https://doi.org/10.18593/ejjl.27309

POLÍTICAS PÚBLICAS E AÇÕES AFIRMATIVAS: UM CAMINHO (AINDA) POSSÍVEL NA BUSCA PELA IGUALDADE E JUSTIÇA DE GÊNERO NO BRASIL?

PUBLIC POLICIES AND AFFIRMATIVE ACTIONS: STILL A POSSIBLE PATH IN THE INQUIRY FOR GENDER EQUALITY AND JUSTICE IN BRAZIL?

Monica Sapucaia Machado1

Denise de Almeida Andrade2

Resumo: O artigo propõe revisar a bibliografia especializada e discutir a função das políticas públicas sob a vertente das ações afirmativas como ferramenta do Estado Democrático de Direito para a busca pela igualdade de gênero. Utiliza-se de levantamento bibliográfico e legislativo, com destaque para artigos de periódicos e coletâneas de livros especializados no tema, bem como de mapeamento histórico das políticas públicas comprometidas com a igualdade de gênero no País. Realiza-se o debate sobre leis de cotas eleitorais para explorar a efetividade das políticas de ação afirmativa na mitigação da desigualdade entre homens e mulheres nos espaços de poder e decisão no Brasil. Aponta-se a importância de referidas ações, vez que remanescem no País a disparidade salarial, a inexpressiva representatividade política, a desigual divisão sexual do trabalho, que historicamente subalternizam as mulheres. Apesar da resistência do Poder Público brasileiro, especialmente a partir de 2016, conclui-se que são essenciais medidas públicas e oficiais que proponham uma nova organização das estruturas de poder.

Palavras-chave: gênero; justiça; políticas públicas; ações afirmativas.

Abstract: The article proposes reviewing the bibliography and discussing the role of public policies, particularly the aspect of affirmative actions in the Democratic Rules of Law. It uses a bibliographic and legislative research emphasizing periodicals articles and specialized books collections, as well as a historical mapping of public policies committed to gender equality in the country. The paper relates the electoral quota law contest to explore the effectiveness of affirmative action policies in mitigating inequality between men and women in Brazil’s spaces of power and decision. The text explains the need for such actions since the wage gap, the political representativeness, the sexual labor division remains. Despite the Brazilian Public Power’s resistance, mainly since 2016, this article concludes that public and official measures proposing a new organization of power structures are essential.

Keywords: gender; justice; public policy; affirmative actions.

Recebido em 24 de fevereiro de 2021

Avaliado em 28 de fevereiro de 2022 (AVALIADOR A)

Avaliado em 11 de dezembro de 2021 (AVALIADOR B)

Aceito em 28 de fevereiro de 2022

Introdução

O conceito de políticas públicas está intrinsicamente ligado ao regime de governo e aos compromissos do poder constituído com a sociedade que governa. Nesse o artigo propõe-se revisar a bibliografia sobre políticas públicas, mais especificamente sobre a vertente das ações afirmativas, levando em conta os preceitos constitucionais do Estado brasileiro. Utiliza-se a políticas de cotas para analisar a efetividade, os percalços e as conquistas desse instrumento. Discorre-se sobre a trajetória da criação do conceito de discriminações positivas e ações afirmativas, apontando a inclusão desse tipo de política na estrutura jurídica e avança-se para debater os fundamentos sociais e jurídicos que baseiam a implantação de uma ação afirmativa para a participação política das mulheres no Brasil.

O debate sobre discriminação positiva perpassa pela compreensão de qual é o papel do Estado na efetivação dos seus princípios e qual estratégia considera-se legítima e legal para promover o modelo de Estado com o qual as constituições e tratados internacionais se comprometeram.

A ideia de que todos são iguais perante a lei tem sido a base do direito dos Estados liberais desde o século XIX e alicerça a construção das democracias modernas, em uma lógica de que cada homem é autônomo para escrever a sua história e buscar seu caminho, independente da sua linhagem, sua condição social e sua rede de relações.

Contudo, esse ideal de igualdade entende o homem, como apontado no parágrafo anterior, como o grupo social representante do todo, em uma deliberada opção de restringir a eles os direitos de pertencimento e autonomia.

Apesar do “iguais perante a lei” estar previsto nas constituições brasileiras desde a primeira constituição da república, em 18913, apenas na Constituição cidadã, em 1988, a igualdade perante a lei ganhou amplitude para reconhecer que homens e mulheres são iguais em direito e obrigações, e assim possibilitar que a sociedade exija ações estatais para a construção de uma realidade efetivamente mais igualitária.

Esse trabalho se constrói através do cotejamento das obrigações assumidas pelo Estado brasileiro na Constituição de 1988 com a realidade estatística da baixa presença das mulheres nas esferas de poder e decisão, especialmente na esfera política.

O estudo não se concentra na análise de uma política específica, pois busca demonstrar a solidez teórico-jurídica da implantação pelo Estado brasileiro de políticas de discriminação positiva, assim como apresentar as políticas em curso e seus resultados. Para tanto, foi realizado levantamento bibliográfico sobre políticas públicas, ações afirmativas e discriminação positiva em um primeiro momento para, em seguida, verificar textos sobre desigualdade de gênero e participação política das mulheres. Houve a verificação de leis e outros marcos normativos atinentes à participação política das mulheres no Brasil, com destaque para as leis que abordam diretamente a questão de cotas eleitorais no País.

A reflexão apresentada se estrutura da forma seguinte: discorre-se sobre a legalidade e legitimidade da discriminação positiva no ordenamento jurídico brasileiro; aponta-se a ação afirmativa como uma estratégia possível no Estado democrático de Direito; observam-se os dados estatísticos da presença das mulheres nos espaços socialmente importantes; e conclui-se que o abismo que separa a realidade das mulheres e dos homens ainda impõe que a sociedade desenvolva ferramentas para efetivar mudanças estruturais.

1 Políticas públicas e ação afirmativa: resgatando conceitos e contribuições

Uma das definições de políticas públicas mais utilizada na literatura especializada é a de G.Guy Peters presente na enciclopédia de Administração Pública e Políticas Públicas, editada pela Universidade Estadual da Pensilvânia, Estados Unidos: “Public Policy is the sum of government activities, whether acting directly or through agents, as it has an influence on the lives of citizens.4 (PETERSON, 2003, p. 1030).

No Brasil, Maria Paula Dallari Bucci (2013, p. 109) define políticas públicas como “programas de ação governamental, em cuja formação há um elemento processual estruturante”; isto é, a política pública é a culminância de um processo, que se estende “desde a inserção do problema na agenda política até a implementação da decisão.” (BUCCI, 2013, p. 109).

As ações estatais devem estar alinhadas ao interesse coletivo, principalmente em Estados democráticos, como o Brasil, e a política pública é uma “nova forma de compreender e estudar a ação coletiva e a ação governamental.” (BUCCI, 2013, p. 104).

O paradigma de democracia aqui utilizado é o de um sistema político capaz de garantir igualdade e liberdade tanto aos ricos quanto aos pobres, tanto aos brancos como aos negros, tanto aos homens quanto às mulheres: “a igualação das condições sociais de vida, assim, está intrinsecamente ligada à consolidação e ampliação da democracia, para não dizer que é essencial para sua legitimidade, permanência e futuro como forma política” (BERCOVICI, 2006, p. 14), ou seja, supera a compreensão de democracia como uma mera técnica jurídica (BERCOVICI, 2006, p. 2).

A definição de democracia como “um regime político fundado na soberania popular e no respeito integral aos direitos humanos” (SOARES, 1996) obriga que se pense em mecanismos para efetivar tanto a soberania popular - com eleições, consultas, referendos, conselhos – quanto para garantir o efetivo gozo dos direitos fundamentais por toda a sociedade.

Políticas públicas como uma área de pensamento se constitui na trilha do debate do papel dos governos, dos compromissos e das escolhas. Como explica Celina Souza o estudo das políticas públicas nasce nos EUA quando a ciência política norte-americana opta por investigar a atuação do governo deslocada do estudo sobre o papel do Estado, como faziam os europeus. A base da reflexão teórica do tema é que “em democracias estáveis, aquilo que o governo faz ou deixa de fazer é passível de ser (a) formulado cientificamente e (b) analisado por pesquisadores independentes.” (SOUZA, 2006, p. 22).

