https://doi.org/10.18593/ejjl.26143

Exercício do direito fundamental de reunião e manifestação durante o período de “quarentena” da Covid-19: democracia militante, suicídio democrático e desobediência civil

Exercise of the fundamental right of assembly and demonstration during the “quarantine” period of Covid-19: militant democracy, democratic suicide and civil disobedience

Rosa Julia Plá Coelho1

Fabio Carvalho de Alvarenga Peixoto2

Resumo: O artigo analisa o descumprimento à ordem de dispersão de manifestação com mote antidemocrático realizada em Fortaleza, durante o período de “quarentena” para combate à pandemia de coronavírus covid-19 (SARS-CoV-2). A pesquisa é qualitativa bibliográfica e documental, e desenvolve-se em duas linhas: identificação do nível de adoção, pela Constituição brasileira, de uma ideia de democracia militante; e possibilidade de qualificação como desobediência civil de ato praticado no curso de manifestação em defesa de ideias antidemocráticas. O método escolhido (análise comparativa entre a Constituição brasileira e a Lei Fundamental alemã – em especial, seu artigo 18 –, e análise crítica da teoria da desobediência civil, a partir da concepção de Ronald Dworkin) permitiu chegar-se às seguintes conclusões: que o Estado-administração não pode intervir restritivamente em manifestações ocorridas durante o período de “quarentena”, salvo se as circunstâncias concretas impuserem a intervenção – o que veda a proibição estatal abstrata de manifestações no período –; e que é possível qualificarem-se como de desobediência civil atos realizados no curso de manifestações com viés expressivo antidemocrático. Por mais estranho que pareça, a defesa constitucional de uma manifestação antidemocrática é mais democrática do que a sua proibição inconstitucional.

Palavras-chave: Direitos fundamental de reunião e manifestação. “Quarentena” (coronavírus covid-19 – SARS-CoV-2). Democracia militante. Suicídio democrático. Desobediência civil.

Abstract: The article analyzes the non-compliance with the order of dispersion of demonstration with an anti-democratic motto held in Fortaleza, during the “quarantine” period to combat the covid-19 coronavirus pandemic (SARS-CoV-2). The research is qualitative bibliographic and documentary, and develops in two lines: identification of the level of adoption, by the Brazilian Constitution, of an idea of militant democracy; and the possibility of qualifying as civil disobedience of an act practiced in the course of demonstrations in defense of anti-democratic ideas. The chosen method (comparative analysis between the Brazilian Constitution and the German Fundamental Law – in particular, its article 18 – and critical analysis of the theory of civil disobedience, based on the conception of Ronald Dworkin) allowed the following conclusions to be reached: that the State-administration cannot intervene restrictively in demonstrations that took place during the “quarantine” period, unless the concrete circumstances impose the intervention – which prohibits the abstract state prohibition of demonstrations in the period –; and that it is possible to qualify as civil disobedience acts carried out in the course of demonstrations with an expressive anti-democratic bias. Strange as it may seem, the constitutional defense of an anti-democratic demonstration is more democratic than its unconstitutional prohibition.

Keywords: Fundamental rights of assembly and demonstration. “Quarantine” (coronavirus covid-19 – SARS-CoV-2). Militant democracy. Democratic suicide. Civil disobedience.

Recebido em 27 de agosto de 2020

Avaliado em 9 de outubro de 2020 (AVALIADOR A)

Avaliado em 14 de setembro de 2020 (AVALIADOR B)

Aceito em 3 de junho de 2021

Introdução

O grande impacto da pandemia de coronavírus covid-19 (SARS-CoV-2) sobre a sociedade brasileira é inegável. Certamente, muitos estudos, inclusive jurídicos, em breve analisarão os fatos ocorridos neste período, sem a “miopia de contemporâneo que só os gênios conseguem superar” (CONY, 2014). Portanto deverão ser melhores que este trabalho.

Há, no entanto, questão que, nesta ainda frágil democracia, não pode esperar: a despeito da impressão de amplo reconhecimento da relevância dos direitos fundamentais, e da aparente construção de um sólida dogmática jusfundamental – em especial, contra o arbítrio estatal –, a grave crise sanitariossocial parece ter transformado tudo em pó. Direitos fundamentais devem ser protegidos mesmo – melhor dizendo: principalmente – em momentos de crise. No entanto, aqueles que deveriam zelar em maior medida pela sua garantia acabam contribuindo para um ambiente de arbítrio. As boas intenções podem até tornar o arbítrio em moralmente justificado – um arbítrio ilustrado –, mas não lhe conferem conformidade com o Direito.

Bom exemplo disso é a recomendação conjunta, expedida pela Procuradoria-Geral da República e pela Procuradoria-Geral de Justiça do Ceará, de proibição estatal de realização de manifestação – mais especificamente: carreata –, como forma de prevenir a ocorrência de abstrata e “presumida aglomeração de pessoas” (CEARÁ, 2020c). Recomendação esta que foi atendida, sendo ao fim a manifestação efetivamente impedida pelo Estado-administração.

A recomendação mencionada acima foi expedida em 27 mar. 2020. Pesquisa realizada nos três primeiros dias de abril mostrou que, naquele momento, 76% dos brasileiros apoiava a quarentena como forma de evitar a disseminação do novo coronavírus covid-19 (GIELOW, 2020). Isto é: havia contundente apoio popular às medidas restritivas de liberdade. É nesse contexto, de ordens arbitrárias violadoras de direitos fundamentais – porém simpáticas à maioria –, que se pode debater sobre a desobediência civil em tempo de combate à pandemia.

As manifestações – e prisões em decorrência delas – não foram ocorrências esporádicas, em Fortaleza. Em 17 abr. 2020, foram presas duas pessoas, e, em 20 maio 2020, mais dezoito, todas realizando carreatas contra as restrições decretadas pelos Governos estadual e municipal (PELO..., 2020; QUATRO..., 2020). No dia 7 jun. 2020, quatro pessoas foram presas, por descumprirem o decreto de isolamento social, ao protestarem contra o racismo, na esteira do movimento global fortalecido após o assassinato brutal de George Floyd, negro, pelo policial branco Derek Chauvin, em Minneapolis (MANIFESTAÇÃO..., 2020).

A ocasião de violação ao direito fundamental de reunião e manifestação analisada aqui é a repressão a um ato público que pleiteava o fim da “quarentena” decretada no Estado do Ceará. A carreata ocorreu em 19 abr. 2020, e terminou com quatro pessoas presas e um adolescente apreendido, por descumprimento ao decretado dever de isolamento social. A escolha deste último protesto, na pesquisa, deveu-se à singularidade que dificulta a análise: pedia-se então um nefasto golpe militar – mais precisamente: a “aplicação do AI-5” (QUATRO..., 2020).

Pode parecer estranho que sequer se cogite aqui, pelo viés antidemocrático da manifestação, a sua garantia de direito fundamental ou a ocorrência em seu curso de atos de desobediência civil. Há, porém, uma linha muito clara, que não será aqui ultrapassada: a opinião pessoal deste autor não importa; o que importa são as normas da Constituição da República – CRFB.

Declarações como a de que “o Estado brasileiro admite única ideologia que é a do regime da democracia participativa”, do Procurador-Geral da República Augusto Aras (FALCÃO; VIVAS, 2020), são sem dúvidas louváveis do ponto de vista político, e – alvíssaras! – representam seguramente o pensamento da maioria dos brasileiros, que, como Churchill3, consideram que a democracia é a pior forma de governo com exceção de todas as demais. Contudo, a exclusão de proteção jusfundamental ao ato de expressão de ideias antidemocráticas não necessariamente pode ser adscrita a uma norma constitucional. Isto é: não obstante soe paradoxal, é necessário analisar se a CRFB considerou que o pensamento democrático – felizmente majoritário – deve ser um limitador conteudístico do exercício dos direitos fundamentais, em especial das liberdades de expressão e de reunião e manifestação.

