros círculos e seus familiares. Esses amigos e familiares, ainda, podem estender o debate a outros meios. Portanto, a inclusão de um tema de relevância no currículo ou na programação pedagógica das escolas transcende esses espaços e potencializa uma discussão na comunidade.

Sobre as ações correspondentes à capacitação institucional, reconhece-se que, aparentemente, destoam da função de prevenção, visto que se destinam ao atendimento dos episódios de violência contra a mulher, e não ao impedimento de sua ocorrência. No entanto, enquadram-se na presente subcategoria por estarem localizadas, temporalmente, antes de tais episódios. Além disso, a prestação de atendimento adequado aos envolvidos nesses conflitos é essencial, inclusive, para evitar a reincidência.

Nesse contexto, convém contemplar o PL 4559/2004 (BRASIL, 2004, p.15), apresentado inicialmente na Câmara dos Deputados, sendo que tramitou no Senado Federal sob a designação PL 37/2006. Sua justificação traz a Prevenção nos dois sentidos anteriormente citados e, também, traduzida na elaboração de estudos e estatísticas, como outra forma de prevenir a violência por meio da compreensão de como opera no plano fático.

O artigo 8° tem por objetivo definir as diretrizes das políticas públicas e ações integradas para a prevenção e erradicação da violência doméstica contra as mulheres, tais como implementação de redes de serviços interinstitucionais, promoção de estudos e estatísticas, [...] realização de campanhas educativas, capacitação permanente dos integrantes dos órgãos envolvidos na questão, celebração de convênios e parcerias e a inclusão de conteúdos de eqüidade [sic] de gênero nos currículos escolares. (PL 4559/2004) (BRASIL, 2004, p. 15) (grifos nossos)

O segmento transcrito faz parte do projeto que originou a LMP. Isso explica sua abrangência, visto que o intuito da referida Lei é combater a violência contra a mulher de forma sistemática e integral. O art. 8º, mencionado no excerto acima, concentra as diretrizes para políticas públicas que objetivam a prevenção e erradicação da violência contra a mulher, o que é possível por meio da ação integrada do Poder Público, meios de comunicação e sociedade, de acordo com o projeto.

3.1.2.2 Subcategoria 2: Reeducação

A subcategoria Reeducação apresenta os excertos que tratam sobre programas de educação e reabilitação para autores de violência contra a mulher, sendo exemplo, o PLS 9/2016, do Senado Federal, ao qual foi atribuída designação PL 5001/2016, na Câmara dos Deputados, e cujo texto coincide com o apresentado no PL 8390/2017, conforme mencionado anteriormente.

De acordo com segmento presente nessas proposições, a reeducação de autores de violência contra a mulher tem potencial para possibilitar ao autor da violência, uma reinterpretação de sua educação familiar e social sobre gênero, masculinidades, entre outros fatores relacionados ao seu papel social em relação à violência doméstica. A proposta menciona algumas ações já realizadas em nível estadual, relatando seu êxito: “Algumas das maiores conquistas dessas ações [de reeducação] são os baixos índices de reincidência dos agressores, aliados ao seu potencial para provocar mudanças significativas nas vidas desses homens, sobretudo na ressignificação de seus papéis.” (PLS 9/2016) (BRASIL, 2016, p. 03) (grifo nosso)

O PL 5001/2016 foi aprovado, sancionado e publicado como norma legal, a Lei 13.984/2020, que alterou a LMP para incluir o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação entre as medidas protetivas de urgência aplicáveis ao autor de violência doméstica. A Lei 13.984/2020 também incluiu o acompanhamento psicossocial do agressor, individualmente ou em grupo de apoio, no rol das medidas protetivas. Ambas providências já estavam presentes na proposição que deu origem à LMP (PL 4559/2004 na Câmara dos Deputados, PLC 37/2006 no Senado Federal). Contudo, passaram a integrá-la apenas recentemente.

A respeito da reeducação, vale revisitar o conceito de socialização abordado nesta pesquisa. Berger e Luckmann (1985, p. 39) propõe que a socialização dos indivíduos divide-se em socialização primária, por meio da qual a pessoa é introduzida no mundo social e em que assimila esse mundo, tal como lhe é apresentado, como natural; e em socialização secundária, em que se apresentam ao indivíduo áreas específicas, contidas no mundo que ele já conhece, pois já está socializado e, em decorrência disso, percebe esta socialização como artificial, em contraposição à primeira.

Em função de a realidade apreendida na socialização primária ser captada como orgânica – logo, inevitável – está menos suscetível a aceitar mudanças. Assim, é necessária uma ruptura significativa para alterar a percepção relativa a aspectos internalizados nessa fase. Já o caráter de certa artificialidade da socialização secundária torna os conhecimentos processados nesta etapa mais vulneráveis a alterações, por não serem tão profundamente entranhados na consciência quanto os primeiros (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 196-197).