Políticas públicas são tanto uma área de conhecimento da ciência política como um método estratégico dos governos democráticos de programar e implementar sua agenda política. A compreensão de que o orçamento público é finito e que as demandas sociais são extensas, plurais e dinâmicas obriga o Estado a fazer escolhas de atuação e essas escolhas irão pautar os serviços públicos ofertados, as relações internacionais feitas e as áreas priorizadas.

Em sociedades estruturalmente desiguais como a brasileira recai sobre os governos a responsabilidade de alçar os grupos socioeconomicamente vulneráveis a condições mais igualitárias de disputar as oportunidades existentes.

Essas táticas podem ter tanto um caráter generalista, a exemplo de um serviço público ofertado para toda a sociedade, o qual contempla aqueles que não teriam como arcar com o custo desse serviço, quanto uma abordagem específica, que se designam a oferecer a um ou mais grupos sociais ferramentas para a diminuição da vulnerabilidade vivenciada, as chamadas ações afirmativas.

No contexto de compreensão da relevância da igualdade formal e material, e da comprovação de limitação da igualdade formal para atender às necessidades de grupos sociais que foram historicamente marginalizados, fez-se necessário desenvolver políticas e programas voltados à criação de ferramentas que facilitassem, ampliassem e democratizassem o acesso às chances disponíveis de trabalho formal, ensino superior, etc..

Essas ferramentas são conhecidas como discriminação positiva, que nas palavras de Noon (2010, p. 729) pode ser conceituada como “reconhecimento específico de que certas características (tipicamente sexo, raça/etnia, deficiência, religião, orientação sexual e idade) prejudicam grupos de pessoas sem culpa direta própria.” A partir desse reconhecimento, a estrutura de poder “leva em consideração a desvantagem no processo formal de tomada de decisão, tornando essas características critérios legítimos para avaliar candidato.” (NOON, 2010 p. 729)5.

As ações afirmativas, por sua vez, são um tipo de discriminação positiva, que na maioria das vezes representam “políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica no passado ou no presente.” (CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2021).

As ações afirmativas são desenvolvidas, majoritariamente, pelos governos, a fim de mudar a realidade de determinado grupo social que, por razões histórico-culturais, vive em desigualdade social no que se refere ao acesso a direitos fundamentais. O intuito das ações afirmativas é abrir caminhos aos grupos que até então foram excluídos das oportunidades acessíveis aos demais e por isso: “Nas democracias contemporâneas, qualquer política pública tem que ser justificada perante a sociedade na qual é aplicada.” (FERES JÚNIOR, 2007, p. 63).

As primeiras ações afirmativas aconteceram na Índia, país historicamente dividido em castas. Os párias, grupo social conhecido como intocáveis, que não pertence a casta nenhuma, tinha enorme dificuldade de participar da sociedade em situação de igualdade. No intuito de modificar esse cenário, Mahatma Gandhi liderou um movimento que conseguiu aprovar, em 1935, o Government of India Act, instrumento legal que, dentre outros pontos, garantiu aos párias reserva de vagas no parlamento, e tratamento preferencial no emprego do setor público (BALAKRISHNAN, 2008).

Todavia, foi nos Estados Unidos, na década de 1960, que a ideia ganhou força. O campo do trabalho foi o primeiro espaço das ações afirmativas americanas. Em 1965, na Universidade de Howard, o presidente americano Lyndon Johnson, defensor do Welfare State, fez um discurso sobre a necessidade de se garantir mais do que igualdade civil e política e reconheceu que o Estado deveria oferecer garantias básicas, principalmente de emprego (CROSBY; CORDOVA, 1996).

A década de 1960 foi determinante para a consolidação jurídica da noção de direitos humanos, no reconhecimento do diferente, na defesa da igualdade material nos EUA. Apenas em 1964, impulsionado pela repercussão do famoso discurso do pastor Martin Luther King, em que dizia sonhar em ver seus filhos não serem julgados pela cor da pele (DIXON, 2021), a suprema corte americana proibiu a discriminação por raça, cor, sexo e religião, tanto em espaços públicos, como bibliotecas, escolas, parques, como no mercado de trabalho.

Saliente-se, nesse ponto, que não apenas os norte-americanos perceberam a necessidade de mecanismos para garantir a igualdade; a Europa, na década de 1970, incorporou academicamente a ideia de “discriminação positiva” e, em 1982, a Comunidade Europeia criou o Programa de Ação para a Igualdade de Oportunidades para Homens e Mulheres (EUROPEAN COMISSION).

A busca pela igualdade material transformou a diferença em um conceito a ser considerado. Joan W. Scott (2005, p. 23), em seu artigo, O enigma da igualdade, explica:

A ação afirmativa foi já em sua articulação inicial uma política paradoxal. Visando a acabar com a discriminação, não apenas chamou a atenção para a diferença, como também a abraçou. Visando a tornar a identidade de grupo irrelevante no tratamento com os indivíduos, ela reificou a identidade de grupo.

A definição do conceito de ação afirmativa está intrinsecamente ligada ao entendimento de paridade: “a definição geral de ação afirmativa deixa claro que a base filosófica da ação afirmativa consiste em ver ação afirmativa como uma forma não passiva de garantir que pessoas com todas as origens étnicas tenham um tratamento justo.” (KROSNICK; CHIANG; STARK, 2016, p. 436).6” (tradução livre).

No Brasil, Joaquim Barbosa Gomes traduz a definição de Bernadette Reunauld (1997 apud GOMES, 2001, p. 132): “As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física.” Para Oliven (2007, p. 30):

A ação afirmativa visa remover barreiras, formais e informais, que impeçam o acesso de certos grupos ao mercado de trabalho, universidades e posições de liderança. Em termos práticos, as ações afirmativas incentivam as organizações a agir positivamente a fim de favorecer pessoas de segmentos sociais discriminados a terem oportunidades de ascender a postos de comando. Nessa perspectiva, a sub-representação de minorias, em instituições e posições de maior prestígio e poder na sociedade pode ser considerada um reflexo de discriminação. Portanto, visa-se, por um período provisório, a criação de incentivos aos grupos minoritários, que busquem o equilíbrio entre os percentuais de cada minoria na população em geral e os percentuais dessas mesmas minorias na composição dos grupos de poder nas diversas instituições que fazem parte da sociedade.

Para Feres Júnior (2005, p. 46) as ações afirmativas são justificadas por três argumentos centrais, a justiça distributiva ou social, a reparação e a diversidade: “nem sempre os argumentos são equipotentes em cada discurso de justificação, mas onde a ação afirmativa tenha sido implantada, pelo menos um desses argumentos foi usado em sua justificação pública.”

A justiça distributiva ou social ocorre quando o Estado utiliza os seus recursos, arrecadados pela coleta de tributos, para a diminuição da distância entre os que possuem mais e os que menos possuem. Isto não se confunde com a premissa de distribuir as riquezas (públicas e particulares) de forma igualitária a todas as pessoas, pois significa o gerenciamento dos recursos estatais para a criação de ações, equipamentos e iniciativas que fomentem a produção e a emancipação econômico-financeira daqueles que ainda dependem do Estado para suprir necessidades básicas, ao mesmo tempo em que mantem a capacidade dos que vivem independentemente do Estado.

De acordo com a proposta de justiça distributiva ou social, é possível construir uma estrutura capitalista menos desequilibrada socioeconomicamente, capaz de distribuir a riqueza, de estimular a criatividade e o empreendedorismo, de minimizar as diferenças entre as classes, de fomentar a diversidade respeitando as peculiaridades de cada pessoa, tendo o Estado como agente articulador dessa estrutura.

As práticas sociais são anteriores e mais amplas do que as políticas sociais. Isto é, a sociedade sempre realizou atividades importantes no campo social, relativas às necessidades e à inserção dos indivíduos. Devemos, pois, perguntar: o que diferencia as políticas sociais das práticas anteriores a sua emergência: os atores, as lógicas, as técnicas? Estes três elementos são fundamentais, porém, a diferença básica está no caráter político e na dimensão de direito atribuída ao acesso a bens e serviços sociais. (FILGUEIRAS, 1996, p. 14).

