https://doi.org/10.18593/ejjl.27270

A concepção de trabalho decente é suscetível à apropriação decolonial? Reflexões a partir das críticas ao conceito moderno de desenvolvimento

Is the conception of decent work susceptible to decolonial appropriation? Reflections from the criticism of the modern concept of development

Silvio Beltramelli Neto1

Bianca Braga Menacho2

Resumo: A partir de um sumário do processo histórico da construção e das críticas lançadas ao conceito moderno de desenvolvimento, tal como disseminado no campo da cooperação internacional, o artigo pretende refletir sobre como os pressupostos dos pensamentos críticos pós-desenvolvimentista e decolonial podem se aplicar à atuação da Organização Internacional do Trabalho, sobretudo no que se refere à promoção do Trabalho Decente – concepção com base teórica e aspirações marcadamente associadas à noção corrente de desenvolvimento sustentável – para, então, responder ao seguinte problema: a concepção de Trabalho Decente é suscetível de apropriação decolonial? A resposta positiva resulta de um estudo teórico exploratório aplicado, com apontamentos propositivos, construído com o emprego de procedimento metodológico de análise bibliográfica qualitativa.

Palavras-chave: OIT. Trabalho Decente. Desenvolvimento. Decolonialidade. Pós-desenvolvimentismo.

Abstract: Guided by an abridgement of the theory of historical process of construction and critique of the modern concept of development, as disseminated in the field of international cooperation, the article aims to reflect on how the assumptions of critical post-developmental and decolonial thinking can be applied to the work of the International Labor Organization, especially with regard to the promotion of Decent Work – a concept based on theory and aspirations markedly associated with the current notion of sustainable development – to then respond to the following research problem: is the conception of Decent Work susceptible to decolonial appropriation? The affirmative answer results from an applied theoretical exploratory study, that led us to draw propositional notes on the issue, through the methodological approach of qualitative bibliographic analysis.

Keywords: ILO. Decent Work. Development. Decoloniality. Post-development.

Recebido em 9 de fevereiro de 2021

Avaliado em 24 de março de 2021 (AVALIADOR A)

Avaliado em 27 de maio de 2021 (AVALIADOR B)

Aceito em 27 de maio de 2021

1 Introdução

Com o intuito de apresentar-se como alternativa à epistemologia e os standards do pensamento político-econômico-social eurocêntrico, o movimento de ideias da decolonialidade parte de uma ruptura epistemológica que pretende englobar a realidade pós-colonial dos países latino-americanos, asiáticos, árabes e africanos, sem deixar de incluir, igualmente, as falas feministas, indígenas, negras, bem como as de outros grupos econômica e culturalmente vulneráveis.

Segundo os pensadores decoloniais, desvincular-se do pensamento colonial permite enxergar diferentes subjetividades que ainda hoje sofrem e reagem às marcas coloniais, oportunizando, a partir da consideração de poderes, seres e saberes até então abafados, a construção do caminho intelectual e do agir orientados à superação do modo de pensar dominante como condição para a emancipação do ser humano oprimido.

No contexto de uma perspectiva colonial, e como seu produto, a noção de desenvolvimento é originalmente forjada, no pós-Guerras Mundiais do século XX, de modo associado ao progresso econômico de nações, segundo parâmetros que atendam aos propósitos de acumulação típicos do modo de produção capitalista, desconsiderando perspectivas alternativas acerca de conteúdo e finalidades mais consentâneas com um conceito não opressor do que deva ser desenvolvimento, enquanto movimento socialmente progressista.

Confrontada com a crua realidade do aprofundamento da desigualdade social, a concepção economicista do desenvolvimento passou, nas décadas subsequentes aos anos 1940, por uma constante reconstrução, orientada à ampliação das liberdades materiais (e não meramente formais) dos indivíduos, cerne das propostas de desenvolvimento humano e desenvolvimento sustentável, atualmente prevalecentes no discurso, nas normas e nos programas de cooperação internacional, essencialmente em função das atividades do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Foi no contexto deste ideário desenvolvimentista mais recente que, em 1999, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) adotou a concepção de Trabalho Decente como eixo central de sua atuação remodelada, mas ainda dirigida, como desde sempre, à regulação internacional da tensão capital versus trabalho e ao fomento de agendas de políticas públicas nacionais baseadas em objetivos estratégicos pré-determinados, que pretensamente sirvam como travas à super exploração da mão de obra.

Todavia, o último quarto do século XX testemunhou, dentro do pensamento crítico do desenvolvimento, a afirmação da desconfiança em relação à própria pertinência temporal da concepção, aflorada no dissenso entre “desenvolvimentistas” e “pós-desenvolvimentistas”, debate que, necessariamente, apresenta aspectos correlatos com as críticas decoloniais dirigidas ao conceito vigente de desenvolvimento, o qual, a despeito das remodelações experimentadas, permanece, aos olhos decoloniais, vivamente colonialista.

É, portanto, neste cenário controverso a respeito do conteúdo e da pertinência da noção corrente de desenvolvimento e a partir do estabelecimento de um paralelo entre a divergência entre desenvolvimentistas e pós-desenvolvimentistas e a epistemologia decolonial, que este escrito formula percepções acerca do que a criticidade dessas reflexões pode significar para os propósitos da atuação da OIT, em especial quanto à promoção do Trabalho Decente. O problema de pesquisa que anima a reflexão posta é: a concepção de Trabalho Decente é susceptível de apropriação decolonial? Conquanto a resposta positiva apresentada não pretenda ser definitiva ou exaustiva em termos argumentativos, busca-se contribuir para um pensar e agir combativos da coisificação do ser humano que vende a força de trabalho que se mostrem sensíveis às vicissitudes coloniais que seguem assolando nações que não se enquadram no padrão hegemônico de desenvolvimento.

Cuida-se, pois, de um estudo teórico exploratório aplicado, com apontamentos propositivos, construído com o emprego de procedimento metodológico de análise bibliográfica qualitativa.

2 Do desenvolvimento econômico ao desenvolvimento sustentável: a trajetória de um conceito premido pela desigualdade social e pela degradação ambiental

O conceito de desenvolvimento tem sido amplamente discutido pelas mais diversas áreas do conhecimento das ciências humanos, fato potencializado pela multidimensionalidade e multifuncionalidade da ideia de que se trata (SACHS, 1998, p. 157).

Associado à necessidade de encontrar respostas inovadoras para os problemas de desemprego, pobreza e exclusão social e de agravamento das desigualdades, provocados pela sucessão de crises econômicas dos anos de 1970 e 1980 e pelos efeitos do neoliberalismo, o modo de pensar o desenvolvimento foi constantemente reformulado ao longo do século XX e conquistou acréscimos, passando a ser encarado como um processo complexo de mudanças e transformações de ordem econômica, política, cultural, sustentável e, principalmente, humana e social (SACHS, 1998, p. 157).

Originalmente, a noção de desenvolvimento se estabelece, no pós-Guerras Mundiais do século XX, por oposição à situação econômica deficitária de países não hegemônicos, à época classificados como “subdesenvolvidos” ou de “Terceiro Mundo”, o que contribuiu, decisivamente, para um conteúdo eminentemente econômico do desenvolvimentismo. Por conseguinte, a agenda para o desenvolvimento esteve unicamente associada ao dito paradigma da modernização3, orientado ao incremento da industrialização, por sua vez buscada segundo diretrizes econômicas, políticas, sociológicas e até psicológicas típicas dos países industrializados.

O tema do desenvolvimento chega à cooperação internacional pelas mãos da Organização das Nações Unidas (ONU), partir de 1965, por ocasião da criação do PNUD, deliberada por Estados reunidos em Assembleia Geral. Conhecida como a Primeira Década das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o período dos anos 1960 foi de cooperação internacional voltada à disseminação de políticas de industrialização entre nações subdesenvolvidas, dirigidas e monitoradas por indicadores de crescimento econômico (Produto Interno Bruto e renda per capita), modelo de conduta que se perpetuou pelas décadas seguintes.