No caso da manifestação concretamente analisada, houve ordem de dispersão, por descumprimento de decreto que impôs isolamento social. A desobediência a essa ordem é analisada aqui sob dois vieses – da democracia militante e da desobediência civil –, representados por três questões respondidas neste trabalho: (1) o Estado-administração pode proibir abstratamente manifestações pacíficas e sem armas com fundamento em decreto, e sem considerar os aspectos concretos singulares?; (2) a CRFB confere proteção jusfundamental a manifestações que defendem – porém não praticam, materialmente – atos contrários à própria CRFB?; (3) em manifestações nas quais se defendam atos contrários à própria CRFB, podem ser praticados atos de desobediência civil? As questões estão evidentemente relacionadas, mas a resposta positiva a uma não é condição para avançar-se à seguintes.

Para respondê-las, a pesquisa investiga os meios constitucionais de defesa contra ações antidemocráticas. Sob o nome de “democracia militante”, defende-se que os Estados democráticos podem estabelecer medidas que impeçam que a democracia seja democraticamente desfeita – o chamado suicídio democrático. O maior exemplo dessa democracia militante é o art. 18 da Lei Fundamental alemã, que prevê a perda (Verwirkung) de certos direitos fundamentais, se estes forem exercidos contra a própria democracia. Ver-se-á que, mesmo na Alemanha, onde a ordem democrática tem meios constitucionalmente estabelecidos de defesa contra ações antidemocráticas, sua efetividade é muito problemática. No Brasil, será observado que, pela própria natureza de sua Constituição – que, em oposição às trevas da ditadura civil-militar antecedente, rejeita qualquer ingerência sobre as liberdades –, impediram-se apenas os partidos políticos de defenderem o fim do regime democrático (art. 17, CRFB), mas não as pessoas, no exercício de seus direitos fundamentais de livre expressão e de reunião e manifestação.

Adiante, analisa-se a intervenção restritiva estatal, sem fundamento em lei, contra manifestações realizadas durante o período de “quarentena” decretada no Estado do Ceará, bem como os atos concretos de resistência a esse ato restritivo, ocorrida em uma carreata específica, em Fortaleza – o que resultou na detenção de manifestantes. Investiga-se se essa resistência pode ou não ser qualificada como desobediência civil, mesmo considerada a natureza antidemocrática das reivindicações das manifestações reprimidas.

A pesquisa científica foi qualitativa e utilizou fontes bibliográficas e documentais. Utilizou-se o método analítico-comparativo para confrontar as adoções da ideia de democracia militante na Lei Fundamental alemã – berço da concepção de que a democracia deve manter postura ativa contra ataques contra si que utilizam meios providos por si própria – e na CRFB; e o método analítico-crítico para abordar a noção de desobediência civil.

Inicia-se com a resposta à questão da proteção constitucional a manifestações contrárias à própria CRFB. Antes, porém, é necessário deixar um último alerta, para que as críticas a este artigo venham – porque não se faz ciência sem críticas –, mas sejam justas: o que se defende aqui é que, por mais estranho que possa soar, a defesa constitucional de uma manifestação antidemocrática é mais democrática do que uma proibição inconstitucional. Acredita-se que isso será demonstrado, neste trabalho.

1 Direitos fundamentais e democracia militante: o Brasil tem poucas medidas de prevenção ao suicídio democrático

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito” (BRASIL, 1988, grifo nosso). Eis a primeira frase da CRFB. Assim também se inicia esta análise.

Mesmo no preâmbulo, já se declarara que: “Nós, representantes do povo brasileiro, [estivemos] reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático” (BRASIL, 1988, grifo nosso).

A ordem constitucional instaurada e mantida pela CRFB é, sem sombra de dúvidas, uma ordem democrática. Qualquer ataque à democracia é um ataque à CRFB. Qualquer ataque à CRFB é um ataque à democracia que a promulgou e que foi estabelecida por essa promulgação. Qualquer golpe é um ataque à CRFB. Qualquer pedido de golpe é um ataque à CRFB.

Essas afirmações são simples, e não requerem esforço argumentativo. Mais importante é saber se a CRFB impede que a ataquem. Eis uma questão complexa, à qual geralmente apenas se atenta quando a própria ordem constitucional parece estar em perigo.

Ela está em perigo agora. Por mais incrível que possa parecer, há pessoas que defendem a “intervenção militar” e a “aplicação do AI-5” (QUATRO..., 2020); isto é: há pessoas que, exercendo suas liberdades democráticas de expressão e de reunião e manifestação, defendem a morte da CRFB.

Deve analisar-se aqui se a CRFB impede ou não essa morte – ou, melhor dizendo: esse suicídio constitucional e democrático.

1.1 Democracia militante

Löwenstein (1937, p. 657-658, tradução nossa4, grifo nosso), no artigo Militant Democracy and Fundamental Rights, publicado em 1937, foi pioneiro na defesa da ideia de que

[...] a democracia tem de ser redefinida. Deve ser – pelo menos na fase de transição, até que se consiga uma melhor adaptação social às condições da era tecnológica – a aplicação de autoridade disciplinada, por homens de espírito liberal, para os fins últimos do governo liberal: dignidade humana e liberdade.

Trata-se de uma concepção funcional da democracia: sua função é garantir a dignidade humana e a liberdade. Não é muito distante da concepção de democracia adotada na CRFB, como o demonstram o fundamento na dignidade da pessoa humana (art. 1°, III) e a ampla garantia aos direitos fundamentais. Löwenstein, porém, sustenta algo além: a dignidade humana e – principalmente – a liberdade devem ser limitadas aos exercícios que não atentem contra a própria democracia. Ele cunhou, já no título, a célebre expressão “democracia militante [militant democracy]”; uma democracia apenas parcial, porque, dentro do universo do livre mercado de ideias, algumas são especificamente tolhidas: as que propõem o fim da própria democracia.

Há sutileza, que deve ser desde logo percebida: é diferente atentar contra a dignidade da pessoa humana – a exemplo do discurso de ódio – e atentar contra a democracia. Ordens constitucionais democráticas pluralistas, como é a brasileira, não têm nenhuma dificuldade em proibir juridicamente o discurso de ódio; de outro lado, é, como se verá, extremamente complicado adscrever a uma norma constitucional a repressão à expressão de ideias anticonstitucionais – como a proposta de uma nova assembleia constituinte –, ou antidemocráticas – como o estabelecimento de monarquia presidencialista.

Löwenstein (1937, p. 638) vivia imerso na ameaça do fascismo na Europa, tal como o presente em 1 maio 1937 – último dia considerado em sua análise, como fez questão de consignar em seu artigo. A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o terror nazifascista demonstraram o quanto Löwenstein tinha razão ao se preocupar com a fragilidade das democracias, mesmo no que se referia aos perigos vindos de dentro de si próprias: por exemplo, na eleição nacional de 1932, o partido de Adolf Hitler obteve 37% dos votos, o que lhe permitiu chegar ao poder na Alemanha, país que tinha “um dos melhores sistemas de educação pública e a maior concentração de doutores do mundo na época” (STUENKEL, 2018).

Nem todas as constituições, contudo, optaram pela via da militância constitucional-democrática. Algumas preferiram correr o risco de suicídio. Isso pode ser impactante, em um primeiro contato; porém, é imprescindível considerar que algumas ordens constitucionais, na ponderação5 entre a máxima amplitude do mercado de ideias e a máxima autossegurança democrática, reputaram mais importante garantir aquela, assumindo o risco de não se prevenirem contra a própria morte.

Assim, muito embora haja aqueles – como Löwenstein – que entendem que a democracia deve amputar-se, para prevenir seu suicídio, o quanto essa ideia é concretamente referível a uma constituição é questão que só se pode compreender à luz das normas constitucionais de cada Estado. Em outras palavras: a pertinente ideia de Löwenstein não pode descer de um céu supranormativo para salvar democracias em perigo, montada em uma sabedoria quase mística de “homens de espírito liberal”; ela precisa ser uma decisão da própria ordem constitucional. Outras decisões – que não a de militância constitucional – são também possíveis, e variam em um largo espectro.