O Estado ao decidir utilizar o orçamento público para promover reformas estruturais em determinada região menos favorecida, oferecer seguro-desemprego, construir um hospital público no meio de uma comunidade pobre, está focando sua ação em esferas mais vulneráveis da sociedade, por isso está fazendo uma política social voltada ao bem comum.

Por outro lado, a justificativa da reparação não é uma unanimidade junto aos defensores das ações afirmativas. Ronald Dworkin (2007, p. 239) discorda da ideia de compensação:

[...] penso que é um grande erro tentar defender a ação afirmativa como uma compensação para injustiças do passado. Não encaixa: quem se beneficia não é quem sofreu no passado. E creio ser um equívoco supor que uma parte da população - em vez de indivíduos - possa ser detentora de direitos, como o direito à compensação. Porém, é claro que a igualdade está presente no meu argumento prospectivo para ação afirmativa. Eu defendo que uma sociedade sem preconceito racial e sem estereótipos tem probabilidade maior de ser justa na distribuição de riquezas e também tem maior probabilidade de ser melhor para todas as pessoas, em muitos aspectos.

Dworkin (2007) defende a justeza da diversidade, do multiculturalismo, e que toda a sociedade se beneficiaria em ser mais plural, em ter em seus postos de comando e decisão, em suas cadeiras escolares, em seus postos de trabalho, pessoas de origens diferentes, com passados distintos, o que traria novos olhares, novos pontos de vista.

Pondera-se que, apesar de ter validade o pensamento de Dworkin (2007) - de que a sociedade irá se beneficiar da pluralidade de seus componentes ocupando todos os espaços sociais - a ideia de reparação também precisa ser considerada. A ação estatal de reparação pode não garantir a compensação a quem sofreu a discriminação, mas impõe ao Estado que ele arque com as consequências oriundas de sua leniência, o que, simbolicamente, é relevante para coibir iniciativas futuras de análoga discriminação.

Diz-se isto, porque o Estado, para garantir o direito à igualdade, tem que ir além de proibir atitudes discriminatórias e produzir políticas gerais de inclusão, deve pensar políticas que levam em conta características como gênero, raça, nacionalidade, regionalidade, a fim de albergarem as indiferenças históricas às quais esses segmentos foram submetidos.

[...] ao invés de conceber políticas públicas de que todos seriam beneficiados, independentemente da sua raça, cor ou sexo, o Estado passa a levar em conta esses fatores na implementação das suas decisões, não para prejudicar quem quer que seja, mas para evitar que a discriminação, que inegavelmente tem um fundo histórico e cultural, e não raro se subtrai ao enquadramento nas categorias jurídicas clássicas, finde por perpetuar as iniquidades sociais. (GOMES, 2001, p. 134).

Na concepção de igualdade de fato, tais políticas tornam-se necessárias, como aponta Celia Lessa Kerstenetzky (2006, p. 568):

Sem a ação/política/programa, focalizados nesses grupos, aqueles direitos são letra morta ou se cumprirão apenas em um horizonte temporal distante muito (sic). Em certo sentido, essas ações complementariam políticas públicas universais justificadas por uma noção de direitos sociais, como, por exemplo, educação e saúde universais, afeiçoando-se à sua lógica, na medida em que diminuíram as distancias que normalmente tornam irrealizável a noção de igualdade de oportunidades embutida nesses direitos.

O conceito de discriminação positiva não está fundamentado apenas na necessidade de se criarem mecanismos para igualar de fato as oportunidades para todas as pessoas, mas também na premissa de ser um mecanismo de mudança cultural e comportamental. As ações afirmativas, além de garantirem que “novos beneficiários” tenham acesso a uma oportunidade que não ocorreria pelas vias tradicionais, também trazem mudanças simbólicas nas relações da sociedade com esses grupos, até então, à sombra. Gomes (2001, p. 133) explica que entre os objetivos das ações afirmativas está a mudança de paradigma:

Assim, além do ideal de concretização da igualdade de oportunidades, figuraria entre os objetivos almejados com as políticas afirmativas o de induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, aptas a subtrair do imaginário coletivo a ideia de supremacia e de subordinação de uma raça em relação à outra, do homem em relação à mulher.

Os beneficiários seriam exemplos a serem seguidos, suas conquistas começariam a se tornar comuns para toda a sociedade e as futuras gerações entenderiam tais conquistas como algo comum, trivial, natural.

No âmbito do simbólico, as políticas de ação afirmativa são instrumentos de reconhecimento da sociedade em relação à discriminação; oficialmente, a sociedade reconhece que trata de maneira desigual determinado grupo e por isso desenvolve uma política a fim de acabar ou minimizar essa desigualdade. Joan Scott (2005, p. 26) explica que a ação afirmativa atua por dois caminhos:

Enquanto buscava promover oportunidades para indivíduos, a ação afirmativa também tinha como premissa uma visão de justiça social. Essa visão preferia a inclusão à discriminação, mesmo se isso significasse a perda de privilégios tradicionais para alguns indivíduos. Ela endossou a igualdade de oportunidades e algumas de suas implicações niveladoras: comunidades mais homogêneas e menos hierarquicamente organizadas em termos de gênero e raça.

Além disso, as ações afirmativas possibilitam que espaços importantes, como a escola, o trabalho, o legislativo, tornem-se mais plurais, mais diversificados e mais representativos do corpo social.

Uma sociedade diversa, igualitária e justa é o objetivo do Estado Social e Democrático de Direito e qualquer grupo social que, por questões discriminatórias de qualquer ordem e em qualquer tempo, não consiga usufruir dessa sociedade é público-alvo de ações afirmativas, como explica Feres Júnior (2005, p. 52):

[...] ação afirmativa desde seu nascedouro já era formalmente aberta a qualquer grupo ou minoria que pudesse apresentar-se como vítima de discriminação por raça, cor, credo ou origem nacional. Uma vez que o argumento da justiça social foca explicitamente a desigualdade do presente e não o acúmulo de injustiças passadas — a mera constatação da desigualdade presente é suficiente para se justificar ações corretivas.

As ações afirmativas são, pois, instrumentos da sociedade democrática para acelerar as conquistas de grupos sociais excluídos dos espaços de desenvolvimento econômico-social sejam no espectro da reparação, no intuito de diminuir o papel da desigualdade estrutural na vida cotidiana de determinadas pessoas, seja no âmbito de abrir caminhos para transformação social, possibilitando assim construir uma nova realidade, mais inclusiva e mais plural, contribuindo para o respeito à diversidade.

2 Ação afirmativa e o enfrentamento à desigualdade de gênero

O Brasil7 demorou a incluir políticas de discriminação positiva nas suas ações estatais se comparado aos Estados Unidos, à Europa Ocidental e à Índia. As primeiras ações afirmativas do Estado brasileiro são posteriores à Constituição de 1988 e resultam da retomada da democracia. É a Constituição Federal-CF/88 que consolida a igualdade material entre homens e mulheres e pugna por uma ação estatal alinhada a esta premissa.

Em 1965, 25 anos antes, as Nações Unidas aprovaram a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, que determinava a intervenção estatal no combate à discriminação:

Os Estados partes condenam toda propaganda e todas as organizações que se inspirem em ideias ou teorias baseadas na superioridade de uma raça ou de um grupo de pessoas de uma certa cor ou de uma certa origem étnica ou que pretendem justificar ou encorajar qualquer forma de ódio e de discriminação raciais e comprometem-se a adotar imediatamente medidas positivas destinadas a eliminar qualquer incitação a uma tal discriminação, ou quaisquer atos de discriminação com este objetivo tendo em vista os princípios formulados na Declaração universal dos direitos do homem e os direitos expressamente enunciados no artigo 5 da presente convenção (art. 4o). (grifo nosso). (NAÇÕES UNIDAS,1965).

O Brasil, através do decreto n. 65.810, de 1969, promulgou a Convenção e a incluiu no sistema jurídico pátrio, ainda durante o regime ditatorial. Logo, antes mesmo da CF|88 era juridicamente possível a promoção, pelo Estado brasileiro, de ações afirmativas, porém não houve vontade política de efetivar a implementação de políticas com esse viés até o início do novo processo democrático.