Na esteira das preocupações denunciadas no relatório The Limits to Growth produzido, em 1972, pelos estudiosos do famoso “Clube de Roma”, a Conferência de Estocolmo ou Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, também de 1972, marca o início da Segunda Década das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que encampa a crescente preocupação ambiental e social como elementos a serem considerados no telos do desenvolvimento, na linha do que a realidade dos países do chamado Terceiro Mundo reclamava. Nesta esteira, governos, agentes privados, academia e sociedade civil são chamados à responsabilidade por ações integradas que mirem crescimento econômico (sustentável, equitativo e inclusivo), inclusão social (erradicando a pobreza em todas as suas dimensões) e proteção ao meio ambiente.

Anos depois, em 1986, a tendência de ampliação da noção em análise se confirma com a aprovação pela Assembleia Geral da ONU da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, com a qual se estabeleceu a pessoa humana como sujeito central do desenvolvimento, posto como direito humano de conteúdo multidimensional, uma vez que o documento reconhece que a ideia de desenvolvimento conjuga desenvolvimentos, quais sejam, econômico, social e cultural, sempre em contexto democrático.

Resultado deste itinerário de descolamento do economicismo em direção a uma ideia desenvolvimentista mais social e ecologicamente engajada, a expressão “desenvolvimento sustentável” viria a se consagrada, internacionalmente, na Terceira Década das Nações Unidas para o Desenvolvimento, na esteira da repercussão do relatório Our Common Future (ou “Relatório Brundtland”), de 1987, redigido pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, instituída pela ONU para estudo do tema. Tal relatório amplificou as críticas predominantes sobre a incompatibilidade entre a proposta de desenvolvimento economicista, de um lado, e a preservação dos recursos naturais e o objetivo de expansão da justiça social, de outro, lançando luzes para a necessidade de se pensar o desenvolvimento considerando-se as gerações futuras.

Teorizando, de modo ampliativo, o alcance do desenvolvimento sustentável, Sachs (1993) aponta cinco dimensões de sustentabilidade dos sistemas econômicos que devem ser observadas para possibilitar o desenvolvimento sustentável: social, econômica, ecológica, espacial e cultural. A sustentabilidade social está voltada para a diminuição da desigualdade social, melhorando os níveis de distribuição de renda. A sustentabilidade ecológica objetiva proteção do meio ambiente, preservando-o para que não seja comprometida a oferta dos recursos naturais necessários à sobrevivência humana. Já a sustentabilidade espacial refere-se tanto ao tratamento equilibrado da ocupação rural e urbana, como da eficaz distribuição territorial das atividades econômicas e assentamentos humanos. Por fim, a sustentabilidade cultural concerne à alteração nos modos de pensar das sociedades, para que se voltem às questões ambientais.

O exame da trajetória do conceito de desenvolvimento, desde o economicista até o sustentável, revela gradativo deslocamento do vetor central da concepção sob análise, que deixa de ser o crescimento econômico pela industrialização, passando à preservação ambiental e à igualdade material, conferindo ao bem-estar das pessoas o posto de essência da promoção do desenvolvimento. Certa proposta teórica ganhou destaque nessa transição da ode à economia para a centralidade do bem-estar por haver protagonizado as ações do PNUD, no final do século XX: trata-se do pensamento do economista e filósofo indiano Amartya Sen.

O pensamento seniano se constrói em três etapas muito claras (GARRIDO, 2008, p. 33-35). Parte de forte crítica à racionalidade econômica que incita a miséria (anos 1960), passa a propostas de conceituação e medição de níveis de pobreza e fome (anos 1970) até chegar a proposições filosóficas sobre ética na economia e justiça (anos 1980). Resulta dessa miríade de reflexões a teoria das capacidades (capability aproacch) como substrato da ideia de desenvolvimento enquanto expansão de liberdades e do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) como ferramenta de mensuração dos níveis de bem-estar.

A teoria das capacidades é tecida pelo alinhavar de certas categorias conceituais. Os “intitulamentos” (entitlements) correspondem ao conjunto de bens ou recursos de que uma pessoa pode dispor ou que está habilitada de fato e direito a usar (GARRIDO, 2008, p. 39). Os “funcionamentos” são “tudo aquilo que uma pessoa pode considerar valioso fazer ou ter” (SEN, 2010, p. 104). A “capacidade” (capability) consubstancia as combinações de funcionamentos cuja realização seja concretamente viável para a pessoa (GARRIDO, 2008, p. 105). Já a “agência” é a habilidade efetiva da pessoa para realizar os funcionamentos desejados, sendo seu oposto a imposição a alguém de um agir forçado ou de uma opressão ou, ainda, de uma condição passiva (ALKIRE; DENEULIN, 2009, p. 11). Sen compreende, assim, o desenvolvimento humano como processo de expansão das liberdades dos indivíduos, resultante da eliminação das diversas fontes de privação, a exemplo da fome, a pobreza e a negação de direitos (SEN, 2010, p. 47).

O pensamento seniano inspira o PNUD a referir-se ao desenvolvimento humano como “liberdade de desfrutar de vários funcionamentos (functionings) combinados” (PNUD, 2017, p. 45). Dentre os fundamentos citados, destaca-se “ter um trabalho bem remunerado que traga satisfação”. Utilizando-se dos funcionamentos que propiciem capacidades, uma pessoa passa a desfrutar da oportunidade para levar o tipo de vida que ela tem razões para valorizar (ALKIRE; SANTOS, 2010, p. 28)4.

Em brevíssima síntese, para Sen, o desenvolvimento deve ter por finalidade a expansão do desenvolvimento humano, percebida pela ampliação das capacidades (capabilities) de todo indivíduo, ou seja, das liberdades que permitam-lhe escolher a vida que deseja viver, segundo seus padrões de bem-estar. Para tanto, políticas públicas em associação com comportamentos privados devem concorrer para a enunciação e efetivação de direitos humanos individuais, políticos e, sobretudo, sociais, os quais cumprem papéis tanto constitutivos quanto instrumentais de liberdades, situação toda essa que só pode ser cogitada em ambientes democráticos (SEN, 2000, 2010).

O PNUD vale-se da publicação periódica dos Relatórios de Desenvolvimento Humano (RDH) para divulgar, desde 1990, o IDH dos países, composto por indicadores relativos a expectativa de vida, expectativa de tempo médio de escolarização e renda per capita. O IDH foi construído com a participação direta de Amartya Sen e comporta aplicação para espaços geográficos mais restritos, como estados, municípios e até bairros. A composição desse índice mostra que o crescimento econômico, apesar de não ser mais tido como condição suficiente para o desenvolvimento, é ainda examinado como um requisito para superação da pobreza multidimensional e para construção de um padrão digno de vida (OLIVEIRA, 2002, p. 41).

Ao lado dos aspectos de mensuração, o PNUD tem nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) ou Agenda 2030 – dando sequência aos Objetivos do Milênio (ODM) de 2000 – sua agenda referencial de ações e resultados atualmente esperados das nações, com expressão de compromisso com a hodierno desenvolvimentismo.

Como se verá adiante, aplicado ao campo das relações de trabalho, o referencial teórico do desenvolvimento humano e sua expressão institucional do desenvolvimento sustentável animam também a concepção de Trabalho Decente da OIT, alegando-se haver um imperativo de mútua promoção entre ambos (OLIVEIRA, 2007, p. 13), por meio de políticas públicas que efetivem direitos humanos (MORAES; DIEHL, 2016, p. 105-106). Nesse sentido, a promoção do Trabalho Decente vem sendo apresentada como importante instrumento de consecução da agenda do desenvolvimento sustentável, a exemplo de sua contemplação pelo oitavo objetivo dentre os ODS e da forma como a própria OIT trata a correlação entre desenvolvimento humano e Trabalho Decente (OIT, 1999).