Adiante, serão analisadas as decisões da Lei Fundamental alemã e da CRFB sobre a adoção, e em que nível, de medidas de prevenção ao suicídio democrático – isto é: o nível de militância das respectivas democracias.

1.2 O exemplo da Verwirkung de direitos fundamentais do artigo 18 da Lei Fundamental alemã

Logo após o grande trauma do nazismo, a Lei Fundamental alemã (ALEMANHA, 2019, grifo nosso), promulgada em 1949, estabeleceu em seu artigo 18 a Verwirkung de direitos fundamentais:

Quem, para combater a ordem fundamental livre e democrática, abusar da liberdade de expressar a opinião, particularmente da liberdade de imprensa (artigo 5 §1), da liberdade de ensino (artigo 5 §3), da liberdade de reunião (artigo 8), da liberdade de associação (artigo 9), do sigilo da correspondência, das comunicações postais e das telecomunicações (artigo 10), do direito de propriedade (artigo 14) ou do direito de asilo (artigo 16 §2), perde estes direitos fundamentais. Cabe ao Tribunal Constitucional Federal pronunciar-se sobre a perda dos direitos e fixar a sua extensão.

Outros dispositivos seguiram a mesma ideia, como o artigo 9 (“São proibidas todas as associações cujas finalidades ou cuja atividade sejam [...] contra a ordem constitucional [...]”) e o artigo 21.2 (“São inconstitucionais os partidos que, pelos seus objetivos ou pelas atitudes dos seus adeptos, tentarem prejudicar ou eliminar a ordem fundamental livre e democrática ou pôr em perigo a existência da República [...]”) (ALEMANHA, 2019). As discussões centram-se, porém, fundamentalmente no artigo 18, por ser mais geral que os outros – que tratam apenas de associações e partidos políticos – e de aplicação mais complexa.

Knödler (2000, p. 33) observa que a norma construída a partir do artigo 18 tem uma “existência sombria” e não sofreu uma implementação significativa, convertendo-se em um “reservatório de dissertações”. Struth (2019, p. 211) entende a mesma coisa. Na prática, o Tribunal Constitucional alemão – o Bundesverfassungsgericht, BVerfG – competente para pronunciar-se sobre a Verwirkung do artigo 18 da Lei Fundamental, foi confrontado apenas quatro vezes com pedidos de constituição da perda dos direitos fundamentais (2 BvA 1/92, 2 BvA 2/92, BVerfGE 38, 23, e BVerfGE 11, 282), mas deixou de conhecer todos os pedidos.

A despeito disso, Knödler (2000, p. 36, tradução nossa6) conclui, a partir da jurisprudência fragmentária do BVerfG, que é somente no contexto do artigo 18 da Lei Fundamental que pode haver um confronto “no plano constitucional com a proteção da ordem fundamental constitucional liberal-democrática”. Ou seja: a militância da democracia alemã limita apenas os exercícios expressamente consignados no artigo 18; não há defesas genéricas contra outros exercícios antidemocráticos – por exemplo, contra o exercício de outro direito fundamental não listado, ainda que a fim de combater a ordem democrática.

Há ainda um fator complicador. Como observou Gallwas (1967, p. 131), a aplicação da Verwirkung pelo BVerfG é inequivocamente para o futuro, como não deixa dúvida a parte final do dispositivo: “Cabe ao Tribunal Constitucional Federal pronunciar-se sobre a perda dos direitos e fixar a sua extensão”. Como consequência, a militância consagrada na norma não tem efeito praticamente nenhum – Gallwas (1967, p. 135) aponta como efeitos apenas a expiação e a dissuasão, e Struth (2019, p. 211), o aviso – sobre ameaças atuais à democracia: alguém que usa, por exemplo, a liberdade de expressão para combater a ordem democrática, no que depender da norma construída a partir do art. 18 da Lei Fundamental, estará protegido por essa mesma liberdade até que o BVerfG declare a perda da proteção.

Evidentemente, a lei, especialmente a penal, poderá restringir essas garantias de direitos fundamentais – como, de fato, o faz em tipos específicos –:

O art. 18 da Lei Fundamental serve para afastar futuros perigos potenciais, não para sancionar o comportamento passado. Este último é deixado para o direito penal repressivo. O constituinte não se mostrou satisfeito com a proteção repressiva. Em vez disso, o art. 18 GG implementa o conceito [Konzept] de ‘democracia militante’ e deve dar ao Estado a oportunidade de agir contra o indivíduo desde o início, sem ter que esperar por um comportamento punível (STRUTH, 2019, p. 245, tradução nossa7, grifo nosso).

Isso demonstra que, a despeito de ter instaurado uma democracia considerada militante, a Lei Fundamental teve um cuidado extremo de manter o maior espaço de opinião possível, mesmo – e paradoxalmente – para os inimigos da democracia. É o que identificam Michael e Morlok (2016, p. 440, grifo nosso):

A perda dos direitos fundamentais é um instrumento da chamada ‘democracia capaz de se defender’ [citam o artigo de Löwenstein, acima apresentado] – a par do art. 9°, n. 2, da Lei Fundamental e do art. 21°, n. 2, da Lei Fundamental. A ideia de quão propensa a Constituição pode ser à autodestruição baseia-se na experiência histórica da época de Weimar. Então, aos inimigos da Constituição, que atacam a ordem constitucional enquanto tal, impõem-se limites com estes instrumentos. Embora a ordem constitucional, com os seus direitos fundamentais, queira estar aberta em relação a conteúdos políticos de toda a espécie, são neste caso impostos limites ao exercício da liberdade. É certo que limitar o exercício da liberdade para garantir o princípio da liberdade parece paradoxal, mas não é contraditório.

Observe-se: os limites às liberdades são apenas pontuais e típicos, mesmo quando se trata dos inimigos da constituição e da democracia. Isso, mesmo que a Lei Fundamental tenha sido promulgada quando o país era recém-saído do terror nazifascista. A comparação com a CRFB é necessária, e ocorrerá adiante.

1.3 A democracia brasileira pode cometer suicídio

De acordo com a CRFB (BRASIL, 1988, grifo nosso), “É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana” (art. 17, caput). O mesmo não é dito, diferentemente do que ocorre na ordem constitucional alemã, para o exercício dos direitos fundamentais, em geral.

A menor militância da CRFB, se comparada com a da Lei Fundamental alemã, pode ser politicamente – talvez também psicologicamente – justificada pela diferença do nível de atrocidades dos regimes nazifascista e ditatorial civil-militar acobertadas pelas respectivas constituições do período antecedente à promulgação do novo documento. De todo modo, deve ficar claro que, se a militância democrática da Lei Fundamental – inspirada de forma direta e temporalmente próxima em Löwenstein – já tem um alcance restrito, a da CRFB deve interferir ainda menos nas garantias de direitos fundamentais, mesmo quando estes sejam exercidos por inimigos da constituição e da democracia.

Repita-se: certa ou errada, a escolha foi feita pela CRFB, e não deriva subjetivamente da consciência do jurista. Isto suscita a questão: a ordem constitucional brasileira impede o suicídio democrático?

Sarmento e Pontes (2018, grifo nosso) sustentam, com base em uma suposta “interpretação teleológica” do texto do art. 17 da CRFB, que

[...] candidatos que simbolizem a exata antítese da democracia – isto é, que defendam abertamente atrocidades como a tortura, o fuzilamento de adversários políticos, o racismo, o machismo, a homofobia etc – não podem concorrer à Presidência da República, pois [...] a democracia não é uma missão suicida.

Em sua interpretação do já citado artigo de Löwenstein, a militância da democracia pairaria como uma norma supraconstitucional capaz de, em uma interpretação – melhor: inspiração – “teleológica” do jurista, tolher de alguém o direito fundamental político de concorrer à Presidência da República (art. 14 da CRFB).