O processo constituinte de 1986/87 reuniu as diversas forças político-sociais do país; grupos de interesse representando inúmeros grupos sociais militaram no Congresso Nacional a fim de positivar na nova Constituição direitos específicos, reconhecimentos necessários na tentativa de deixar de ser invisível perante o Estado brasileiro.

Destaca-se, nesse ponto, a mobilização das mulheres parlamentares, acadêmicas, lideranças de movimentos sociais, as quais inseridas ou não diretamente nas discussões constituintes foram essenciais à consolidação de direitos e garantias favoráveis à igualdade de gênero presentes na CF|88. Ainda relevante pontuar a entrega da Carta das Mulheres brasileiras aos Constituintes ao então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, por ser um marco na “trajetória desse longo e difícil processo de advocacy, que se desenvolveu em um cenário que os partidos políticos e forças sociais diversas ainda atuavam em um contexto marcado por décadas de autoritarismo e divórcio entre sociedade civil e Estado.” (PITANGUY, 2018, p. 20).

As 26 deputadas constituintes protagonizaram o esforço político e jurídico na concretização legal da pauta construída pelo plural movimento de mulheres brasileiro. O resultado desse esforço se observa nos 120 dias de licença maternidade, na equiparação de responsabilidades e direitos e em tantas outras normas inovadoras, até então, ao direito pátrio.

Assim, imbuídos dos novos ares democráticos garantiu-se determinações como o princípio da busca de integração com a América Latina (art. 4°, parágrafo único); a afirmação de que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (art.5, I); a redução das desigualdades regionais e sociais como um princípio da atividade econômica (art. 170, VII) entre tantos outros. Desta forma, a CF\88 pode ser considerada um marco político-jurídico-constitucional para as discussões sobre discriminação positiva no Brasil, oferecendo arsenal jurídico para as lutas especificas.

Desde então o Estado brasileiro introduziu políticas afirmativas para pessoas com deficiência (Lei n. 8213/91), mulheres (Lei n. 9594/97), negros (Lei n. 12711/12; Lei n. 1 2990/14), populações indígenas (Lei n. 12711/12), além de políticas dentro dos programas gerais nas áreas da saúde, educação, moradia.

Os vinte e cinco anos seguintes à promulgação da Constituição guardaram algum alinhamento acerca da relevância da temática para o desenvolvimento do Brasil, panorama que a partir de 2016 tem mudado significativamente, em uma constante e crescente resistência do poder público, especialmente, do Executivo Federal às medidas voltadas à mitigação de desigualdades sociais, bem como de promoção de direitos de grupos vulnerabilizados, considerados desta forma, por uma histórica condição de subalternização, como no que se refere à igualdade material entre homens e mulheres.

Compreende-se que a desigualdade entre homens e mulheres é estrutural e intrínseca a sociedade, logo o direito e a gestão pública estão inseridos em uma lógica simbólica em que essa desigualdade é aceita e muitas vezes incentivada. Os direitos conquistados pelas mulheres consagram uma árdua luta política, porém ainda distante da quebra da estrutura social que mantem as mulheres em estado de desvantagem permanente em relação aos homens.

Relevante pontuar que ao se falar de igualdade e justiça de gênero, reconhece-se a necessidade e urgência de se continuar a implementação dos direitos legalmente conquistados, porém ainda não efetivados, ao mesmo tempo em que se busca reduzir as desigualdades entre homens e mulheres. Nesta medida, alguns conceitos são resgatados e abaixo discutidos, com o objetivo de conferir arrimo às discussões voltadas à justiça de gênero.

O conceito de gênero tem origem na década de 1970, tendo sido difundido pelas feministas norte-americanas que tentavam desmistificar o determinismo biológico entre os sexos, abrindo o horizonte para um caráter mais social das diferenças. Nas palavras de Joan Scott (1996, p. 266): “La palabra denotaba rechazo al determinismo biológico implícito en el empleo de términos tales como “sexo” o “diferencia sexual.” O objetivo aqui é introduzir a ideia de que os sexos se relacionam, de que só é possível entender um quando relacionado com o outro. Assim, pensar as mulheres obriga pensar os homens. Luana Pinheiro (2007, p. 35) explica:

A palavra gênero aparece para introduzir uma noção relacional, isto é, a ideia de que homens e mulheres são definidos em termos recíprocos, não se podendo entender um dos sexos sem levar em consideração o outro. Nesse sentido, qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente uma informação sobre os homens.

Importante ponderar que gênero é um conceito político, que dialoga com as desigualdades nas relações entre homens e mulheres, e tem o intuito de aglutinar as mulheres como um coletivo. Mesmo que se possa falar de gênero masculino, a categoria foi desenvolvida para agregar as mulheres como sujeitos políticos. Gênero é, pois, um conceito que está intrinsecamente ligado às relações de poder entre os sexos (SCOTT, 2005).

Os papeis do homem e da mulher têm sido construídos de forma a separar os espaços e as atividades entre masculino x feminino. Os espaços tipicamente masculinos são, por sua vez, os espaços públicos, da política, dos grandes negócios, do mercado financeiro, da alta gerência, etc. A presença feminina tem vínculo estreito com o espaço privado, doméstico, considerado seu habitat tradicional; mesmo quando exercem funções remuneradas, as mulheres ainda predominam nos trabalhos ditos de cuidado, como professoras, enfermeiras, cuidadoras.

A história das mulheres brasileiras nos espaços políticos e de trabalho\emprego é repleta de entraves jurídicos, de políticas institucionalizadas de exclusão e de discursos estatais limitadores dos direitos e do acesso das mulheres aos espaços de poder e decisão. Esse percurso faz com que a realidade do século XXI ainda seja da guetização das mulheres em ramos profissionais considerados femininos, a diferença salarial patente e a baixa representatividade política.

Observa-se, por exemplo, que as mulheres representam 92,4% dos trabalhadores domésticos (IBGE, 2018) 70,6% dos estudantes universitários em licenciatura (MEC; INEP, 2018), 85,1% dos profissionais de enfermagem (COFEN, 2013). A casa, e as funções que as cercam, o cuidado com os filhos/os idosos/os doentes, está sob a responsabilidade da ação feminina, desde sempre.

Historicamente, as atividades econômicas, desempenhadas no espaço público, são tidas como “produtivas” e dotadas de reconhecimento social, enquanto os trabalhos domésticos, considerados ainda atribuições das mulheres e desempenhados no espaço privado, são vistos como atividades “reprodutivas”, voltadas apenas a possibilitar o desenvolvimento das atividades produtivas. (BERTOLIN; KAMADA, 2012, p. 31).

Contudo, esse espaço doméstico, apesar de ser visto como mais afável, mais sensível, também é considerado menos importante. Joan Scott (2005, p. 21) explica que:

Quando a exclusão das mulheres da cidadania foi legitimada pela referência às diferenças biológicas das mulheres e dos homens, a ‘diferença sexual’ foi estabelecida não somente como um fato natural, mas também como uma base ontológica para diferenciação política e social. No período das revoluções democráticas, as mulheres foram consideradas como outsiders políticas, devido à diferença sexual.

As profissões dominadas pelas mulheres como o magistério e a enfermagem, estão relacionadas às funções do cuidado. A atuação das mulheres nessas profissões foi discursivamente aceita por vincular referida função a uma extensão da maternidade, como se cuidar fosse uma característica intrínseca às mulheres e estranha aos homens.

Tal discurso alicerçou a manutenção das diferenças salariais entre os sexos, mesmo depois de legalmente proibida; a desvalorização, pelo Estado, de determinadas carreiras como a do magistério, pela narrativa de que o salário recebido era apenas um suplemento ao ganho masculino (MACHADO, 2019); e o empobrecimento de carreiras feminilizadas, como a advocacia (BERTOLIN, 2017).

Com o avanço do debate teórico, político e econômico sobre a igualdade entre os sexos, em especial após o final da segunda guerra mundial, consensualizou-se que a desigualdade que desprestigia as mulheres e tudo o que se relaciona com o feminino, não se alinha com os valores democráticos e acarreta perdas para toda a sociedade8.