3 Críticas desenvolvimentistas e pós-desenvolvimentistas: o desenvolvimento enquanto concepção confrontada desde sempre

A despeito de toda a construção teórica levada a efeito em nível de cooperação internacional pelo PNUD, com sentido cada vez mais socioambiental e menos economicista, a realidade da crescente desigualdade verificada tanto em países desenvolvidos quanto os ditos subdesenvolvidos seguiu motivando permanentes críticas.

Referindo-se ao período desde a década final do século XX, Amaro (2017) e outros (ESTEVA, 1992, p. 6-25; RAHNEMA, 1997, p. 9-19 e 377-403) dividem as críticas ao desenvolvimento em “desenvolvimentistas”, ou seja, ainda crentes da pertinência de novas remodelações conceituais, partindo-se de origens e valores distintos daqueles que informam o desenvolvimento economicista; e “pós-desenvolvimentistas”, isto é, que acreditam não mais haver espaço para o uso do conceito de desenvolvimento (com qualquer acepção adotada). Em comum, ambos os tipos de crítica concordam que a noção hegemônica de desenvolvimento, ainda nos dias de hoje, guarda assimetrias sociais, culturais e territoriais já verificadas quando da origem remota do desenvolvimento economicista (FERREIRA; RAPOSO, 2017, p. 111-144), demandando, por isso, reformulações conceituais, quer para ressignificá-lo por completo, quer para desvinculá-lo das “intenções geo-estratégicas de natureza capitalista, colonialista e patriarcal” (AMARO, 2017, p. 95).

É possível afirmar que as críticas desenvolvimentistas nascem com a própria ideia de desenvolvimento e se manifestam de modo muito difuso, podendo-se agrupar sob tal designação toda proposta de desenvolvimento que busque escapar à sua associação ao economicismo puro.

Nesta linha, Celso Furtado (1974), desde o florescer da doutrina do desenvolvimento, nos anos 1950, já indicava a assimetria existente entre o padrão de consumo dos países periféricos e dos ditos centrais à época, de modo que os primeiros passam a ter nos segundos um modelo de progresso e processo tecnológico, contudo sem levar em consideração que somente uma pequena parcela da população teria acesso aos melhores recursos. Furtado sugere haver uma industrialização objetivada nos anseios de toda a sociedade, como modo de substituição às importações, o que traria à tona o problema de lidar com a pressão da parte mais abastada da sociedade. Isso explica o fato de o modelo de desenvolvimento progressista econômico ser criticado até por aqueles que defendem a manutenção do sistema capitalista pautado na ascensão econômica dos países periféricos ou subdesenvolvidos, sem deixar de lado o desenvolver crítico fundamentado no próprio modo de construção do pensamento e da ideia de desenvolvimento (SILVA et al., 2019, p. 125-140).

Cabe, ainda, sustentar que as ideias de desenvolvimento sustentável e desenvolvimento humano são, em grande medida, informadas por teorias críticas desenvolvimentistas, como as de Amartya Sen. Explicam Sachs (1992, p. 6) e Honneth (2008, p. 3) que o desencantamento com o desenvolvimento economicista teve lugar frente ao impacto profundo na autopercepção do ser humano em relação à sua identidade objetificada e ao fato de que o mero aferimento quantitativo econômico como referência de aprimoramento da sociedade e do indivíduo não cobriam múltiplos fatores de bem-estar e que conferem sentido à vida.

Menos tolerantes, os pós-desenvolvimentistas rompem com qualquer tipo de ideia desenvolvimentista corrente, pois acreditam que subjazem ao conceito de desenvolvimento interesses estratégicos de dominação e progresso dos países desenvolvidos sobre os países dito subdesenvolvidos. Tais interesses são levados adiante pela disseminação colonialista de valores culturais hegemônicos, que carrega também ímpetos de desigualdade e dominação de gênero e que se mostra indissociável do mito pós-Guerras Mundiais do crescimento econômico como panaceia de todo mal-estar, circunstância que, ao sentir pós-desenvolvimentista, torna inviável a própria ideia de desenvolvimento, ainda que se lhe atribuam novas perspectivas teóricas e práticas pretensamente mais sensíveis em termos sociais (AMARO, 2017, p. 95).

Para os pós-desenvolvimentistas, não obstante a propagação por décadas do conceito de desenvolvimento, ainda que com modulações de sentido, sua racionalidade segue deitando raízes nos ideais de progresso e civilização dos séculos XVI até XIX5, construídos no contexto da colonização das Américas e do surgimento do “circuito comercial atlântico”6, inaugurador de uma divisão internacional de trabalho que deu início a economia-mundo capitalista (SILVA, 2019, p. 106).

Consoante este entendimento, a cessação da Segunda Guerra Mundial estabeleceu um novo condomínio de poder mundial liderado pelos Estados Unidos, com resignação das potências decadentes em suas novas esferas limitadas de domínio. A partir daquele novo cenário, encabeçado por poderes hegemônicos interessados em difundir a Modernidade, começou a se consolidar a ideia de “civilização ocidental” – que, posteriormente, se difundiria por meio da tese de Samuel Huntington sobre o “choque de civilizações”7 –, marcada pela crença na infalibilidade da autorregulação do mercado, no ininterrupto aprimoramento das técnicas de produção e na autonomia dos indivíduos e dos povos como forma de autopreservação e desabrochar de potencialidades (SILVA, 2019, p. 106).

Dentro deste quadro, sustentam os pós-desenvolvimentistas que o desenvolvimento é defendido pelas nações hegemônicas que, ao se autorreferenciarem como modelos de valor e de agência intelectual, advogam o que lhes parece um modo de aperfeiçoamento contínuo, capaz de trazer uma solução para os problemas de países “subdesenvolvidos”. Daí que a colonização e a própria colonialidade do poder encontraram, na ideia de desenvolvimento, a renovação de seus paradigmas de superioridade civilizacional, tornando o conceito um slogan que passou a ser o critério primordial de classificação de povos e países (SILVA, 2019, p. 106). Igualmente, os discursos liberais dos Estados periféricos durante toda a Modernidade constituíram, em caráter nacional, as noções de “identidade nacional”, “desenvolvimento nacional” e “soberania”, que garantiram a manutenção da ilusão de libertação, desenvolvimento e progresso linear universal que se instauraram (GROSFOGUEL, 2008).

A natural interdisciplinaridade dos aspectos teóricos e práticos da noção de desenvolvimento, inclusive aquela mais recente, atrelada à sustentabilidade, revela uma aparência supostamente progressista, que, de fato enraizada no fundamento da colonialidade do poder (QUIJANO, 2005), ao mobilizar estudos e ações políticas, vem servindo, na realidade, para perpetrar o domínio de nações hegemônicas, com consequências deletérias para os países do Sul global, experimentadas até hoje8.

Este conceito de progresso, disseminado como política do desenvolvimento de matiz colonial, apresenta, para a crítica pós-desenvolvimentista, três facetas conectadas e interdependentes, quais sejam, a pragmática, a ideológica e a epistemológica. A faceta pragmática congrega receituários de políticas públicas e demais ações que possam promover o desenvolvimento (SILVA, 2019, p. 106). A faceta ideológica propaga valores da constituição de sujeitos (passivos e ativos) do progresso, ou seja, o público-alvo de políticas públicas, os agentes públicos, os organismos internacionais etc. Por fim, a faceta epistemológica contempla conhecimentos e disciplinas voltados à propositura daquelas políticas públicas e posições ideológicas alegadamente desenvolvimentistas, bem como de novos modelos que as reafirmem e aperfeiçoem, dentro da lógica colonial supostamente progressista (GRACIARENA, 2000, p. 685-714).

Com estas perspectivas ideológica e epistemológica do desenvolvimento, a crítica pós-desenvolvimentista indica a perenidade da dimensão cultural do colonialismo que ainda subjuga os países subdesenvolvidos, em sua maioria ex-colônias, estabelecendo ponto de contato direto com o pensamento decolonial, que confronta qualquer possibilidade de uma concepção universalmente válida de desenvolvimento, ainda que internacionalmente consagrada (SBERT, 1992, p. 6), sobretudo quando não se mostra capaz ou interessada em superar as desigualdades que suscitam sua própria construção e permitem sua manutenção.