Müller (2013, p. 95) já observou com suficiente clareza que o argumento do cânone teleológico é composto, porque é necessária uma prévia justificação do alegado “objetivo” declaradamente perseguido pela norma. No caso de Sarmento e Pontes, o objetivo de sua interpretação é exatamente uma concepção de democracia militante – que, por óbvio, precisaria ser justificada concretamente na CRFB antes da conclusão, e não por ela. Em outras palavras: Sarmento e Pontes justificam uma suposta norma constitucional de inelegibilidade no próprio objetivo que já escamotearam no início da interpretação: “a democracia não é uma missão suicida”.

Crê-se já se haver demonstrado que a decisão por uma “missão não suicida” envolve prejuízos à amplitude das liberdades democráticas – o eterno e insolúvel paradoxo da democracia –, e que a escolha é da constituição, devendo ser identificada nela. O perigo de interpretações arbitrárias como a de Sarmento e Pontes é que acabam servindo a uma determinada concepção de “boa política” muito estreita.

Bom exemplo disso8 é que, no mesmo processo eleitoral em que concorreu o candidato que os autores desejavam retirar da corrida – cuja postura antidemocrática, diga-se de passagem, lamentavelmente acabou confirmando-se em grande medida após a sua posse –, outro partido político propunha formalmente o “assassinato” da CRFB, sem crítica dos autores: o plano de governo da coligação Brasil Feliz de Novo – o Plano Lula de Governo –, apresentado por ocasião da mesma eleição presidencial de 2018, afirmou textualmente que: “O Brasil precisa de um novo processo constituinte: a soberania popular em grau máximo para a refundação democrática e o desenvolvimento do país” (COLIGAÇÃO..., 2018, p. 17). Streck (2014, p. 399) já observou muito bem que “qualquer tentativa de convocação de assembleia constituinte deve ser entendida – e denunciada – como golpe, um atentado contra a democracia”. Ainda assim, não se pretendeu tolher o direito político – não por este motivo – do candidato que defendia o plano.

Não se pode deixar de notar que, uma vez cometido o assassinato constitucional proposto – na verdade, mais bem qualificado como suicídio constitucional –, por meio da convocação de uma assembleia constituinte, a CRFB perderia qualquer possibilidade de continuar militante, mesmo que o fosse enquanto vigente. Isto porque o que os constituintes vierem a decidir estará completamente fora do alcance da CRFB. É no mínimo exótica a conclusão, tomada por prognóstico, de que uma nova constituição significaria uma refundação democrática: é impossível não perceber que o suicídio constitucional elimina qualquer defesa constitucional eventualmente existente contra os inimigos da democracia.

Não é por meio de interpretações teleológicas com objetivos não justificados ou por meio da ideia constitucional de militância de democracia que podem ser restringidos os direitos fundamentais. A limitação – em sentido amplo – dos direitos fundamentais insere-se em um sistema muito desenvolvido. De acordo com o § 1° do art. 5° da CRFB, as “normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (BRASIL, 1988). É possível dizer que a autoaplicabilidade das normas garantidoras jusfundamentais é um consenso dogmático e jurisprudencial no Brasil; o mesmo pode-se afirmar da existência de limites dos limites às intervenções restritivas aos direitos fundamentais, dentre as quais se destaca, por sua relevância para este trabalho, a reserva de lei: somente em casos excepcionalíssimos as garantias de direitos fundamentais podem ser restringidas sem expressa autorização constitucional ou legal.

Apenas de forma imprópria poder-se-ia falar, nos casos de restrições legais, em uma aplicação da ideia de militância da democracia. Isto porque, nessas situações, a ideia de militância pode ser o fundamento da norma, mas jamais o fundamento da intervenção restritiva. Então se deve falar simplesmente em uma restrição legal, ou em uma intervenção restritiva fundamentada em restrição legal, tornando desnecessária a remissão à ideia de democracia militante.

Mostra-se aqui que, para ser relevante, a ideia de democracia militante deve exceder os mecanismos de autoproteção de que já se dispõe em uma determinada democracia, por força da própria natureza do Estado de direito: que se possa restringir um direito fundamental por lei uma garantia jusfundamental é uma decorrência do Estado de direito, não da adoção de uma democracia militante.

No que se refere ao Estado-administração, decorre da reserva de lei a “impossibilidade de a Administração Pública adotar medidas restritivas de direitos sem fundamento legal ou constitucional” (PEREIRA, 2006, p. 306). Intervenções casuísticas são possíveis, em hipóteses já ditas excepcionais, desde que justificadas pela necessidade de proteção de outro bem ou direito constitucionalmente tutelável9. Porém, como aponta Steinmetz (2000, p. 65), tal constatação não autoriza a criação de uma norma geral administrativa restritiva. Isso para que não ocorra, como bem percebeu o Tribunal Constitucional espanhol em sua Sentencia 83/1984, “uma degradação da reserva formulada pela Constituição em favor do legislador [una degradación de la reserva formulada por la Constitución en favor del legislador]” (ESPANHA, 1984).

O Estado-administração não pode, portanto, por ato administrativo de caráter abstrato e geral justificado na ideia suprconstitucional de democracia militante, intervir no exercício protegido pela garantia jusfundamental. Para fazê-lo, deve adscrever o ato a uma norma legal ou constitucional, ou excepcionalmente justificá-lo pela necessidade de proteção de outro bem ou direito de grande relevância.

Especificamente no caso do Brasil, há na CRFB uma norma que concretiza a ideia de democracia militante, a partir do art. 17. Assim, o Estado-administração, com fundamento na norma constitucional que pode ser construída a partir dali, deve proibir a formação de um partido político que proponha, por exemplo, a instauração de um regime ditatorial. Isso, independentemente de existir lei que restrinja a garantia jusfundamental de liberdade de associação. No caso da norma concretizável a partir do art. 17, a própria CRFB cuidou de restringir a garantia de liberdade de associação: a intervenção tem, portanto, fundamento direto em norma constitucional – o que, aliás, demonstra o quanto é desnecessária a referência à ideia política norteadora, de democracia militante.

Por outro lado, uma ação interventiva estatal proibitiva sobre, por exemplo, manifestações pacíficas e sem armas10 que reivindiquem o suicídio constitucional, por meio da convocação de uma assembleia constituinte, não podem ser adscritas de maneira nenhuma à norma que proíbe a criação de partido político antidemocrático.

Poderia ser um caso de adscrição à norma construída a partir do art. 23, I, da Lei 7.170, de 1983 – que criminaliza a incitação “à subversão da ordem política ou social” (BRASIL, 1983) –, o que autorizaria uma intervenção restritiva fundamentada em lei11. Para que essa adscrição ocorresse, porém, teria que ocorrer a ação típica de incitação. No entanto, especificamente sobre ela, o Supremo Tribunal Federal proferiu julgamento, no caso paradigmático da Marcha da Maconha (ADPF 187), no qual traçou uma clara distinção entre reivindicação e ação concreta, concluindo,

[...] que a mera proposta de descriminalização de determinado ilícito penal não se confunde com o ato de incitação à prática do delito, nem com o de apologia de fato criminoso, eis que o debate sobre a abolição penal de determinadas condutas puníveis pode (e deve) ser realizado de forma racional, com respeito entre interlocutores, ainda que a idéia, para a maioria, possa ser eventualmente considerada estranha, extravagante, inaceitável ou, até mesmo, perigosa (BRASIL, 2011, grifo do autor omitido, grifo nosso).

Não há, portanto, como o Estado-administração impedir, de forma abstrata, uma manifestação que defenda – não as executando concretamente – ideias anticonstitucionais e antidemocráticas; isto porque (1) não há norma constitucional que limite a garantia dos direitos fundamentais de liberdade de expressão e de reunião e manifestação às reivindicações não anticonstitucionais e não antidemocráticas; (2) não há lei que, a fim de proteger outros bens e direitos de grande relevância, autorize a intervenção administrativa proibitiva dessas manifestações; e, principalmente, (3) a ideia de democracia militante não serve de fundamento autônomo para intervenções restritivas sobre exercícios garantidos por normas de direito fundamental.