A academia feminista e vinculada ao debate pela promoção dos direitos humanos tem, principalmente a partir dos anos de 1970, se debruçado na compreensão dos fenômenos sociais da desigualdade de gênero e buscado desenhar conceitos, metodologias e tecnologias sociais que permitam mitigar essa desigualdade.

Entre as autoras que se dedicam a desenvolver o conceito de justiça de gênero e os aportes teóricos que justificam sua relevância na construção de sociedades mais plurais, equânimes e que garantam o bem-estar de todas as pessoas, especialmente, para as mulheres, destaca-se Nancy Fraser (2007), filósofa americana, que defende que a luta por justiça social e igualdade de gênero passa, necessariamente, por políticas de reconhecimento, no âmbito da identidade e de redistribuição, no caráter econômico9.

Entende-se que ao tratar de discriminação de gênero, não há como se avançar sem considerar todas as faces da referida discriminação, fato que impõe a responsabilidade teórica e prática “de desenvolver uma teoria crítica do reconhecimento, que identifique e assuma a defesa somente daquelas versões da política cultural da diferença que possam ser combinadas coerentemente com a política social da igualdade.” (FRASER, 2006, p. 231).

A autora vem discutindo, há pelo menos duas décadas, justiça de gênero, na perspectiva de que a busca por liberdade para trabalhar, o acesso à informação e a paridade salarial são essenciais na desconstrução de parâmetros discriminatórios, mas que se precisa ir além. É indispensável avançar em reconhecimento. O Estado, em nome do desenvolvimento da sociedade e do bem de todas as pessoas, deve se comprometer com ações que promovam relações, de fato, equânimes e justas, o que demanda, em princípio, o reconhecimento de que homens e mulheres são essencialmente detentores dos mesmos direitos, oportunidades, responsabilidades e deveres.

Algunos proponentes de la redistribución igualitaria rechazan de plano la política de reconocimiento; citan el incremento global de la desigualdad, documentado recientemente por las Naciones Unidas, y consideran las reivindicaciones del reconocimiento de la diferencia como “falsa conciencia”, un obstáculo para la consecución de la justicia social. A la inversa, algunos proponentes del reconocimiento desdeñan la política de redistribución; citan el fracaso del igualitarismo económico que prescinde de las diferencias para garantizar la justicia a las minorías y a las mujeres, y consideran la política distributiva como un materialismo pasado de moda que no puede articular ni cuestionar las experiencias clave de injusticia. (FRASER, 2008, p. 84).

Entende-se que há uma gama de injustiças e desigualdades sendo perpetradas, continuamente, as quais diferem entre si; enquanto umas se aproximam do tipo ideal da classe trabalhadora explorada, que vivenciam injustiças distributivas e demandam ações redistributivas de riqueza, outras se alinham ao tipo ideal de identidade marginalizada, que vivenciam as injustiças da discriminação e carecem de ações de reconhecimento (ANDRADE, 2017). Para Fraser (2006, p. 233): “no primeiro caso, a lógica do remédio é acabar com esse negócio de grupo; no segundo caso, ao contrário, trata-se de valorizar o ‘sentido do grupo’, reconhecendo sua especificidade.”

É preciso, pois, combater a injustiça de gênero em duas frentes, a político-econômica e a cultural-simbólica, ou seja, por meio de políticas de redistribuição, de reconhecimento e de representação, pela via de uma política programática que integre o melhor de cada uma das propostas (FRASER, 2008).

De acordo com Andrade (2017, p. 237), analisando as contribuições de Fraser (2008; 2006) “a resposta para essa pretensa incompatibilidade (entre políticas de redistribuição e de reconhecimento) é uma compreensão da justiça de gênero centrada no princípio normativo da paridade de participação ou paridade participatória.” Nas palavras de Fraser (1996, p. 30) “Para que a paridade participativa seja possível, eu afirmo, é necessário, mas não suficiente, estabelecer formas padronizadas de igualdade jurídica formal.”10 (tradução livre).

A justiça de gênero seria, por conseguinte, a compreensão de que por meio da redistribuição, do reconhecimento e da representação paritária se estaria ciente dos desafios a serem enfrentados em prol de vivenciar-se a justiça e a igualdade material.

A teoria defendida por Fraser é trazida para levantar a questão das discriminações positivas, em especial as ações afirmativas pensadas e executadas pelo Estado como um mecanismo de contrabalancear as desigualdades vivenciadas diuturnamente pelas mulheres.

Recortando o debate para o Brasil, a CF\88 obriga que o Estado brasileiro tome parte na mitigação das desigualdades como um todo e entre os sexos especialmente quando afirma que o Estado brasileiro está “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.” (BRASIL, 1988).

Nesse sentido a proposta de Fraser corrobora com os dois exercícios necessários a transformação da sociedade: garantir o reconhecimento das mulheres na sua multiplicidade, assim como redistribuir o poder e os recursos a ponto que as mulheres possam participar em pé de igualdade das decisões.

No âmbito das relações jurídico-formais é possível afirmar que, no Brasil, os avanços foram inúmeros e, por agora, parecem consolidados. Contudo, verificam-se dois desafios: 1) é inafastável uma constante vigilância da sociedade civil organizada para que não haja retrocessos legais, inerente à construção de uma estrutura de defesa dos Direitos Humanos, que são, de fato, um processo de luta e resistência contínuo; 2) inexiste no Brasil uma política de Estado que albergue ações e práticas voltadas às três esferas do poder público (município, Estado e União), imiscuída nas variadas camadas da educação formal (ensino fundamental, médio e superior), que perpasse os atendimentos especializados de saúde da mulher11, bem como as relações de trabalho e de ocupação dos espaços públicos.

No que se refere ao segundo ponto, a extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres – SPM é reflexo da dificuldade de manterem-se as iniciativas comprometidas com a superação da desigualdade de gênero e com a promoção da justiça de gênero. O esforço dos governos federais pós-constituinte, em especial a partir dos anos 2000, em consolidar uma estrutura federal capaz de articular, desenhar e implementar políticas públicas para as mulheres - que resultou em ganhos inquestionáveis à gestão pública, a exemplo do pacto nacional pelo enfrentamento à violência contra as mulheres12, o qual foi diretamente afetado a partir do desmantelamento das políticas públicas imposto pelo governo Temer - não seguiu avançando: “o padrão de políticas públicas constituído nas últimas três décadas de experimentação democrática aponta para uma profunda inflexão impulsionada pelo retorno do receituário neoliberal ao país.” (POCHMANN, 2017, p. 324).

No início de 2019, o governo Bolsonaro constituiu o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos englobando nove secretarias dos mais diversos segmentos - racial, idoso, juventude, família, mulheres13 etc. - consolidando a ação do seu antecessor em retirar o protagonismo das mulheres na busca por uma sociedade mais igual entre os sexos.

2.1 Fundamentação jurídico-normativa das políticas de ação afirmativa para a proteção dos direitos das mulheres

A fundamentação jurídica das ações afirmativas arrima-se no direito fundamental à igualdade, um pilar da democracia (pós duas grandes guerras) e dos direitos humanos.

A Declaração de Direitos Humanos de 1948, elaborada e publicada sob a influência dos horrores da Segunda Guerra Mundial, consolidou os direitos humanos como universais: de todos e para todos. O direito internacional, naquele momento, queria garantir que nunca mais um Estado se achasse no direito de legalizar a desigualdade, a discriminação, e/ou o extermínio de determinado(s) grupo(s) social(is). Neste escopo, as reflexões se traduziram na percepção de que se praticava violações específicas de direitos humanos contra determinados grupos, como negros, mulheres, pessoas com deficiência etc.

Diante disso, em 1965, as Nações Unidas aprovaram a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, reconhecendo a necessidade de uma proteção específica contra o racismo.

Em 1979, a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher – CEDAW - transformou-se em um relevante tratado dos direitos da mulher, principalmente no âmbito da conquista da igualdade, como explica Silvia Pimentel (2008, p. 17-18):

A convenção vai além das garantias de igualdade e idêntica proteção, viabilizada por instrumentos legais vigentes, estipulando medidas para o alcance da igualdade entre homens e mulheres, independentemente de seu estado civil, em todos os aspectos da vida política, econômica, social e cultural. Os Estados-partes têm o dever de eliminar a discriminação contra a mulher através da adoção de medidas legais, políticas e programáticas.