4 Colonialismo, Modernidade e a crítica decolonial

Apesar dos esforços dos referenciais de base desenvolvimentista para buscarem dar destaque aos pensamentos críticos do Sul global, como o de Celso Furtado e, depois, do próprio Amartya Sen, de modo a considerar a realidade dos países ditos subdesenvolvidos, para os pós-desenvolvimentistas tais não bastam para que sejam superados os mitos do progresso linear das nações de viés economicista, porquanto mantido o mesmo molde universalista e eurocentrado aplicável a todas as formas de ser e saber, assim abafando ideias e ações que não se enquadrem no discurso hegemônico e mantendo as mesmas bases constituintes do capitalismo moderno colonial, permeadas por discriminação de raça, gênero9 e classe (RUBBO, 2018, p. 391-409).

Na mesma sintonia, pensamento decolonial toma a Modernidade e a colonialidade por fenômenos mutuamente dependentes e constitutivos, perante os quais o desenvolvimento afirma-se como slogan de progresso, aquele carregado do sentido empregado pela cultura europeia, capitalista, militar, cristã, patriarcal, branca e heterossexual.

Segundo o decolinialista Grosfoguel, a dinâmica capitalista revela relações de poder típicas consolidadas pela colonização, que estabeleceu uma série de hierarquias globais conectadas em tempo e espaço e que viriam a permitir, no século XX, o surgimento do que Escobar nomeia “era do desenvolvimento” (ESCOBAR, 1995, 2003).

Tais hierarquias globais de poder colonial se evidenciaram, dizem os decolonistas, em diferentes dimensões da vida. Há uma específica formação de classes de âmbito global, em que diversas formas de trabalho irão coexistir e serão organizadas pelo capital como fonte de produção de mais-valias, por meio da venda de mercadorias no mercado mundial pretendendo o lucro. Estabelece-se, também, uma divisão internacional do trabalho em centro e periferia, em que o capital organiza o trabalho na periferia de acordo com formas autoritárias e coercivas.

Sob o prisma de Grosfoguel (2002, p. 203-224), antagonicamente ao que contempla a ótica eurocêntrica, as questões de raça, gênero, sexualidade, espiritualidade e epistemologia não são elementos que acrescem às estruturas econômicas e políticas do sistema-mundo capitalista moderno, mas sim sua parte integrante e constitutiva, que o torna patriarcal, capitalista e colonial. Neste último caso, ainda que as “administrações coloniais” tenham sido quase todas oficialmente erradicadas e grande parte da periferia se tenha organizado em Estados politicamente independentes, os povos não-europeus continuam a viver sob exploração euro-americana. Assim, as antigas hierarquias coloniais, agrupadas na relação europeus versus não-europeus, continuam enraizadas e intrincadas na “divisão internacional do trabalho” e na acumulação do capital em escala mundial, levando os países do Sul Global ora a recorrerem ao nacionalismo como forma de resolução eurocêntrica para problemas globais eurocêntricos, ora ao fundamentalismo.

Sustentando ser a Modernidade produto do processo colonial, Escobar (2003) afirma que a América Latina, como um dos locus geográficos afetados pela colonização, é espaço epistemológico e político tendente a elaborar formas capazes de superar a Modernidade eurocentrada. A partir de pesquisa empírica com povos afrodescendentes e indígenas na Colômbia, Escobar identifica três grupos de alternativas heterogêneas ao desenvolvimento: esquemas territoriais de desenvolvimento alternativo (fundamentados no bem-estar e segurança alimentar dos indivíduos), oposição aos modelos de intervenção denominados pelo autor de “modernidades alternativas”; e, finalmente, a arrojada busca por alternativas à Modernidade, a única, no sentir do autor, capaz de esquivar-se das artimanhas do discurso que supõe não existir espaço fora da Modernidade e, por conseguinte, do próprio discurso do desenvolvimento.

No marco do denominado “pensamento crítico de fronteira”, Pinto e Mignolo (2015, p. 381-402), por considerarem que nenhuma cultura do mundo permaneceu intocada pela Modernidade – e que, portanto, não haveria propósito em posições fundamentalistas de sua mera rejeição –, aduzem a necessidade do estabelecimento de um local de intervenção e interrupção da autoinvenção da Modernidade europeia, com o propósito de atingir questões-cerne da sociedade, sem, contudo, reproduzir parâmetros universalistas. Nessa toada, qualquer investigação decolonial tem, como primeiro passo, que proceder à interrogação “quando, por quê, onde, para quê”, com vistas a atingir o conhecimento necessário para criar e transformar, independente de qual saber local se trata (MIGNOLO, 2017).

Desse modo, o pensamento crítico de fronteira, diferentemente dos demais pós-desenvolvimentistas de matriz fundamentalista, pretendem ultrapassar a Modernidade eurocêntrica, sem desperdiçar aquilo que para tanto seja de proveito da própria Modernidade (MIGNOLO, 2017).

Ademais, o pensamento crítico de fronteira busca, por meio da afronta ao nacionalismo, ao colonialismo e aos fundamentalismos, quer eurocêntricos, quer do Terceiro Mundo, inserir a perspectiva epistêmica proveniente do lado subalterno da colonialidade, em ordem a fomentar crítica capaz de transcender as dicotomias próprias do capitalismo, redefinindo-o enquanto sistema-mundo.

Em sendo assim, a decolonialidade e o próprio pensamento crítico de fronteira não se apresentam como um novo universal verdadeiro, superando todos os previamente existentes. Trata-se, em verdade, de outra opção baseada em discursos e “projetos dissidentes de re-existência” (PINTO; MIGNOLO, 2015, p. 381-402).

A racionalidade moderna/colonial, com o intento de categorizar os corpos e conhecimentos do Sul como subordinados e desprovidos da compreensão do conhecimento sistemático, aloca em uma segunda classe aqueles que, com esforço descomunal, não buscam conformar-se aos parâmetros eurocentrados. Aceitar a humilhação imposta ou assimilar-se mostravam-se como as únicas alternativas e assimilar-se significa aceitar sua condição de inferioridade e resignar-se a um jogo que não é seu, mas que lhe foi imposto. Neste cenário, uma a terceira opção é o pensamento e a epistemologia fronteiriços (MIGNOLO, 2017, p. 12-32).

Para Grosfoguel (2008), não há que se falar em conhecimento alternativo e de perspectiva subalterna enquanto as experiências e reflexões teóricas subalternas, inclusive as epistemológicas, forem examinadas a partir de referenciais epistemológicos eurocentrados. Segundo o autor, tal constatação não advoga o desprezo pela perspectiva eurocentrada, mas sua não aplicação universal como pretenso modelo neutro compatível com a realidade dos poderes, dos saberes e dos seres do Sul. Como nada escapa à Modernidade europeia (GROSFOGUEL, 2008), essencial não é negar a aplicação dos marcos teóricos eurocentrados naquilo que couber à realidade particular do Sul. Fundamental é não pensar o Sul desde moldes modernos e coloniais à partida aceitos como universalmente válidos.

É nesse sentido que o locus de enunciação do sujeito constitui a essência da crítica decolonial. O sistema-mundo moderno patriarcal, capitalista e colonial vale-se da estratégia de desvincular o sujeito (oprimido) da enunciação e do lugar epistêmico étnico-racial, sexual e de gênero para que a filosofia e as ciências ocidentais consigam gerar um mito sobre um conhecimento universal supostamente verdadeiro (única via), disfarçando a opressão dos agentes e instituições que controlam a produção do conhecimento e traduzem os próprios privilégios em promessas para o resto do mundo (PINTO; MIGNOLO, 2015, p. 381-402).