Apenas excepcionalmente se pode admitir uma intervenção administrativa proibitiva, desde que consideradas as circunstâncias do caso concreto – vedadas assim regulamentações administrativas abstratas –, e a fim de proteger outros bens e direitos de grande relevância. Isso demonstra a fragilidade da CRFB na autoproteção contra seu suicídio constitucional – e, ainda pior, contra o suicídio democrático.

2 A desobediência civil como questão democrática operacional

Uma vez demonstradas a falta de mecanismos constitucionais de autoproteção na CRFB e a impossibilidade de adscrição de intervenções administrativas a uma ideia de democracia militante, voltam-se os olhos agora para a manifestação ocorrida no dia 19 abr. 2020, em Fortaleza.

Em 27 mar. 2020, o Ministério Público federal e o estadual expediram recomendação conjunta, determinando às autoridades policiais do Estado do Ceará que adotassem

[...] todas as providências necessárias para evitar que [...] carreatas sejam realizadas [...] em Fortaleza, em Juazeiro do Norte ou em quaisquer outros Municípios do Ceará, evitando-se com isso propagação acelerada do Covid-19 como decorrência da presumida aglomeração de pessoas (CEARÁ, 2020c, grifo nosso).

A despeito de a recomendação ministerial haver sido dirigida a carretas específicas (convocadas para o dia 28 mar. 2020, em Juazeiro do Norte, e para o dia 29 mar. 2020, em Fortaleza), suas razões podem ser estendidas a qualquer manifestação ocorrida no período de “quarentena” – pela “presumida aglomeração de pessoas” que provocam.

Pouco antes da recomendação, em 24 mar. 2020, decisão monocrática do Supremo Tribunal Federal proferida na ADI 6341 havia reconhecido “no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente” de estados e municípios para legislarem sobre defesa da saúde (BRASIL, 2020d, grifo nosso), decisão referendada pelo Plenário em 15 abr. 2020 (BRASIL, 2020e). Posteriormente, em 9 abr. 2020, nova decisão monocrática, proferida na ADPF 672, assegurou aos estados e municípios “a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia” (BRASIL, 2020b, grifo nosso).

Apesar disso tudo, em 19 abr. 2020 realizou-se carreata, e, após desobediência à ordem policial de dispersão, “detenções ocorreram no Centro de Fortaleza, em frente à 10ª Região Militar, onde os manifestantes se concentraram e pediram aplicação do AI-5” (QUATRO..., 2020).

Isso suscita a questão: a desobediência ao ato de dispersão pode ser considerada um ato de desobediência civil, mesmo que os motivos da manifestação dispersada sejam antidemocráticos? Essa manifestação pode ser vista sob dois vieses: como supostamente violadora do isolamento social decretado pelo Governador do Estado, e como antidemocrática. Foque-se inicialmente no primeiro aspecto; o segundo será tratado especificamente no último tópico. A resposta deve começar pela análise da ordem de dispersão.

2.1 Impossibilidade de restringir direito fundamental com fundamento em decreto (e em recomendação do Ministério Público)

Crê-se já haver deixado claro que os direitos fundamentais só podem ser restringidos por lei12. Intervenções administrativas restritivas não estão descartadas, desde que se imponham como necessidade concreta – jamais abstrata13 –, a fim de proteger outro bem ou direito de grande relevância.

No caso do Estado do Ceará, nem o Decreto 33.519, de 2020 – que proibiu “frequência a barracas de praia, lagoa, rio e piscina pública ou quaisquer outros locais de uso coletivo e que permitam a aglomeração de pessoas” (art. 1°, § 1°) (CEARÁ, 2020b) –, nem o Decreto 33.510, de 2020 – que suspendeu “eventos, de qualquer natureza, que exijam prévio conhecimento do Poder Público, com público superior a 100 (cem) pessoas” (art. 3°, I) (CEARÁ, 2020a) –, poderiam restringir, de forma geral e infralegal, o direito fundamental à liberdade de reunião.

As decisões do Supremo Tribunal Federal acima citadas – ADI 6341 e ADPF 672 –, evidentemente, também não autorizam intervenções administrativas sobre direitos fundamentais sem fundamento em lei. Observe-se, aliás, que ambas deixam clara que a competência assegurada a estados e municípios para restringir direitos fundamentais é legislativa, e não administrativa.

Deve ser mencionada, ainda, a Lei 13.979, de 2020, que autorizou intervenções restritivas, pelo Estado-administração, sobre alguns direitos fundamentais, como o isolamento “de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas” (art. 2°, I) e a quarentena, qualificada como

[...] restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus [art. 2, II] (BRASIL, 2020a).

Sobre esta lei, Binenbojm (2020) foi muito feliz em observar que a autorização conferida por lei é de isolamento de “pessoas já doentes ou contaminadas”, e de quarentena de “gente com suspeita fundada de contaminação”. Não há, portanto, autorização legal conferida pela Lei 13.979, de 2020, para intervir restritivamente sobre a liberdade de reunião e manifestação de pessoas não doentes, não contaminadas, e não suspeitas de contaminação.

Por fim, a norma extraível do art. 268 do Código Penal (“Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”) não poderia servir como legitimadora de qualquer determinação, tão somente daqueles autorizadas por lei ou pela Constituição. Se assim não fosse, poder-se-ia cogitar, por exemplo, de ocorrência do crime tipificado pela infração de ordem de confinamento em campo de concentração14.

Resta investigar então se a razão apresentada na recomendação ministerial justifica uma intervenção restritiva administrativa concreta. Segundo o Ministério Público, a ocorrência de manifestações em Fortaleza opor-se-ia “frontalmente às determinações das autoridades sanitárias, justificada e amplamente divulgadas, de isolamento social”. A análise ministerial ocorreu de forma abstrata: “como decorrência da presumida aglomeração de pessoas” (CEARÁ, 2020c, grifo nosso).

É interessante trazer à tona um debate que vem ocorrendo na Alemanha, sobre as intervenções restritivas em direitos fundamentais, sob o suposto fundamento de combate ao coronavírus covid-19. O ex-juiz do BVerfG Hans-Jürgen Papier, em entrevista recente, defendeu que a proteção da saúde não justifica toda e qualquer intervenção na liberdade, e o presidente do Bundestag – o parlamento alemão – Wolfgang Schäuble declarou que: “Quando ouço que todo o restante tem de estar subordinado à proteção da vida, então tenho que dizer: isso não está certo, nesse grau absoluto” (PAPIER..., 2020, tradução nossa15).

Em 16 abr. 2020, o BVerfG analisou caso muito semelhante ao que ora se discute, referente a uma manifestação cujo mote seria: “Reforçar a saúde em vez de enfraquecer os direitos fundamentais – proteção contra vírus, não contra pessoas”. Tal manifestação fora proibida pela municipalidade de Gießen, sob o fundamento de que traria prejuízo ao combate ao coronavírus covid-19; o BVerfG anulou essa proibição, e determinou que a municipalidade reapreciasse a questão, desta vez, não sob o fundamento de uma proibição abstrata, mas sim à luz das peculiaridades do caso concreto (ALEMANHA, 2020). Ou seja: o BVerfG considerou inconstitucional a restrição abstrata imposta à manifestação, determinando uma análise concreta das circunstâncias – em especial, das medidas de prevenção propostas pelos próprios organizadores, como a manutenção de distanciamento de no mínimo seis metros entre manifestantes não pertencentes a uma mesma família, e a transmissão de discursos por telefone celular.

Descartada a pretensão de utilizar-se, sem maior aprofundamento, uma decisão proferida pelo BVerfG como precedente para um caso ocorrido em Fortaleza, não é difícil concluir que, pelo sistema de direitos fundamentais da CRFB, a recomendação do Ministério Público é tão equivocada quanto a proibição da municipalidade de Gießen. Isto porque ambas partem de uma adscrição abstrata a uma norma geral proibitiva (resultante de uma concordância prática ou de um sopesamento feito também em abstrato), desconsiderando a necessidade – sempre presente, porém mais evidente nas intervenções administrativas sobre direitos garantidos por normas jusfundamentais – de concretizar a norma considerando os fatos concretos.