O conteúdo dos dispositivos da CEDAW passou a ser um paradigma nas discussões sobre a concretização dos direitos humanos das mulheres. Os Estados que ratificaram a convenção se obrigaram não apenas a não discriminar formalmente as mulheres, mas a promover a igualdade por meio de ações estatais. O artigo 1° da convenção define discriminação contra mulher14:

[...] toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. (ONU,1979).

O artigo 2°, ao enumerar os compromissos dos Estados com a política destinada a eliminar todas as formas de discriminação contra a mulher, obrigou o ente estatal a consagrar o princípio da igualdade entre homens e mulheres, reafirmando o compromisso com a igualdade formal, por meio de legislação apropriada; da obrigação de adotar medidas legislativas que proíbam a discriminação contra a mulher; do impedimento que órgãos e agentes do Estado incorram em atos de discriminação; e da responsabilidade de revogar toda e qualquer lei penal que constitua discriminação contra a mulher.

O artigo 4°, por sua vez, autorizou medidas especiais de caráter temporário a fim de acelerar a igualdade de fato e autorizou os Estados a tomarem medidas positivas para efetivar a igualdade e acabar com a discriminação.

O Brasil ratificou a CEDAW em 1984, com reservas aos artigos 15, parágrafo 4°, e artigo 16, parágrafo 1°, alíneas a, b, g e h, e ao artigo 29.

As ressalvas substanciais foram as dos artigos 15 e 16. O artigo 15, parágrafo 4° garantia às mulheres e aos homens a liberdade de ir e vir e, em 1984, saindo de uma longa ditadura, o Brasil ainda não estava “preparado” para garantir a homens e mulheres esse direito15: “Os Estados-Partes concederão ao homem e à mulher os mesmos direitos no que respeita à legislação relativa ao direito das pessoas à liberdade de movimento e à liberdade de escolha de residência e domicílio”.

O artigo 16, parágrafo 1°, tratava do direito de homens e mulheres referente à família e ao casamento:

Os Estados-Partes adotarão todas as medidas adequadas para eliminar a discriminação contra a mulher em todos os assuntos relativos ao casamento e às relações familiares, em particular, com base na igualdade entre homens e mulheres, assegurarão:

a) O mesmo direito de contrair matrimônio;

b) O mesmo direto de escolher livremente o cônjuge e de contrair matrimônio somente com livre e pleno consentimento;

c) Os mesmos diretos e responsabilidades durante o casamento e por ocasião de sua dissolução;

d) Os mesmos direitos e responsabilidades como pais, qualquer que seja seu estado civil, em matérias pertinentes aos filhos. Em todos os casos, os interesses dos filhos serão a consideração primordial;

e) Os mesmos direitos de decidir livre e responsavelmente sobre o número de seus filhos e sobre o intervalo entre os nascimentos e a ter acesso à informação, à educação e aos meios que lhes permitam exercer esses direitos;

f) Os mesmos direitos e responsabilidades com respeito à tutela, curatela, guarda e adoção dos filhos, ou institutos análogos, quando esses conceitos existirem na legislação nacional. Em todos os casos, os interesses dos filhos serão a consideração primordial;

g) Os mesmos direitos pessoais como marido e mulher, inclusive o direito de escolher sobrenome, profissão e ocupação;

h) Os mesmos direitos a ambos os cônjuges em matéria de propriedade, aquisição, gestão, administração, gozo e disposição dos bens, tanto a título gratuito quanto a título oneroso. (ONU,1979).

Tais direitos ainda não estavam constituídos no ordenamento jurídico interno do Brasil em 1984. A família brasileira ainda era regida pelo pátrio poder, o homem ainda era, legalmente, o chefe da família. Somente após a F\88 é que a igualdade entre homens e mulheres foi garantida pela norma constitucional.

Flavia Piovesan (2006, p. 48), quando analisa as ressalvas à CEDAW aponta que:

[...] no plano dos direitos humanos, essa foi a Convenção que mais recebeu reservas por parte dos estados signatários, especialmente no que se refere à igualdade entre homens e mulheres na família. Tais ressalvas foram justificadas com base em argumentos de ordem religiosa, cultural ou mesmo legal [...] Isso reforça o quanto a implementação dos direitos humanos das mulheres está condicionada à dicotomia entre o papel desempenhado por elas na vida pública e privada, que, em muitas sociedades, fica restrito ao espaço da casa e da família.

Em 1994, o Brasil retirou as reservas relativas aos artigos 15 e 16, restando apenas a reserva ao artigo 2916.

A Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial e a CEDAW ofertaram aos países signatários um caminho para instituir nos seus ordenamentos jurídicos internos medidas estatais de discriminação positiva: as ações afirmativas.

No Brasil, as ações afirmativas têm fundamento constitucional, pois a igualdade pretendida na CF\88 engloba tanto a formal como a material. Inúmeros artigos garantem tratamentos especiais às mulheres (v.g. art. 7º, XX17, da CF/88, ao autorizar incentivos específicos à proteção da mulher no mercado de trabalho, clarifica a intenção do legislador constituinte de impor ao Estado uma política de promoção de igualdade para além da proibição da discriminação), às pessoas com deficiência, às populações indígenas, aos trabalhadores rurais.18

A Lei n. 9.100/95 instituiu a política de cotas eleitorais para as mulheres, nas chapas dos partidos políticos, e trouxe à tona um debate mais abrangente e polêmico sobre aplicação de ação afirmativa no Brasil19. Nas palavras de Joaquim Barbosa Gomes (2001, p. 142): “As Leis 9100/95 e 9504/97 tiveram a virtude de lançar o debate em torno das ações afirmativas e, sobretudo, de tornar evidente a necessidade premente de se implementar de maneira efetiva a isonomia em matéria de gênero em nosso país20.” Ao mesmo tempo, sabe-se que referidos ganhos não saem impune, e a Lei n. 9504/97 trouxe o que se chamou de cláusula de escape, que mitigou o efeito positivo das cotas, nas palavras de Roberta Laena Costa Jucá (2020, p. 133): “[...] ao mesmo tempo em que se aumentou o percentual mínimo de candidaturas por sexo de 20% para 30%, a Lei n. 9504/97 também elevou o percentual máximo de registros de candidatos, de 120% para 150% [...] em relação ao número de vagas a preencher”, alteração que finda por privilegiar a presença masculina, pois significou um aumento no número de vagas para os homens.

Em 2009 foi aprovada a “minirreforma eleitoral” que modificou o art.10, §3°, da Lei Eleitoral e obrigou que os partidos políticos ou coligações preenchessem suas candidaturas legislativas com no mínimo 30% e no máximo 70% de candidatos de cada sexo. Tal mudança forçou os partidos políticos a pensar estratégias de angariar candidatas, pois caso contrário seria obrigado a diminuir o número de candidatos até atingir a proporção exigida por lei.

Em 2015, novamente no processo de reformas da legislação eleitoral, tentou-se aprovar uma regra de reservas de cadeiras para as mulheres, em proporções baixas e de efetivação paulatina, contudo a proposta não foi aceita pelos deputados, que na referida legislação representavam 91,1% (TSE, 2019) dos congressistas da Câmara dos Deputados.

Apesar da derrota legislativa, o Tribunal Superior Eleitoral, em 2018, determinou que, pelo menos, 30% do Fundo Especial de Financiamento de Campanha para o financiamento público das campanhas eleitorais fosse destinado às candidaturas de mulheres, assim como, pelo menos, 30% do tempo de propaganda eleitoral gratuita em rádios e televisões, equiparando as porcentagens da lei de cotas eleitorais (TSE, 2019). A ministra Rosa Weber, quando desse julgamento ponderou:

A efetividade da garantia do percentual mínimo de candidaturas por gênero, estabelecida no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97 – singelo passo à modificação do quadro de sub-representação feminina no campo político –, conclama a participação ativa da Justiça Eleitoral, presente largo campo de amadurecimento da democracia brasileira a percorrer visando à implementação de ações afirmativas que priorizem e impulsionem a voz feminina na política brasileira, como sói acontecer nos países com maior índice de desenvolvimento humano (IDH), detentores de considerável representação feminina, consoante estudos realizados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e compilados pela União Interparlamentar (Inter-Parliamentary Union) (ADI 5617). (TSE, 2019).