A estratégia epistêmica de “caminho para salvação da humanidade”, contida, atualmente, em conceitos como desenvolvimento e globalismo, traduz um paradigma de neutralidade crucial para manutenção dos desenhos globais da Modernidade, que permitiu ao sujeito ocidental observar, no seu conhecimento, o requisito de validade para ser parâmetro de consciência universal, capaz de determinar se as demais ciências eram verdadeiras ou inválidas. Esse processo, que definiu a ciência e saber europeu como universais, tornou legítimo o desapreço pelo conhecimento não-ocidental por sua particularidade, descartando o modo de vida e organização das demais (a exemplo do “buen vivir”, na América Latina), alijando-os da própria noção hegemônica de desenvolvimento (GROSFOGUEL, 2008).

Quando Grosfoguel (2008) analisa a expansão colonial europeia, entende que as origens do sistema-mundo capitalista são produzidas sobretudo pelo princípio da concorrência entre os impérios europeus. Isso implica que o sistema-mundo capitalista seria substancialmente um sistema econômico capaz de motivar o comportamento dos principais atores sociais pela lógica da obtenção crescente de lucro e acumulação de capital à escala mundial10. Ademais, tala perspectiva privilegia as relações econômicas sobre as relações sociais, transformando as relações de produção e originando uma nova estrutura de classes típica do capitalismo, em contraste com outros sistemas sociais e outras formas de dominação. A análise de classes e as transformações estruturais no âmbito econômico são privilegiadas em relação a outras relações de poder, criando hierarquias em escala global.

A base da crítica decolonial ao sistema-mundo moderno ataca o desenvolvimento nacional autônomo desde o século XVIII, ao defender que a tentativa de controle pelo Estado-nação é o que reproduz a ilusão sobre desenvolvimento nacional e organização racional. A noção de desenvolvimento versus subdesenvolvimento como resultado de relações estruturais no interior do sistema global capitalista ultrapassa a noção de Estado-nação. Nesse caso, a factividade da desvinculação de um Estado-nação do sistema-mundo achava-se dependente de processo revolucionário socialista de âmbito nacional, capaz de isolar o país das mazelas globais. Contudo, como nenhum tipo de controle “racional” do Estado-nação poderá, por si, alterar a localização de um determinado país na divisão internacional do trabalho, entende Grosfoguel (2008) ilusória a noção desenvolvimentista da eliminação das desigualdades do sistema-mundo capitalista, no nível do Estadonação.

Sem negar a importância de intervenções estatais, mas compreendendo seu caráter limitado, Grosfoguel (2008) aduz que, no capitalismo, ainda que um país periférico passe por mudanças na sua forma de incorporar-se à economia-mundo capitalista, deslocando-se para um local semiperiférico, tal realidade sempre estará ao alcance de pequena parcela dos países, até que se rompa com todo o sistema-mundo moderno e colonial. Assim, uma questão global não poderia ter uma solução nacional, por ser espaço de disputa limitado para transformações políticas e sociais mais radicais, que mudem com eficácia as desigualdades em nível global.

Como solução às estratégias unicamente em âmbito nacional, Grosfoguel (2008) apresenta, como espaços estratégicos de intervenção política eficaz, as ligações locais e globais dos movimentos sociais para resolver os conflitos ocorridos em níveis situados abaixo e acima do Estado-nação. Não apenas as estratégias ideológico-simbólicas como também as formas eurocêntricas de conhecimento são constitutivas da economia política do sistemamundo capitalista, tornando-se saberes importantes e complementares das relações centro-periferia no sistema-mundo capitalista (GROSFOGUEL, 2008).

O convencimento sobre a superioridade do saber eurocentrado nas diferentes áreas da vida, inclusive o mundo do trabalho, foi um importante aspecto da colonialidade do poder no sistema-mundo moderno. Contudo, tal base crítica recusa o apelo a uma missão fundamentalista ou essencialista de salvamento da autenticidade dos países do Sul. Trata-se de colocar a diferença colonial no centro do processo de produção de conhecimento.

Deste modo, os conhecimentos do Sul alocam-se na confluência do tradicional e do moderno, mas se traduzem em saberes complexos e transculturais. À reinserção das formas de resistência para transformação do saber dominante Mignolo (2000, p. 57-97) nomeia “crítica da Modernidade”, a ser realizada com apoio nas experiências geopolíticas e memórias da colonialidade, expressando-se quer através dos sistemas e locais existentes, quer através da criação de novos lugares institucionais e não-institucionais, a partir dos quais os subalternos (pois há multiplicidade de respostas críticas partindo das culturas e lugares epistémicos diferentes) possam ser ouvidos.

5 Apontamentos sobre o trabalho no pensamento decolonial

No processo de constituição histórica da América Latina, todos os meios de exercer o controle e a exploração do trabalho foram articuladas em torno da relação capital-salário e do mercado mundial. Assim, a colonização designou a geografia social do capitalismo: o capital, utilizado para controle do trabalho assalariado, torna-se o fulcro em cujo entorno coordenam-se todas as demais formas de controle da exploração do trabalho, de seus produtos e recursos. Dessa forma, denuncia o pensamento decolonial, que a Europa e o europeu (posteriormente o sujeito ocidental) se integravam ao mundo capitalista como seu eixo, concentrando sob sua soberania todas as maneiras de comandar a subjetividade, cultura, ser, saber e produção do saber, e, após a Segunda Guerra, vincularam ao seu predomínio também a questão desenvolvimento-subdesenvolvimento (QUIJANO, 2000).

A partir dessa lógica, é comum que os sujeitos subalternos dos tempos coloniais, discriminados pelos agentes dominadores, ocupem, atualmente, os lugares de menor poder na pirâmide social, perpetuando uma desigualdade de matriz colonial. Pode-se perceber esse padrão nos níveis local (nacionais versus migrantes e refugiados), interpessoal (homens versus mulheres, brancos versus negros etc.), quanto global (centro e periferia) (TEODORO; ANDRADE, 2020).

Para Quijano, a Modernidade, inicialmente apresentou-se, para os explorados do capital e, em geral, para todos os oprimidos, como um horizonte de afirmação de liberdades frente às relações, estruturas ou instituições coloniais opressivas, ilusão que não tardou a se evidenciar. A Modernidade colonial impôs aos subalternos operações intelectuais e subjetivas pautadas por três paradigmas: a crença no evolucionismo linear, não apenas dos países, mas também das pessoas, as quais, vistas como subalternas, almejam adequar-se a padrão meritório individual de sucesso pessoal; a naturalização das diferenças entre culturas humanas e sua codificação na ideia de raça; e o reposicionamento temporal dessas diferenças, que, conquanto coexistentes, passaram a fazer parte do “passado”, nos discursos do progresso. O cultivo dessas operações foi possível graças ao que Quijano (2000) denomina “colonialidade do poder”.

Sobre dos âmbitos de manifestação da colonialidade do poder, Quijano (2000) reconhece que, do modo como percebido historicamente, em escala social, que o poder é permeado por uma malha de relações sociais pautadas em dominação/conflito e articuladas em torno da competição pelo comando das seguintes áreas da existência social: o trabalho, seus produtos e recursos de produção; o sexo, e a reprodução das espécies, a subjetividade e seus produtos materiais e intersubjetivos, incluindo o próprio conhecimento; e a autoridade e seus instrumentos, em particular a coerção ou violência, para garantir a padronização das relações sociais e regular suas mudanças.

À exploração da força de trabalho Grosfoguel (2008, p. 115-147) aplica o conceito de colonialidade do poder, aduzindo que as diversas formas de trabalho estruturadas com a acumulação de capital global são distribuídas conforme uma hierarquia racial. O trabalho coercivo – ou extremamente barato – é feito por pessoas não-europeias na periferia, enquanto o trabalho assalariado livre pôde alocar-se no centro. As ideias de raça mantêm a hierarquia da população mundial segundo uma ordem de povos superiores e inferiores, princípio que se tornou organizador da divisão internacional do trabalho e do sistema patriarcal global. Dessa maneira, raça, gênero, sexualidade, religião e epistemologia, entre outros, são elementos estruturantes dos quais se vale o sistema-mundo capitalista para se organizar em torno de uma divisão hierárquica internacional do trabalho. Apesar da descolonização jurídico-política, remanesce a “matriz de poder colonial”, que encontra no mundo do trabalho fundamentos para manutenção da dominação euro-americana.