Como já se afirmou inúmeras vezes: o Estado-administração somente pode intervir restritivamente no exercício de direitos fundamentais ou se tal intervenção houver sido autorizada pela constituição ou por lei, ou a fim de proteger outros bens e direitos de grande relevância, consideradas as circunstâncias do caso concreto. Não há lei autorizando a intervenção restritiva, aqui. Pelo outro aspecto, a saúde pública é indiscutivelmente um bem de grande relevância que, em análise ainda abstrata, justifica intervenções restritivas; porém, como declarou Schäuble, não toda e qualquer intervenção restritiva.

A proibição de realização de carreatas durante o período de combate à pandemia de coronavírus covid-19 é manifestamente excessiva, porque não demonstrável a aptidão da medida para atingimento do fim proposto. Novais (2019, p. 108) observa que o “princípio da idoneidade ou da aptidão exige que as medidas restritivas da autonomia individual sejam aptas a realizar o fim prosseguido com a restrição [...]”. De que forma pessoas manifestando-se de dentro dos seus carros ofereceriam risco à saúde pública? A mesma conclusão estende-se a manifestações em que sejam adotadas medidas concretas de prevenção ao contágio – medidas de difícil, mas não impossível execução.

Ainda que esse nexo abstrato entre carreatas e saúde pública pudesse ser demonstrado, a sua verificação teria que se dar ainda no caso concreto – o que, por si só, impede uma normatização geral abstrata, seja por meio de decreto, seja por meio de recomendação do Ministério Público.

De todo modo, como se verá adiante, para que se discuta a desobediência civil, não é necessário que a não obediência decorra da constatação de inconstitucionalidade da ordem desobedecida; basta, para tanto, que haja a legítima possibilidade de se considerar que a ordem foi ilícita, ou mesmo que foi lícita, porém errada. Isso tudo demonstra que não é absurdo concluir que, além da insatisfação política, os manifestantes cuja manifestação foi proibida estivessem imbuídos de um sentimento de que a proibição ao exercício de seu direito fundamental era uma extrema injustiça.

2.2 Descumprimento de ordem de dispersão de manifestação pacífica e sem armas: desobediência civil

Thoreau publicou em 1849, originalmente sob o título Resistance to Civil Government, alterado post mortem para Civil Disobedience (Desobediência Civil), um ensaio que se tornou marcante para a ciência política. Defendeu, ali, que a transgressão impõe-se quando a lei exige que alguém seja o agente de injustiças (THOREAU, 2019, p. 20). Na opinião de Thoreau (2019, p. 13), era o caso do dever de transgredir a obrigação de pagar tributos, porque esses estavam sendo vertidos para o enfrentamento dos EUA com o México.

Em 1972, Arendt (2017, p. 7), inspirada em Thoreau, deu contornos efetivamente políticos ao que este último houvera praticado como um ato de consciência: “A desobediência civil ocorre quando um significativo número de cidadãos se convence de que os canais normais da mudança já não funcionam, e as queixas não são ouvidas, ou não se age quanto a elas” (ARENDT, 2017, p. 156). Para Arendt (2017, p. 12), a desobediência civil – diferentemente da ação praticada por Thoreau, agora tida como objeção de consciência – caracteriza-se pela ação de minorias organizadas, aglutinadas por uma opinião comum, e unidas pela decisão de firmar posição contra políticas do governo, mesmo que estas sejam apoiadas por uma maioria.

Um pouco antes, em 1971, Rawls (2016, p. 453) fornecera à ciência política a definição mais conhecida de desobediência civil: “um ato público, não violento e consciente contra a lei, realizado com o fim de provocar uma mudança nas leis ou nas políticas de governo”. Ainda segundo Rawls (2016, p. 463-464), o “princípio da liberdade igual é [...] o objeto mais apropriado da desobediência civil”, e há a necessidade de esgotamento dos “meios legais para obter reparação”.

A concepção de Rawls tornou-se a mais conhecida, havendo sido adotada quase que integralmente, por exemplo, por Habermas (1988, p. 55), que faz ressalva apenas quanto à necessidade de prévio esgotamento das possibilidades institucionais de mudança nas leis ou políticas. Mesmo Celikates (2016, p. 41), ao criticar a concepção de Rawls – em especial à exigência de não violência –, não a abandona por completo, antes a amplia em diversas direções, para o fim de abranger mais ações.

Para a finalidade deste trabalho, é de especial importância a concepção de Dworkin (2019, p. 156): como ele a define, uma “teoria operacional da desobediência civil”. Há, segundo Dworkin (2019, p. 157-159), não apenas a desobediência por objeção de consciência (Thoreau), contra políticas (Arendt), ou contra injustiças (Rawls), mas três tipos de desobediência civil: (1) “baseada da integridade” – quando é a consciência que proíbe a obediência –; (2) “baseada na justiça” – quando decorre da oposição não necessariamente conscienciosa a uma política considerada injusta –; e (3) “baseada em política” – quando pretende modificar uma política considerada não injusta ou ilícita, mas apenas errada.

Exemplos ajudam a esclarecer a diferença da segunda para a terceira: àquela corresponde a postura dos “negros que violaram a lei durante o movimento pelos direitos civis, sentando-se em balcões que lhes eram proibidos”; esta, aos “protestos contra a colocação de mísseis norte-americanos na Europa” (DWORKIN, 2019, p. 157-159). Naquela, tratava-se de uma política extremamente injusta, portanto ilícita; nesta última, uma política que, muito embora lícita, julgava-se equivocada.

O primeiro tipo de desobediência é uma questão de urgência (DWORKIN, 2019, p. 159-160); isto é: não é compatível com nenhuma estratégia traçada de antemão. Os outros dois tipos de desobediência comportam estratégias persuasivas – se por meio delas se “espera obrigar a maioria a ouvir os argumentos contra seu programa político” – e/ou não persuasivas – é o caso, quando o desobediente pretende “elevar o custo de dar prosseguimento ao programa que a maioria ainda prefere” (DWORKIN, 2019, p. 160-163). Exemplo daquela estratégia são as próprias ações dos negros nos EUA, em afronta à doutrina do separate but equal (separados mas iguais): sentar no lugar reservado aos brancos nos ônibus apela diretamente ao sentimento de justiça daquele que deve cumprir a ordem de desocupação, levando-o a refletir sobre a justiça da própria lei, e constranger-se com ela. Por outro lado, são estratégias não persuasivas aquelas que não apelam ao senso de justiça do cumpridor da ordem, mas simplesmente elevam o custo político, social ou econômico do cumprimento da ordem, por meio de intimidação, medo, angústia, ou inconveniência; exemplos são a interrupção do tráfego, o bloqueio de importações, a imposição de obstáculos ao funcionamento de órgãos públicos etc.

Dworkin (2019, p. 164-165) observa, com razão, que a adoção de estratégias não persuasivas é extremamente problemática na desobediência civil do terceiro tipo, baseada em política. Isto porque, ao questionar dessa forma a correção de uma decisão política, atinge em cheio o princípio da maioria, mesmo quando essa maioria não está agindo de forma extremamente injusta, portanto ilícita.

Transpondo o modelo de Dworkin para a manifestação aqui analisada, é possível afirmar, com toda a certeza, que o seu mote foi, desde o início, baseado em política: a discordância sobre a correção da decisão política de proibir o funcionamento de estabelecimentos comerciais e industriais. Assim, também o descumprimento à ordem de proibição baseada na ofensa à política estatal de “quarentena” é baseada em política. A desobediência civil, nesse caso, dificilmente poderia dar-se legitimamente por meios não persuasivos.

Porém, não só. Como visto acima, a proibição atinge em cheio também a garantia constitucional de liberdade de reunião e manifestação; independentemente de se considerar lícita ou não a ordem de proibição – e, aqui, já se afirmou que ela deve ser considerada ilícita –, há motivos suficientes para considerá-la extremamente injusta. Faz sentido, assim, a adoção de estratégias não persuasivas nessa desobediência, tal como uma das citadas expressamente por Dworkin (2019, p. 161): “Uma minoria pode elevar o custo, por exemplo, fazendo a maioria escolher entre abandonar o programa e mandá-la para a cadeia”. Foi exatamente o que ocorreu: desobediência civil utilitariamente não efetiva – como se mostrou, em um raciocínio utilitarista –, mas, ainda assim, desobediência civil.