Em 2019, foi apresentado no Senado Federal, o projeto de Lei n. 2235, de autoria do Senador Luiz do Carmo, que propunha a modificação do código eleitoral para reservar “ao menos trinta por cento das cadeiras de Deputado Federal, Deputado Estadual, Deputado Distrital e Vereador para cada um dos sexos e reservar, quando da renovação de dois terços do Senado Federal, uma vaga para candidaturas masculinas e outra vaga para candidaturas femininas.” (BRASIL, 2019). Na página oficial do Senado Federal, onde se publiciza a tramitação do projeto de lei, 86% das pessoas que votaram na enquete apoiavam a iniciativa (BRASIL, 2019).

O direito brasileiro, em diversas oportunidades, afirmou e reafirmou que as políticas de ações afirmativas são mecanismos legais, legítimos e necessários para efetivar as obrigações constitucionais, e no âmbito da promoção da igualdade entre homens e mulheres, o espaço político ainda representa terreno especialmente desigual e as políticas para mitigar essa realidade fazem parte das ferramentas utilizadas nessa mitigação.

Os resultados das ações afirmativas eleitorais podem não ter produzido, ainda, o resultado desejado21 na ampliação da participação política das mulheres, contudo, as políticas implementadas, as legislações aprovadas, os debates travados solidificaram a compreensão de que faz parte das obrigações estatais buscar saídas para a desigualdade através de ações; da mesma forma e relevância oportuniza a pressão por mudanças nas agendas políticas e na divisão de recursos e investimentos.

Nos Estados contemporâneos, a exemplo do Brasil, o recurso ao qual o Estado tem acesso é sempre menor do que a demanda social, sendo uma constante ter que decidir onde e como alocar o recurso e de melhor modo, a fim de se criar, de forma menos dispendiosa, a melhor qualidade de vida possível para o maior número de pessoas possível. É necessário, pois, escolher a ação que irá impactar de forma mais transformadora o grupo social beneficiário a fim que em menor tempo esse grupo não mais precise de tal ação e seja possível deslocar aquele recurso para outra ação ou mesmo destiná-lo para outro grupo.

O escopo da ação afirmativa propõe o agir para que as diferenças que impedem a igualdade de oportunidades desapareçam ou, no mínimo, diminuam. Já a forma como essa ação ocorre pode se dar de diversos modos e em diversos campos, não havendo modelo ou prática a serem reproduzidos acriticamente. Moehlecke (2002, p. 199) explica: “Ação afirmativa assumiu formas como: ações voluntárias, de caráter obrigatório, ou uma estratégia mista; programas governamentais ou privados; leis e orientações a partir de decisões jurídicas ou agências de fomento e regulação.” De acordo com Lewandowski (2012, p. 9):

Dentre as diversas modalidades de ações afirmativas de caráter transitório, empregadas nos distintos países destacam-se: (i) a consideração de critério de raça, gênero ou outro aspecto que caracteriza certo grupo minoritário para promover a sua integração social; (ii) o afastamento de requisitos de antiguidade para a permanência ou promoção de membros de categorias socialmente dominantes em determinados ambientes profissionais (iii) a definição de distritos eleitorais para o fortalecimento de minorias; e (iv) o estabelecimento de cotas ou reserva de vagas para integrantes de setores marginalizados.

Moehlecke (2002, p. 199) esclarece ainda:

A ação afirmativa também envolveu práticas que assumiram desenhos diferentes. O mais conhecido é o sistema de cotas, que consiste em estabelecer um determinado número ou percentual a ser ocupado em área especifica por grupo(s) definidos(s), o que pode ocorrer de maneira proporcional ou não, e de forma mais ou menos flexível. Existem ainda as taxas e metas, que seriam basicamente um parâmetro estabelecido para a mensuração de progressos obtidos em relação aos objetivos propostos, e os cronogramas, como etapas a serem observadas em um planejamento a médico prazo.

Seja qual for o modelo de ação afirmativa implantada, o que está claro é que o ordenamento jurídico brasileiro acolheu a adoção de tais políticas entendendo que as ações afirmativas são meios capazes de auxiliar na construção de uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais plural.

3 Conclusão

O Estado Democrático de Direito exige que os governos executem ações para efetivar os direitos fundamentais e manutenção da democracia. Essas ações são as políticas públicas desenvolvidas pelos governos a partir dos compromissos legais e da agenda política.

Após a segunda guerra mundial a compreensão de que a igualdade formal não resultava em efetiva igualdade ganhou corpo entre o pensamento sociopolítico. Reconheceu-se que grupos socialmente vulneráveis têm o direito de gozar dos mesmos direitos que seus concidadãos privilegiados, e é papel do Estado buscar mecanismos para essa efetivação.

Nessa esteira nascem as ações afirmativas, uma vertente das políticas públicas designada a diminuir as desigualdades através da priorização de grupos sociais vulneráveis.

No Brasil, a legitimação constitucional das ações afirmativas nasce com a Constituição Cidadã e o retorno ao sistema democrático, assim como se positiva, finalmente, a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações.

O direito à igualdade de gênero alberga o direito à igualdade em todas as esferas: econômica, social e política, e a Constituição Federal de 1988 inaugurou uma ordem político jurídica que arrima iniciativas voltadas à efetivação da igualdade material.

As mulheres são mais da metade da sociedade brasileira, portanto, parte legítima para participar de forma majoritária das decisões do país. Entretanto a realidade é a ínfima participação feminina nas instâncias de poder, em especial nos legislativos brasileiros.

A ausência das mulheres na produção e modificação da legislação brasileira evidencia o enraizamento do patriarcado no poder brasileiro e põe em xeque os preceitos constitucionais de construir uma sociedade fraterna, justa e solidária.

Aliada à insuficiente participação política das mulheres remanesce a histórica divisão sexual do trabalho que aloca, prioritariamente, as mulheres em profissões de cuidado e de menor relevância social e retorno econômico e os homens nas atividades e profissões de maior envergadura, política, econômica e social, cenário totalmente desconectado das premissas constitucionais nacionais que pugnam pela isonomia entre todas as pessoas.

A partir do compromisso constitucional com o Estado democrático destinado a assegurar a igualdade e a justiça, legitimam-se as políticas públicas que visam oportunizar aos grupos desfavorecidos condições mais equânimes de participação social, seja no âmbito do trabalho, do acesso a serviços e/ou da inserção política, o que denominamos de ações afirmativas.

No que tange às mulheres, o desafio não é de apenas garantir a presença delas nos espaços de poder, mas incluí-las de forma paritária, retirá-las de nichos considerados femininos, como os assuntos de cuidados, das comissões de mulheres, de família, de maternidade e tê-las, substancialmente, em todos os espaços de decisão.

Para isso faz-se necessária uma política de cotas que desestimule as candidaturas fictícias, que apenas servem aos interesses não republicanos e antidemocráticos, ao mesmo tempo em que o Estado brasileiro produza políticas eficazes para equilibrar as oportunidades de acesso ao poder tanto na esfera pública quanto privada.

Na mesma medida, a diferença salarial, não justificada por critérios objetivos, precisa ser denunciada e combatida, criando-se, por exemplo, rankings públicos e oficiais das empresas que aboliram essa prática.

As discussões sobre justiça de gênero auxiliam na compreensão desta realidade e na construção de possibilidades para superar o abismo entre homens e mulheres que ainda afere-se na sociedade brasileira.

Por outro lado, as ações afirmativas, no seio de uma sociedade historicamente desigual, que impõe às mulheres, de todas as etnias e classes sociais, obstáculos maiores do que aos homens em condição semelhante, são instrumentos importantes para promoção de uma sociedade efetivamente democrática.