Afirma Quijano (2000) que o capitalismo mundial se instaurou como estrutura de controle do trabalho e de seus recursos e produtos, consistindo não apenas na articulação conjunta das respectivas formas de dominação já conhecidas pela América desde a colonização, como também por novos padrões de molde da identidade histórica e social dos indivíduos em torno do capital, capaz de impor uma sistemática divisão do trabalho pautada por uma nova tecnologia de dominação e exploração, baseadas em distinções não apenas de raça mas de outros elementos culturais de desigualdade. Esta matriz de poder colonial foi capaz de afetar todas as dimensões da existência social, tais como a sexualidade, a autoridade, a subjetividade e, por óbvio, o trabalho. A colonialidade do poder ainda exerce seu domínio, na maior parte da América Latina, portanto também no Brasil, a partir da imposição ideológica da “democracia racial”, que banaliza a discriminação sofrida e mantem a dominação em parâmetros coloniais11.

Pelas ilusões de Estado-nação reforçadas pela Modernidade, os indivíduos sob um mesmo Estado se identificam, mas precisam ter em comum algo a compartilhar. Cuida-se da participação na distribuição do controle do poder, ainda que de maneira desigual, parcial e temporal. Fundamentalmente, a cidadania é exercida em todo o âmbito da existência social atinente ao Estado. Todavia, a seara estatal não é democrática, ou seja, não se pode falar em cidadania apenas com base em igualdade jurídica e civil de indivíduos que se encontram desigualmente representados nas esferas de poder, ainda mais se as relações sociais em todos os outros âmbitos da existência social forem radicalmente não democráticas ou antidemocráticas (QUIJANO, 2000, p. 345).

No exemplo brasileiro, negros, homens e mulheres, ocupam cargos geralmente informais e pior remunerados do mercado de trabalho brasileiro, usualmente preenchidos por pessoas com baixa escolaridade. Assim, estimula-se um círculo vicioso de relações de dominação, agravadas pelo patriarcado, que traz profundas consequências para as mulheres não brancas, especialmente as pretas e pardas (TEODORO; ANDRADE, 2020) 12. Na Modernidade, a divisão do trabalho alicerçou o poder colonial com novas formas de controle, baseando-se na racialização para determinar quem estaria no controle.

6 Trabalho Decente: uma concepção suscetível de apropriação decolonial?

A OIT, em 1919, nasce para mediar o conflito entre capital e trabalho, levando em conta o contexto capitalista de sua criação e a tentativa de se conciliar o modelo econômico com os conflitos sociais e políticos, tornando-se o primeiro referencial de “expressão da internacionalização dos direitos dos trabalhadores” (FERREIRA et al., 2012, p. 60). É, portanto, uma instituição forjada no marco da Modernidade colonial e com atividades desprovidas de qualquer ímpeto superador dessa realidade.

Ainda assim, mesmo para os padrões modernos hegemônicos, a OIT ostenta objetivos que não se alinham ou favorecem imediatamente a sanha capitalista, porque cria entraves de caráter regulatório à livre negociação da força de trabalho. Demais disso, mantém uma estrutura institucional diferente das demais organizações internacionais interestatais, mesmo aquelas de direitos humanos, na medida em que seus quadros e decisões respeitam o tripartismo, conformado pela participação, com voz e voto, de representações do Estado, de empregadores e de trabalhadores, por meio do chamado diálogo social.

A partir da década de 1950, a OIT, já transformada em agência especializada da ONU, tornou-se mais diversificada em sua atuação e produção de estudos, tendo publicado, através de parcerias com departamentos de governos de diversos países, relatórios acerca da relação destes com a organização. Ademais, desde o advento da Segunda Guerra Mundial, pesquisadores contratados pela OIT passaram a produzir textos não meramente descritivos e de caráter histórico, mas analíticos acerca dos processos reais de tomada de decisão da organização (DAELE, 2008, p. 490). A nova linha de pesquisa que integrou a agenda política da OIT levou, a partir do processo de descolonização, ao crescimento da atenção acadêmica para o mundo não ocidental. Essa nova linha de pesquisa levantou os impactos das ações OIT em seus Estados Membros em desenvolvimento, na atuação tripartite da própria organização, e na atuação de seus órgãos decisórios voltada ao estabelecimento de direitos humanos universais com foco em direitos trabalhistas (DAELE, 2008, p. 501).

Neste processo de autorreflexão sobre a consecução de seus objetivos, altamente fragilizada pelo avanço do neoliberalismo, a OIT remodela seus focos e instrumentos de atuação, no final do século XX.

Um marco importante desta transformação é a adoção da Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de 1998, aprovada pela Conferência Internacional do Trabalho (composição tripartite dos Estados reunidos em assembleia geral), com a qual estabeleceu-se a obrigação de todos os membros da OIT, independentemente de ratificações individuais, para com a observância de normas básicas de proteção do trabalho assalariado atinentes à liberdade sindical e ao reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva, à eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório, à abolição efetiva do trabalho infantil e à eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação – o que se convencionou chamar Core Labour Standards.

Na esteira dessa Declaração, a OIT abraça, em 1999, a concepção de Trabalho Decente como eixo central de todas as suas ações no século XXI, para tanto adotando, expressamente, premissas do desenvolvimento humano e sustentável propagadas pelo PNUD, incluindo o marco teórico seniano (BELTRAMELLI; VOLTANI, 2019).

Desde o início, a OIT prescindiu da adoção de uma definição cerrada de Trabalho Decente, tratando-a, primordialmente, como uma espécie de “gatilho” ou referência para, de um lado, movimentar as discussões regulatórias internacionais e, de outro, desencadear políticas públicas nacionais suscitadas pela cooperação internacional oferecida pela própria OIT e pautadas por quatro objetivos estratégicos: proteção de direitos humanos nas relações de trabalho (fundamentalmente aqueles elencados na Declaração de 1998), geração de empregos de qualidade (com remuneração adequada e sem riscos para a saúde e segurança de quem trabalha), ampliação da proteção social àqueles que se encontram temporária ou permanentemente alijados do mercado de trabalho e promoção do diálogo social entre governantes, empregadores e trabalhadores (BELTRAMELLI; VOLTANI, 2019; RODRÍGUEZ-POSE, 2001).

Com esta nova forma de atuação, a OIT ampliou, sobremaneira, seus espaços de intervenção, antes circunscritos aos limites da edição de normas internacionais, sobretudo tratados dependentes de ratificações individuais pelos Estados, acompanhados de mecanismos de monitoramento de seu cumprimento. Passou, pois, a incentivar a construção de agendas nacionais de promoção de Trabalho Decente, confeccionadas a partir de exercícios (ainda que meramente formais) de diálogo social, com isso admitindo modelos diferenciados e flexíveis de gestão de problemas, segundo vicissitudes nacionais. Deste modo, a noção de Trabalho Decente não é, por definição, um standard pronto e acabado.

É possível perceber, portanto, um processo claro de menor ênfase em normas coercitivas baseadas na disposição de cada Estado em assumi-las, formalmente, por meio de consentimento individual manifestado por ratificação de tratados e maior concentração de esforços no estabelecimento de um patamar mínimo de direitos para, então, incrementá-lo em termos de amplitude e efetivação pela via de ações “customizadas” nos níveis nacionais.

Diante desta atual configuração, é possível cogitar-se a OIT como uma organização passível de comportar conquistas que façam sentido dentro da racionalidade decolonial e atendam a seus preceitos basilares? Não há qualquer pretensão, aqui, de se apresentar uma resposta completa para esta indagação, sobejamente fundamentada, como já se advertiu, na introdução. Intenta-se, na verdade, vislumbrar impedimentos e possibilidades.