Isso impõe que, caso seja considerada lícita a intervenção restritiva – portanto punível a desobediência –, “os promotores podem e devem levar em consideração” o fato de o ato punível haver sido praticado como forma de desobediência civil (DWORKIN, 2019, p. 169). O mesmo – como destaca Martins (2017, p. 444) – diz-se do Poder Judiciário.

Resta saber se, ao defenderem medidas antidemocráticas, os manifestantes podem ser qualificados como desobedientes civis. É o que se verá adiante.

2.3 Possibilidade de qualificação, como desobediência civil, de ato antidemocrático

Não altera a conclusão o fato de a manifestação reivindicar ações antidemocráticas: como se viu acima, inexiste fundamento constitucional ou legal para proibir manifestações que tão somente reivindiquem – mas não pratiquem atos concretos nesse sentido – atitudes antidemocráticas16.

Há que se concordar com o Governador do Estado do Ceará Camilo Santana (2020), que classificou como: “Inaceitáveis e repugnantes atos que façam apologia à ditadura e que promovam o desrespeito às instituições democráticas, como vimos hoje pelo país. O Brasil não se curvará jamais a esse tipo de ameaça”.

A CRFB, porém, não limita os direitos à livre expressão e reunião e manifestação a um conteúdo correto, ou mesmo a um conteúdo não ignóbil: a autoproteção da CRFB não está em normas constitucionais ou em ideias supraconstitucionais de democracia militante, e sim na “vontade de Constituição [Wille zur Verfassung]” que a concretiza. É essencialmente essa vontade, essa “compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme” (HESSE, 1991, p. 19) que impede que a tolerância democrática converta-se em ameaça à democracia. Vieira (2020) observa que “a melhor defesa da democracia é o compromisso da imensa maioria dos cidadãos e das lideranças políticas e institucionais com as regras do jogo”; Almeida Filho (2019), que o “desejo de defender a democracia existe de alguma maneira no mais recôndito da nossa cultura política. Precisamos transformar esse lampejo cidadão em um sentimento permanente de resistência democrática e constitucional”.

Cabe à constituição definir o nível de autoproteção, e esta decisão é complexa: quais são os contornos precisos da tolerância que uma ordem constitucional deve ter quanto a opiniões divergentes, mesmo que antidemocráticas? Um dos axiomas da teoria de Dahl (2005, p. 37) é que quanto “mais os custos da supressão excederem os custos da tolerância, tanto maior a possibilidade de um regime competitivo”. Para ele:

Não se deve esperar que opositores em conflito se tolerem mutuamente se um deles acredita que a tolerância do outro provocará a sua própria destruição ou um grave dano. A tolerância mais provavelmente se estenderá e perdurará apenas entre grupos que presumivelmente não provocarão, danos graves. Assim, os custos da tolerância podem ser reduzidos pelas garantias mútuas efetivas contra a destruição, a coerção extrema ou danos graves. Daí que uma estratégia de liberalização requer a busca de tais garantias (DAHL, 2005, p. 202, grifo nosso).

A vontade constitucional de máxima ampliação do espaço público para opiniões plurais, sendo tolerante mesmo com opiniões extremas tem um custo, que é o da abertura a opiniões nefastas, e mesmo antidemocráticas. O custo inverso, por outro lado, seria também elevado: o risco de utilização da acusação de “antidemocracia” para perseguir adversários políticos dos detentores do poder político (VIEIRA, 2020) – supostamente justificando, por exemplo, a supressão de um direito fundamental político de um indivíduo. Levitsky observa que: “Se você der ao governo o poder de definir um protesto como ilegítimo, o direito de protestar estará em perigo. É preferível errar e permitir até mesmo protestos antissistema [...]” (VEIGA, 2020). A CRFB considerou que o rompimento da tolerância mútua, a permanente ameaça da acusação de “antidemocrático” representaria um perigo maior que a liberalização da expressão de opiniões antidemocráticas.

A inevitabilidade desta escolha trágica foi notada por Otero (2001, p. 233-236), para quem o passo para fora da neutralidade constitucional liberal, por meio da implantação de uma democracia militante, acaba “por comportar uma redução da liberdade política e da natureza plural do sistema partidário”, representando “sempre em Constituições de países democráticos uma forma de discriminação ideológica”. À pergunta-cerne deste debate – “Será, porém, que um tal preço não se mostra excessivo, se não mesmo incongruente com os próprios postulados da democracia?” –, responde que restrições fundamentadas na autoproteção democrática lançarão “sempre a suspeita sobre o exacto grau de representatividade [...] [das] forças marginalizadas do sistema político, debilitando o grau de legitimidade das forças políticas democráticas”.

Por mais que se tenha a convicção pessoal de que a democracia é o único caminho possível – assertiva com a qual se concorda, com efusão –, a CRFB garante os direitos fundamentais de liberdade de expressão e de reunião e manifestação para que se diga quase qualquer coisa: tanto o inciso IX como o inciso XVI do art. 5° da CRFB estabelecem as garantias sem nenhuma espécie de restrição. Diz-se quase qualquer coisa porque, evidentemente, nenhuma garantia é ilimitada. É possível que se restrinja o âmbito protegido mesmo dos direitos fundamentais garantidos sem reserva (CANOTILHO, 2003, p. 451). Essas restrições e intervenções restritivas, porém, somente podem decorrer da necessidade de proteção de outros bens e direitos de grande relevância – dentre os quais a CRFB não inclui um “direito à democracia” ou um “bem jurídico democracia”.

Por esse motivo, o Min. Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, deixou de acolher, em 7 maio 2020, o pleito apresentado na Pet 8830, contra realização de carreata que tinha como finalidade manifestar-se no sentido de “dar cabo a essa patifaria estabelecida no País e representada (a patifaria) por aquela casa maldita do Supremo Tribunal Federal – STF, com seus 11 (onze) ‘gângsteres’, que têm destruído a Nação”. O fundamento para a decisão, na linha do aqui exposto, foi “que se mostra frontalmente inconstitucional qualquer medida que implique a inaceitável ‘proibição estatal do dissenso’ ou a livre manifestação do pensamento” (BRASIL, 2020c).

Não há, na CRFB, uma reserva geral contra exercícios com viés antidemocrático. Muito pelo contrário, assim como na realidade constitucional portuguesa – comentada por Vieira de Andrade (1998, p. 155, grifo nosso) –, no Brasil:

Deve-se entender que as liberdades não estão funcionalizadas, ou seja, não são reconhecidas aos indivíduos para a prossecução de determinados fins sociais, que forneceriam os critérios de concretização do seu conteúdo e de controle do seu bom exercício. O conteúdo das liberdades de actuação é, em princípio, determinado pelos seus titulares e, na dúvida, abrange todas as situações ou formas de exercício.

Vieira de Andrade (1998, p. 65) foi muito feliz ao concluir que, uma vez admitida a funcionalização dos direitos fundamentais proposta pela teoria democrática, a “garantia da liberdade passa a ser um meio (e não um fim), tal como se o processo democrático fosse o verdadeiro sujeito de direitos fundamentais”. Segundo a CRFB, não é.

Conclusão

Streck (2019), representando amicus curiae em julgamento do Supremo Tribunal Federal, declarou de forma espirituosa que viera “como amigo da corte e não como inimigo, pois isso a corte já tem demais”. É impossível não o parafrasear: este trabalho vem como amigo da CRFB e da democracia, porque elas já têm inimigos demais.

Defender a possibilidade de ocorrência de uma manifestação antidemocrática não é, de forma nenhuma, atentar contra a democracia. Muito menos desrespeitá-la. Ao contrário, é honrar a CRFB e a democracia que a instaurou e foi instaurada por ela. As escolhas da CRFB foram escolhas democráticas – se não o fossem, ela não seria uma “constituição cidadã” –, e devem ser respeitadas, por mais que o senso de justiça do jurista indique outra direção, e sugira restrições aos direitos fundamentais alheios.