Por isso, presumindo que as relações de gênero sejam apreendidas na socialização primária, e considerando que sejam a base da violência contra a mulher, a reeducação configura um desafio. Trata-se de substituir noções profundamente enraizadas.

3.1.2.3 Subcategoria 3: Emancipação

Por fim, a terceira subcategoria é denominada Emancipação, correspondendo às passagens que fomentam a independência da mulher em situação de violência, por meio da educação.

Diante disso, inicia-se a discussão com excertos de projetos que tratam da colocação da mulher em situação de violência no mercado de trabalho, objetivando a percepção de renda própria suficiente para que não seja necessário o convívio com o agressor. Nesse sentido, o PL 6115/2019 (BRASIL, 2019, p. 02) – de iniciativa da Câmara dos Deputados – relata:

Não basta, pois, que o Estado reaja à violência do homem contra a mulher no contexto doméstico pela punição ou afastamento do agressor. É preciso mudar o contexto, minimizar a dependência financeira da agredida, pois é por essa via que se facilita o encerramento definitivo do vínculo da mulher e da família com o agente da violência. (PL 6115/2019) (BRASIL, 2019, p. 02) (grifos nossos)

Ainda se destaca, nesta subcategoria, o PLS 233/2013 (BRASIL, 2013, p. 02), inicialmente apresentado no Senado Federal, com trâmite na Câmara dos Deputados sob a designação PL 10018/2018. Esta proposição busca promover a qualificação profissional das mulheres em situação de violência, o que contribuiria para sua emancipação, “Dessa forma, essas mulheres terão a oportunidade de serem inseridas no mercado de trabalho, passando a gerar sua própria renda, dando um passo decisivo no rompimento do ciclo de violência do qual são vítimas.” (PLS 233/2013) (BRASIL, 2013, p. 02) (grifo nosso)

O objetivo de tal proposição consiste em: “[...] proporcionar, à agredida, independência financeira, garantindo que ela tenha meios para prover a si, e a seus filhos, sem a necessidade de continuar convivendo com o agressor.” (PLS 233/2013) (BRASIL, 2013, p. 02) (grifo nosso)

Conforme comentado na categoria Abordagens de educação, subcategoria Educação para a qualificação profissional, constata-se que a capacitação das mulheres é apenas um dos fatores relacionados com sua participação no mercado de trabalho. Além disso, foram apresentados dados que demonstram que a qualificação das mulheres não tem garantido sua melhor percepção de renda.

Tratando-se de discussão similar, optou-se por não a repetir neste momento, remetendo-se quem lê ao item 5.3.2.

Os excertos que seguem tratam sobre a Emancipação em um campo distinto da independência financeira. Nesse sentido, o PL 4620/2016 (BRASIL, 2016, p. 02), de iniciativa da Câmara dos Deputados, trata da educação dos dependentes da mulher em situação de violência. “O objetivo do presente projeto de lei é preservar a continuidade do exercício do direito à educação das crianças e jovens dependentes de mulher vítima de violência doméstica e familiar”. (PL 4620/2016b) ( BRASIL, 2016, p. 02) (grifo nosso)

Tal excerto demonstra uma preocupação em evitar eventual prejuízo aos dependentes da mulher em situação de violência, o que colabora para que ela se mantenha afastada do autor dessa violência. Para tanto, propõe-se alterar a LMP, incluindo no artigo referente às medidas protetivas de urgência, o seguinte dispositivo:

Parágrafo único. No caso de aplicação do disposto no inciso III do “caput” [afastamento da ofendida do lar], os dependentes em idade escolar terão direito à matrícula, a qualquer tempo do ano letivo, em escolas públicas de educação básica mais próximas do novo domicílio ou, na hipótese de inexistência de instituições nessas condições, em escolas particulares de mesma localização geográfica. (PL 4620/2016) (BRASIL, 2016, p. 01)

Embora seja absolutamente necessário discutir a emancipação da mulher em termos práticos, importa observar que há empecilhos de ordem psicológica que operam juntamente com a questão financeira para a manutenção do vínculo entre agressor e vítima, apesar da violência. A esse respeito, estudo realizado no Acre revelou dois aspectos interessantes: (a) a referida dependência financeira atinge também mulheres de classes mais altas, não para sua subsistência, mas para manutenção de um padrão de vida para si e para os filhos; e (b) a dependência emocional, a responsabilidade por preservar o casamento e o ideal do amor romântico também motivam as mulheres a permanecerem em uma relação com seu agressor (BUCHER-MALUSCHKE; PORTO, 2014, p. 274). Sobre isso, as autoras relatam:

[...] há uma busca de realizar um desejo de viver a promessa do amor romântico, a plenitude possibilitada pelo encontro da metade que promoverá a completude, e para tal lutam para que ocorra a mudança do outro, pois temem as consequências de mudar seu desejo, ou melhor, enfrentar que esse desejo não poderá ser realizado. Ao mesmo tempo são sutil e cotidianamente confrontadas com modelos e referências constituídas no discurso sobre o feminino que enreda e constrói o que se é, o que faz e pensa ser, sem que nem se aperceba o que ocorre: o controle sobre seus corpos e desejos (BUCHER-MALUSCHKE; PORTO, 2014, p. 275) (grifo nosso).