Em que pesem as resistências acerca das políticas públicas, que em sua gênese alberguem as premissas das ações afirmativas, entende-se, nas construções teóricas de justiça de gênero e das ações afirmativas acima delineadas, que ambas são fundamentos e ferramentas hábeis e úteis a parametrizar a ação do Estado e também de particulares comprometidos com a mitigação de desigualdades, entre elas as forjadas nas relações entre homens e mulheres.

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1 Doutora e Mestre em Direito Político e Econômico; Professora Permanente do Programa de Mestrado Profissional em Direito e do Programa em Direito, Justiça e Desenvolvimento do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Coordenadora do curso de Direito do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em São Paulo; R. Itapeva, 538 - Bela Vista, São Paulo - SP, 01332-000; https://orcid.org/0000-0003-1473-1042; monica.machado@idp.edu.br;

2 Pós-doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie 2016/2019 (PNPD-CAPES). Doutora (PROSUP-PRODAD) e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR (2016). Professora do Mestrado Acadêmico e da graduação em Direito do Centro Universitário Christus - UNICHRISTUS. Professora da Fundação Getúlio Vargas - FGVLaw São Paulo; Av. Dom Luís, 911 - Meireles, Fortaleza - CE, 60160-230; http://orcid.org/0000-0003-3243-480X; denise.andrade@unichristus.edu.br;

3 A primeira constituição brasileira, a Constituição Imperial, em 1824, apesar de não contar com a expressão todos iguais perante a Lei, garantia, em seu art.179, XII que “A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos de cada um.” Tal determinação, apesar de não igualar todos, tendo em vista o sistema de poder imperial, aponta que as regras são as mesmas para todos aqueles submetidos ao poder do império.

4 Tradução livre das autoras: Políticas Públicas são as atividades realizadas pelos governos, seja de forma direta ou através de agentes, que tem influência na vida dos cidadãos.

5 A citação referenciada é uma tradução livre do seguinte trecho: “Positive discrimination is the specific recognition of certain characteristics (typically sex, race/ethnicity, disability, religion, sexual orientation and age) considered to have disadvantaged a group of people through no direct fault of their own. It brings consideration of the disadvantage into the formal decision-making process by making these characteristics legitimate criteria for evaluating candidates.” (NOON, 2010, p. 729).

6 Texto original: “the general definition of affirmative action makes clear that the philosophical basis of affirmative action is wholly consistent with seeing affirmative action as a non-passive way to assure that people from all ethnic background are fairly.

7 Dados da desigualdade no Brasil: Segundo o IBGE (2018, p. 28), “em 2017, os brancos ganhavam em média 72,5% mais do que pretos ou pardos e os homens ganhavam, em média, 29,7% mais que as mulheres.” Além disso “as mulheres eram maioria nas três componentes da subutilização da força de trabalho, chegando a representar 60,1% da força de trabalho potencial.” (IBGE, 2018, p. 40). Contudo, segundo o Censo do Ensino Superior, em 2017 as mulheres representavam 55,2% dos ingressantes nos cursos superiores, 57% dos matriculados e 61,1% dos concluintes (MEC; INEP, 2018).

8 As Nações Unidas, em 1995, na quarta conferência mundial das mulheres, em Pequim, na China, produziu um tratado internacional, com 189 países signatários, em que afirmou que os direitos das mulheres eram direitos humanos e que os Estados e a comunidade internacional têm obrigação de implementar um plano de ação para combater as desigualdades entre homens e mulheres (ONU MULHERES, 2022).

9 Ressalta-se que várias autoras da América Latina discutem desigualdade de gênero e seus efeitos, as quais desenvolvem, em vasta obra, uma narrativa viva e solidificada na vivência e no pertencimento, dentre as quais aqui se destaca as brasileiras Flávia Biroli (2018), Vanessa Berner (2018) e Márcia Tiburi (2015). Nancy Fraser foi indicada como uma referência explícita, por sua dedicação direta à redistribuição que dialoga diretamente com a perspectiva de políticas públicas desenvolvida nesse artigo, bem como pela limitação de tratar sobre diversas autoras robustas em um único artigo.

10 Texto original: “For participatory parity to be possible, I claim, it is necessary but not sufficient to establish standard forms of formal legal equality.”

11 Destaque-se a Casa da Mulher brasileira como uma tentativa de agregar as 3 esferas do poder público brasileiro para viabilizar um sistema coordenado de medidas, equipamentos e instituições apto a contribuir diretamente com o enfrentamento à desigualdade de gênero, com foco nas mulheres vítimas de violência. Desta forma, remanesce a necessidade de uma política de estado que se ocupe sim com as mulheres vítimas de violência, mas também se preocupe com as relações de trabalho, a ocupação de espaços públicos e de tomada de decisão por mulheres.

12 O Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher foi lançado em agosto de 2007, como parte da Agenda Social do Governo Federal. Consiste em um acordo federativo entre o governo federal, os governos dos estados e dos municípios brasileiros para o planejamento de ações que consolidassem a Política Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres por meio da implementação de políticas públicas integradas em todo território nacional (SPM, 2011).

13 DECRETO n. 9.673, de 2 de janeiro de 2019.

14 Disponível em: www.observatoriodegenero.gov.br/eixo/internacional/instancias-regionais/o-comite-cedaw-2013-comite-para-a-elimicacao-de-todas-as-formas-de-discriminacao-contra-a-mulher. Acesso em: 01 set. 2013.

15 CEDAW, Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, disponível em http://monitoramentocedaw.com.br/documentos/cedaw. Acesso em: 14. mar. 2014.

16 Ver, neste sentido: www.observatoriodegenero.gov.br/eixo/internacional/instancias-regionais/o-comite-cedaw-2013-comite-para-a-elimicacao-de-todas-as-formas-de-discriminacao-contra-a-mulher. Acesso em: 01set. 2013.

17 Art. 7o: São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XX - proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;

18 Como exemplo de ações afirmativas positivadas na Constituição Federal, podemos apontar o art. 37, VIII, que determina que a lei reservará um percentual dos cargos e empregos públicos para deficientes; e o art.170, VII, que determina que a ordem econômica terá entre os seus princípios a redução das desigualdades regionais e sociais.

19 No âmbito infraconstitucional, a primeira lei que estabeleceu uma ação afirmativa foi a Lei n° 8213/91, que instituiu os planos de benefício da previdência social e, em seu artigo 93, determinou a obrigatoriedade da contratação de pessoas com deficiência por empresas com mais de 100 funcionários; todavia, a lei não causou grande debate acerca da sua legitimidade, eficácia ou mesmo legalidade.

20 Salientamos que foi por meio das cotas nas universidades, que a ação afirmativa se transformou em um tema nacional e um assunto do grande público. A destinação de vaga a alunos oriundos de escolas públicas e alunos negros e pardos em universidades públicas obteve repercussão nacional e impôs, pela primeira vez, que grupos socialmente privilegiados fossem obrigados a abrir mão de algo em prol de grupos até então desfavorecidos. Sem a intenção de aprofundar o tema das cotas na educação, por não ser o objeto deste artigo, ressaltamos que os resultados estatísticos demonstram que a inclusão social ocorrida pela política de cotas nas universidades públicas tem tido, ao menos, algumas experiências exitosas. A conclusão de Delcele Queiroz e Jucélio dos Santos (2007, p. 44), que analisaram os dados dos alunos cotistas da Universidade Federal da Bahia em 2006, foi: “Ao contrário da expectativa daqueles que se mostravam resistentes à implantação do referido sistema, temendo uma desqualificação do ensino, pelo ingresso de estudantes supostamente despreparados na Universidade, o exame do desempenho dos estudantes que ingressaram na UFBA pelo sistema de cotas revela resultados bastante animadores, nos cursos das diversas áreas de conhecimento.” Apesar do embate social, entendemos que os resultados das cotas têm sido expressivos que, em 2012, o governo federal promulgou a Lei 12.711, dispondo sobre uma política nacional de cotas nas universidades federais para alunos oriundos de escolas públicas e que contempla pretos, pardos e indígenas.

21 O Brasil configura na 142° colocação entre 187 países no ranking de presença de mulheres no parlamento. Ver dados da União Intertparlamentar, Disponível em: https://data.ipu.org/women-ranking?month=10&year=2021. Acesso em: 13 nov. 2021.