É moralmente errado defender o fim da democracia. Mais que isso: é um erro ignóbil. A CRFB, porém, não proíbe que se cometam erros e profiram-se parvoíces; não permite, por outro lado, que alguém, sem fundamento na própria CRFB, arrogue-se o direito de ditar o que é democrático e o que é antidemocrático; proíbe, por fim, que se intervenha restritivamente em direitos fundamentais, salvo com autorização constitucional ou legal justificada na CRFB.

Manifestações pacíficas e sem armas podem ser realizadas durante o período de “quarentena” para combate ao coronavírus covid-19 – ainda que, para tanto, possam ser impostas medidas que assegurem que a realização das manifestações não acarretará danos desproporcionais à saúde pública, por exemplo. A proibição abstrata de realização de manifestações durante o período de “quarentena” estabelecida por decreto é uma grave ofensa aos direitos fundamentais. Não é justificável a proibição abstrata nem mesmo se as manifestações tiverem como mote expressões antidemocráticas.

Assim, é compreensível que os manifestantes destinatários de uma ordem de dispersão de uma manifestação sintam-se objeto de graves ilicitude e injustiça. Nesse contexto, é justificável o apelo à desobediência civil, o que impõe que – mesmo se ao final se concluir que a ordem estatal foi lícita – a natureza do ato político seja considerada, no momento de sancionamento. Isso, ainda que se trate de manifestações – lamentavelmente – antidemocráticas.

Referências

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1 Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Doutora em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e pela University of Arizona, EUA; Universidade de Fortaleza, Programa de Mestrado e Doutorado em Direito Constitucional PPGD Unifor, Av. Washington Soares, 1321 Edson Queiroz CEP 60811-905 Fortaleza-CE, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-2363-2791; juliapla@placoelho.com.

2 Doutorando em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Mestre em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Universidade de Fortaleza, Programa de Mestrado e Doutorado em Direito Constitucional – PPGD Unifor, Av. Washington Soares, 1321 – Edson Queiroz – CEP 60811-905 – Fortaleza-CE, Brasil; https://orcid.org/0000-0002-1736-6493; fabiopeixoto@edu.unifor.br.

3 Langworth (2009), biógrafo de W. Churchill, esclarece que o discurso em questão foi proferido em 11 nov. 1947, na House of Commons, porém a frase foi atribuída pelo próprio político britânico a outra pessoa: “Indeed it has been said that democracy is the worst form of Government except for all those other forms that have been tried from time to time”.

4 “In this sense, democracy has to be redefined. It should be – at least for the transitional stage until a better social adjustment to the conditions of the technological age has been accomplished – the application of disciplined authority, by liberal-minded men, for the ultimate ends of liberal government: human dignity and freedom”.

5 Refere-se a uma ponderação em sentido amplo, de ação com reflexão, não em sentido alexyano.

6 “Denn nur hier ist der individuelle Grundrechtsmißbrauch unmittelbar mit dem Schutz der freiheitlich-demokratischen Grundordnung aufverfassungsrechtlicher Ebene konfrontiert”.

7 “Art. 18 GG dient der Abwehr künftiger möglicher Gefahren, nicht der Sanktionierung vergangenen Verhaltens. Letzteres ist dem repressiven Strafrecht überlassen. Dem Verfassungsgesetzgeber genügte ein repressiver Schutz gerade nicht. Vielmehr verwirklicht es das Konzept der „streitbaren Demokratie“ und er soll dem Staat die Möglichkeit geben, frühzeitig – ohne ein strafbares Verhalten abwarten zu müssen – gegen den Einzelnen vorzugehen”.

8 Outro bom exemplo é a “ideia legislativa” de “implantação no Brasil da Monarquia Presidencialista”: “Como o rei não é eleito, sua visão da coisa pública é diferente de um político. Ele não precisa roubar, uma vez que ele não tem mandato, e por isso não depende de apoio do Congresso Nacional ou do Poder Judiciário e também não vai deixar roubar”. Essa ideia esdrúxula encontra-se no sítio eletrônico do Senado Federal (ou seja: a reivindicação de suicídio constitucional foi tão bem tolerada, que chegou a ser publicada em um sítio eletrônico de um dos Poderes do Estado) (COSTA, 2017).

9 Há, ainda, a previsão de decretação do estado de defesa e do estado de sítio, que pode restringir ou suspender o direito de reunião (art. 136. § 1°, e art. 139, IV, da CRFB) (BRASIL, 1988). A constitucionalidade de eventual decretação de estado de sítio em razão da pandemia de coronavírus covid-19 foi rechaçada pela Ordem dos Advogados do Brasil, em parecer cuja conclusão merece ser citada: “Não há dúvida de que a situação atual produz sensação de pânico e de temor na população. Esses sentimentos não podem, no entanto, ser explorados para autorizar medidas repressivas e abusivas que fragilizem direitos e garantias constitucionais” (ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, 2020.)

10 Pacificidade e inexistência de armas portadas são limites ao direito fundamental de reunir-se pacificamente. À pacificidade opõe-se a belicosidade, “que traz em si o significado de agressividade, ao qual devem ser agregadas as ideias de ‘alcance intimidatório para terceiros’ e de ‘alguma gravidade’”. Serão portanto pacíficos os manifestantes que não agridam ou intimidem física ou psiquicamente, de forma relevante (bloqueios sentados em vias públicas, por exemplo, não necessariamente ficam à margem da proteção jusfundamental) (PEIXOTO, 2019, p. 77-85).

11 Não se analisam aqui expressões de ideias antidemocráticas pelo Presidente da República ou por Ministros de Estado que possam ser qualificáveis, em tese, como crimes de responsabilidade. Por exemplo: “provocar animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as instituições civis” (art. 7°, 8, da Lei 1.079, de 1950) (BRASIL, 1950).

12 Ou, excepcionalmente, por decretos de estado de defesa ou de sítio.

13 Bom exemplo disso, no plano internacional, é a diretriz de OMS de que nem todas as reuniões de massa devem ser canceladas: “As each international mass gathering is different, the factors to consider when determining if the event should be cancelled may also differ. Any decision to change a planned international gathering should be based on a careful assessment of the risks and how they can be managed, and the level of event planning. The assessment should involve all stakeholders in the event, and in particular the health authorities in the country or community where the event is due to take place. These authorities and stakeholders are in the best position to assess the level of stress the event might place on the local health system and emergency services – and whether this level of stress is acceptable in the current situation” (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020).

14 O exemplo não é aleatório: mesmo Hungria (1959, p. 101), que sustenta que a fuga de campo de concentração (!) corresponde à hipótese penal, conclui que: “A competência da autoridade de que emana a determinação (cabimento dos limites do poder de polícia), pode ser examinada pelo juiz”. Surpreende que, passados mais de trinta anos da CRFB, ainda se defendam ideias semelhantes, sem a ressalva do controle sobre a competência constitucional para intervenção sobre direitos fundamentais (neste sentido, cf. PALHARES, 2020).

15 “Wenn ich höre, alles andere habe vor dem Schutz von Leben zurückzutreten, dann muss ich sagen: Das ist in dieser Absolutheit nicht richtig‘”.

16   Este não é o entendimento de Martins (2017, p. 455-456), para quem não a CRFB não conferirá proteção jusfundamental “quando uma reunião tiver por precípuo escopo atacar a ordem constitucional [...]. Lembre-se, aqui, do conceito de ‘democracia militante’, segundo o qual a ordem constitucional democrática deve ser apta a responder, sem quebra institucional e violação de direitos de minorias ideológicas, de maneira idônea, aos ataques provenientes de radicais à direita ou à esquerda do espectro político-ideológico”. Martins, na nota de rodapé 73, remete ao já citado artigo de Löwenstein, e faz referência à Lei Fundamental alemã. Deixa, porém, de realizar uma análise comparada – como a que aqui se propôs a fazer – entre aquela ordem constitucional e a brasileira.