Uma posição, eventualmente pós-desenvolvimentista e decolonial, que seja radicalmente contrária a qualquer possibilidade de verdadeiras conquistas para a população subalterna em uma organização internacional com finalidades e marcos regulatórios não superadores da Modernidade capitalista colonial, certamente renegará qualquer cogitação positiva para a pergunta acima colocada.

Entretanto, como visto, o exame dos pontos comuns das mais recorrentes propostas teóricas pós-desenvolvimentistas e decoloniais revela que sua crítica não rechaça, a priori, que conceitos e instituições modernas possam ser disputados, a partir da epistemologia subalterna. Admitindo-se tal premissa, acredita-se que a OIT oferece possibilidades de instauração desse debate tanto interna corporis quanto diante dos espaços estabelecidos pelos movimentos em favor da construção de agendas domésticas para a promoção do Trabalho Decente. Isso não significa, por outro lado, que se deva entender como naturalmente democráticos os espaços internos da OIT e externos, em que sua intervenção se faça presente.

Por exemplo, há de se reconhecer que a Declaração de 1998 e a estipulação dos Core Labour Standards foram resultado de um esforço estadunidense de arrefecimento da produção de normas de hard law (tratados) pela OIT, desejando, com isso, reduzir as possibilidades de imposição de sanções internacionais por descumprimento de direitos humanos trabalhistas (ALSTON, 2004). Da mesma maneira, é evidente que, tanto dentro da institucionalidade da OIT quanto nos trajetos nacionais de discussão da promoção do Trabalho Decente, os problemas estruturais de cooptação do Estado e das representações obreiras pelos interesses econômicos coloniais e neoliberais (BELTRAMELLI NETO; BONAMIM, 2020; SANTOS; COSTA, 2005) fragilizam propósitos de construção de caminhos que observem as premissas da epistemologia decolonial atinentes à posição da representação subalterna em todo o processo13.

Em verdade, a toda e qualquer cogitação sobre conquistas decoloniais através as atividades da OIT antecede o exame da possibilidade institucional de suas disputas e é exatamente neste ponto que se podem perceber caminhos.

A institucionalidade tripartite OIT apresenta, em sua composição, administração e deliberação, uma das mais democráticas formas de diálogo social entre as organizações internacionais, embora se esteja longe de poder ser classificada como um espaço “suficientemente democrático”14, circunstância que contamina, por óbvio, suas formulações, a exemplo da concepção de Trabalho Decente (BELTRAMELLI NETO; BONAMIM; VOLTANI, 2019).

Por não se esperar que governos e representações empresariais levem pautas subalternas a OIT, disputas decoloniais apenas serão possíveis se impulsionadas por representações de trabalhadores, cuja participação é assegurada e encorajada pela própria Organização, dentro e fora de suas instâncias institucionais. É preciso lembrar, a esse propósito, que o diálogo social, desde os primórdios da existência da OIT, é ponto central de sua atuação regulatória e de promoção de políticas públicas, do que são os mais eloquentes exemplos a Convenção Internacional n.º 87 sobre Liberdade Sindical e Proteção ao Direito de Sindicalização, a Convenção Internacional n.º 98 sobre Direito de Sindicalização e de Negociação Coletiva – ambas listadas entre as oito convenções fundamentais assim classificadas pela própria OIT – e o quarto objetivo estratégico da promoção do Trabalho Decente.

A OIT é a segunda maior organização internacional interestatal em número de Estados Membros (187), ficando apenas atrás da ONU (193) neste quesito, podendo-se vislumbrar um horizonte potencial de ampla participação de representações de trabalhadores provenientes de nações pobres e em desenvolvimento, dentro dos espaços institucionais da Organização. Por óbvio que o modo de escolha das representações obreiras na OIT também é assunto sensível, mas que não deve escapar às reivindicações que acontecem nas searas nacionais em que tal se define, assim como deve acontecer em relação a tudo que diga respeito ao mundo do trabalho, em nível nacional, como é o caso, ilustrativamente, das políticas de proteção social – que deve igualmente contribuir com liberdades políticas, facilidades econômicas, oportunidades sociais, garantias de transparência e segurança protetora (CRESPO; GUROVITZ, 2002, p. 1-12).

Tal possibilidade impacta, diretamente, nos parâmetros de promoção do Trabalho Decente disseminados pela OIT e na forma como essa promoção se concretiza em âmbito nacional, sempre pelas mãos das representações de trabalhadores. No primeiro caso, a reorientação teórica da concepção de Trabalho Decente e de seus objetivos segundo a epistemologia decolonial, ou mesmo sua manutenção, mas com outras diretrizes de implementação, pode ser uma reivindicação subalterna a ser disputada pelas vias institucionais da OIT. No segundo, ainda mais factível é que as objeções e propósitos decoloniais se façam presentes na construção e implementação de agendas promotoras do Trabalho Decente pelas instâncias deliberativas nacionais.

De todo modo, não parece crível sustentar-se que a existência de direitos básicos de trabalhadores, a exigência de condições de trabalho não precarizadas e a proteção conferida pelo Estado a quem não trabalha, objetivos da promoção do Trabalho Decente, sejam, a priori, incompatíveis com pensamentos e ações de matiz decolonial. O que se deve admitir é que seu conteúdo e estratégias de efetivação sejam disputados e, quiçá, apropriados segundo propósitos subalternos.

Ainda no campo teórico, para além da condução de reivindicações subalternas de matiz decolonial ao campo das relações institucionais da OIT e de suas ações no interior dos Estados-nação, a própria teoria pós-desenvolvimentista seniana e seus elementos presentes nas noções de Desenvolvimento Humano e Trabalho Decente, notadamente no que respeita à ideia de ampliação das capacidades enquanto expansão da liberdade de ser e viver como se imagina, são passíveis de apropriação propositiva consentânea com as premissas e propósitos decoloniais pelos atores subalternos, no exercício de sua participação nas construções internas e externas da OIT.

Enfim, para que as vozes subalternas sejam ouvidas e para que sejam definidos e promovidos princípios e direitos fundamentais no trabalho de acordo com seus seres e saberes, deve-se garantir que cheguem até essas instâncias de poder (GROSFOGUEL, 2008) em suficiência democrática para introduzir nas estratégias de promoção do Trabalho Decente suas próprias reivindicações – cabendo aqui, novamente, o local de fala com relação a classe, gênero e raça. Quanto ao ponto, a OIT parece oferecer tal possibilidade mais claramente, em comparação com outras organizações internacionais interestatais não tripartites.

7 Conclusão

A ideia de desenvolvimento é severamente criticada por sua matriz moderna capitalista e colonial, sendo que as transformações conceituais pelas quais passou, por mais que as distanciem de seu caráter economicista, não foram capazes de arrefecer os apontamentos de seu compromisso com a manutenção de uma sociedade que, a despeito do processo político-jurídico de descolonização, permanece fulcrada na desigualdade social suportada por múltiplas e interseccionais distinções baseadas em raça, nacionalidade, gênero e sexualidade.

Em sendo a venda da força de trabalho elemento essencial da dinâmica desse capitalismo de supedâneo colonial, as reestruturações dos modos de produção não significaram e jamais significarão eliminação das desigualdades e de seus critérios distintivos coloniais.

Os padrões regulatórios das relações de trabalho podem ser mais ou menos ostensivos na imposição de limites à exploração da força de trabalho, mas, a despeito disso, os fatos demonstram, claramente, como a desigualdade de matriz capitalista, a partir da qual a exploração da força de trabalho gera acumulação concentrada de riquezas, sob qualquer regulação mediadora, tem feição evidentemente colonialista, tanto do ponto de vista tecnológico como epistêmica. O que se infere da trajetória da OIT e do Trabalho Decente sugere ambos não escapam dessa condição estrutural.