Então, observa-se que a matéria da emancipação não é apenas pragmática. Mesmo com enfoque no âmbito prático, a educação apresenta-se de formas diversas. Nesta subcategoria, destacaram-se sua correlação com independência financeira, sua condição de direito dos dependentes e, por fim, sua representação institucional. Essa pluralidade de manifestações é um indicativo do potencial do campo da educação no tratamento de adversidades sociais aparentemente independentes.

Então, a resposta ao problema de pesquisa pode ser expressa, resumidamente, da seguinte maneira: observando as proposições legislativas do Congresso Nacional que versam sobre violência contra a mulher, verifica-se que as abordagens de educação encontradas relacionam-se, principalmente, com a noção de cidadania (destacando o caráter da educação como Direito Social); com a qualificação profissional; e com a necessidade de uma mudança cultural, sendo que se espera que a educação opere para prevenir a violência contra a mulher, para reabilitar os agressores e para emancipar as vítimas, por meio de ferramentas de efetivação cujo detalhamento é apontado em diferentes níveis nas propostas

4 Considerações finais

A pesquisa teve o intuito de compreender como a educação é abordada nas proposições legislativas do Congresso Nacional, precisamente naquelas que se dedicam ao enfrentamento da violência contra a mulher.

Para tanto, o trabalho teve início com uma exposição sobre Direitos Sociais e Direito Social à Educação, com a exploração de tópicos como trajetória histórica e questões concernentes às mulheres nessa esfera, bem como a discussão sobre a compreensão de educação, propondo que o termo abranja, também, aprendizados que não são atrelados a instituições formais.

Ao observar a distribuição das proposições nas categorias e suas respectivas subcategorias, identifica-se que a necessidade de promover uma mudança cultural é uma ideia recorrente. Isso equivale a admitir que há um conjunto de valores e usos que dão base à prática da violência contra a mulher. Por mais assertiva que seja tal constatação, dela emergem alguns aspectos essenciais para esta discussão.

Esse reconhecimento é extremamente positivo, no que concerne aos aspectos culturais, os quais emergem socialmente e escapam às proposições legislativas, mas são, mesmo que de forma restrita, apontados por proposições. Convém considerar, também, que os dados e as referências concretas exprimem recortes sociais de desigualdades.

Além disso, apesar de aparentemente haver ciência do componente cultural que fundamenta comportamentos violentos baseados no gênero, admitem-se argumentações baseadas em tal componente (cultural), fundamentadas em uma organização social que desfavorece a mulher, inclusive limitando sua autonomia. Neste contexto, é imprescindível que as ações sejam repetidamente repreendidas pela sociedade e pelo Poder Público.

É necessário pontuar que parece haver carência nos textos das proposições, no que concerne a uma leitura interseccional, cuja importância é amplamente discutida no momento atual. Poucas proposições mencionam o cruzamento entre gênero e raça, por exemplo. Nos dois casos, bem como na sua convergência, a questão culturalda realidade fática é crucial, o que exacerba a relevância de um tratamento conjunto.

É importante anotar, também, que as proposições estudadas, em geral, não demandam recursos materiais relevantes do Estado para serem implementadas, nem geram ônus significativos para entes da iniciativa privada – que poderiam, por ventura, oferecer resistência. Ainda assim, verifica-se que poucos projetos de lei se tornaram norma legal.

Mesmo diante de limites no emprego da educação para o enfrentamento da violência contra a mulher, a legislação, mesmo que de forma pontual, colabora para um tratamento que reconheça fatores aparentemente independentes que, no entanto, operam na sistemática relacionada a esse problema. Esses fatores também têm origem em definições culturalmente impostas, por exemplo, o que se espera como comportamento, expectativas e responsabilidades das mulheres. Assim, entende-se que os esforços para a mudança cultural precisam lidar com esses aspectos, para além da promoção da não-violência e do reconhecimento dos próprios direitos.

Diante das considerações apresentadas, convém resgatar que este estudo buscou verificar, a partir das proposições legislativas do Congresso Nacional que buscam enfrentar a violência contra a mulher, de que modo estas abstrações abordam o Direito Social à Educação, sendo pertinente considerar que a legislação não muda realidades, pois sem mudança cultural, social, institucional por meio da educação a realidade dificilmente é modificada.

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1 Mestra em Direito pela Universidade Federal de Pelotas; Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pelotas;Técnica Administrativa em Educação na Universidade Federal de Pelotas; https://orcid.org/0000-0003-3327-6989;karina@gmail.com

2 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria; Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria; Professor Adjunto da Faculdade de Direito na Universidade Federal de Pelotas; https://orcid.org/0000-0003-1118-1575; valmorscottjr@gmail.com