Os pensamentos decoloniais, embora propondo encaminhamentos diferentes, lançam cruciais luzes à colonialidade travestida de progresso embutida em discursos e propostas encontradas na atuação da OIT, inclusive na cooperação internacional para o desenvolvimento e de Trabalho Decente. Todavia, o tripartismo e o diálogo social, enquanto pilares históricos estruturais da institucionalidade e da atuação da OIT, associados à natureza maleável da concepção de Trabalho Decente, porque orientada à contemplação de vicissitudes sociais, econômicas e políticas nacionais, oferecem espaço para disputas e, quem sabe, apropriações epistêmicas e performativas decoloniais, que permitam encaminhamentos nacionais e locais que sejam, efetivamente, de matriz subalterna e capazes de serem alçados ao plano internacional como luta e resistência, pelas vias institucionais já asseguradas, sem prejuízo de outras que se abram.

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1 Titulação: Doutorado em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, integrando o Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho – CESIT; R. Dairton Tessari, nº 19, Loteamento Parque das Sapucaias, Campinas/SP, CEP 13098-596; https://orcid.org/0000-0002-3940-5983; silviobeltramelli@gmail.com.

2 Graduanda do décimo período do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas); Rua Ricardo Antônio Ribeiro Del Nero, n. 16, Jardim Campos Elisios – Jundiaí, SP. CEP 13209-760; https://orcid.org/0000-0003-4110-1601; bbragam@outlook.com.

3 O tema do desenvolvimento progressista e modernizado pode ser amplamente observado nas obras de Lewis (1955, p. 96-102) e So (1990, p. 17-87).

4 “O Desenvolvimento Humano é a ampliação das liberdades das pessoas para que tenham vidas longas, saudáveis e criativas, para que antecipem outras metas que tenham razões para valorizar e para que se envolvam ativamente na definição equitativa e sustentável do desenvolvimento num planeta partilhado. As pessoas são, ao mesmo tempo, os beneficiários e os impulsores do Desenvolvimento Humano, tanto individualmente como em grupos” (PNUD, 2010, p. 16-17).

5 Sobre os autores que tratam do assunto, há divergências entre o estabelecimento do marco subjetivo da racionalidade de geocultura moderna: Wallerstein o fundamenta como a Revolução Francesa, pelo fortalecimento das bases políticas; Quijano, Mignolo, Grosfoguel, entre outros, estabelecem o marco a partir da colonização Ibérica (WALLERSTEIN, 2007, p. 25-27).

6 Conceito utilizado por Mignolo para caracterizar “a utilização de critérios de classificação das populações”, que, a partir do século XV, passou a corresponder a uma articulação mundial e complexa de produção capitalista (MIGNOLO, 2003).

7 A passagem da teoria de política internacional idealista para a realista seria marcada de diversas características, evidentes após a Segunda Guerra Mundial, na visão do Huntington: o Estado torna-se entidade básica do sistema internacional, pautado pelo egoísmo e o interesse, comportando-se no sentido de otimizar esses interesses em um método de equilíbrio do poder, juntamente com um sistema de valores, funcionando como um mecanismo pelo qual o sistema internacional se organiza numa configuração de equilíbrio estável (CHIAPPIN, 1994, p. 37-56).

8 “A falência da miragem do desenvolvimento é cada vez mais evidente e, em vez de buscarem novos modelos de desenvolvimento alternativos, talvez seja tempo de começar a criar alternativas ao desenvolvimento” (SANTOS, 2009, p. 28).

9 Ampliando a análise que Quijano faz do racismo decolonial, Maria Lugones (2014) examina o feminismo decolonial, partindo da premissa segundo a qual o feminismo congrega vários os “feminismos”, com reivindicações próprias, dado que as mulheres experimentaram e experimentam diferentes formas de opressão, inclusive correlatos à venda da força de trabalho. A reflexão de Lugones é importante porque suscita o debate do decolonialismo do ponto de vista da interseccionalidade das vulnerabilidades que atingem as pessoas (raça, classe e gênero) e conformam as desigualdades na América Latina.

10 Tanto a pós-colonialidade como a abordagem do sistema-mundo são críticas ao desenvolvimentismo, à universalização europeizada do conhecimento, às desigualdades e hierarquias raciais e de gênero e aos processos que contribuem para a manutenção da subordinação da periferia no sistema-mundo capitalista. As diferenças estão, todavia, apenas nas causas determinantes. Para os pós-coloniais, a cultura colonial é a responsável pelos processos acima descritos, sendo o capital apenas uma de suas hierarquias globais (assim, a crítica centraliza-se na agência); a abordagem do sistema-mundo dá ênfase à acumulação de capital em escala mundial como principal causadora dos problemas sociais (a ênfase crítica relaciona-se, portanto, as próprias estruturas) (GROSFOGUEL, 2008).

11 Em contribuição à discussão em pauta, aduzem Almeida e Corrêa (2020, p. 246-252) que opera o preconceito racial no Brasil, determinantemente, a partir do fenótipo dos indivíduos, importando inclusive aumento do grau de exclusão social à medida que as características físicas dos sujeitos mais se aproximem da fenotipia negra. A manifestação do racismo no Brasil concorre não apenas para os que os processos discursivos que orbitam as questões de reivindicação da identidade negra e parda tornem (mais) difícil o reconhecimento e “(re) significação” de pertencimento, como, ao flexibilizar a ideia de igualdade nos poucos locais de enunciação (já sub-representados) conquistados pelos sujeitos subalternos, abafem as possibilidades de emancipação desses indivíduos.

12 Pretos e pardos, apesar de serem 54,9% da força de trabalho no Brasil, representam 64,2% dos trabalhadores desocupados e 66,1% dos subutilizados. Constituem, ademais, 75,2% da parcela da população com os menores ganhos e 45,3% dos postos com menor remuneração. Os homens negros recebem 56,1% dos rendimentos de um homem branco, enquanto as mulheres pretas ou pardas recebem, em média, apenas 44% dos rendimentos dos homens brancos (IBGE, 2012-2019). Matsushita e Cavalcanti (2019, p. 297-303) esclarecem que, em contexto neoliberal de “bipolaridade do trabalho feminino”, em que o comando das estruturas e das condições do sistema de subordinação ao trabalho estão voltados à máxima da obtenção de lucro dos agentes que comandam e operam a coordenação da produção e dos serviços, refletem-se as estruturas da colonialidade do poder no mundo laboral, determinando que certos grupos nunca cheguem ao controle. Um dos paradoxos da Modernidade levantados por Bertolin e Silveira (2019, p. 258-259) é o simultâneo aumento dos empregos ao passo em que ocorre a perda da qualidade das relações de emprego, sempre associadas à crescente precarização e vulnerabilidade, acentuando o trabalho precário e as desigualdades que com ele se entrelaçam.

13 A discussão sobre novos rumos para o sindicalismo, que não é objeto deste escrito, não deixa de ser urgente e crucial para o avanço das reflexões aqui suscitadas, em vista da profunda crise de intensidade do engajamento e da mobilização coletivos da classe que vive da venda da força de trabalho, diante das novas formas neoliberais de cooptação da subjetividade em favor da livre concorrência individual no mercado de trabalho, manifestada de múltiplas maneiras, como é o caso das máximas da “empresa de si” ou do “Eu S/A”, fomentando competição em todos os níveis inter e intraindividuais e, assim, minando as alternativas de ação coletiva (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 8). Igualmente relevante é o debate sobre o Estado neoliberal, regido pelas normas da concorrência e sucumbente às exigências de eficácia e de regulação do mercado, sempre em prol da livre disputa capitalista, arrefecendo, com isso, espaços e propósitos democráticos e, por conseguinte, também a participação de trabalhadores nos rumos da sociedade nacional em que se inserem (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 267).

14 Referência a expressão empregada por Boaventura de Sousa Santos (2013, p. 269-270) para uma análise de sistemas políticos de democracia representativa do capitalismo, com base em critérios rousseaunianos do Contrato Social e de democracia como modelo político que deveria assegurar a representação de todos os distintos interesses sociais nos espaços de deliberação, a qual, por sua vez, resulta da média desses interesses.