https://doi.org/10.18593/ejjl.24027
Notas sobre os assim chamados “litígios climáticos” na Alemanha – O Caso Lliuya Vs. Rwe
Notes on so-called “climate litigation” in Germany: The Lliuya V. Rwe Case
Ingo Wolfgang Sarlet1
Gabriel Wedy2
Resumo: O amplamente difundido e cada vez mais desenvolvido direito das mudanças climáticas, tem levado também a um incremento do número de litígios em esfera judicial, administrativa, arbitral, seja no plano do direito interno dos Estados, seja no âmbito do direito internacional público e privado. Nesse sentido, a análise de casos concretos, à luz de precedentes judiciais e não judiciais se revela fundamental, porquanto necessária ao desenvolvimento, tanto de uma teoria, quanto de uma prática eficaz da litigância ambiental. Dentre os países que mais se destacam historicamente em termos de legislação, literatura e jurisprudência relativamente à proteção do ambiente, inequivocamente a Alemanha ocupa posição cimeira. Diversos litígios climáticos e respectivas decisões judiciais têm merecido um olhar atento dos observadores externos com vistas à sua análise do ponto de vista comparativo. No presente texto, o que se pretende é apresentar e discutir é uma das demandas judiciais climáticas que mais ganhou notoriedade, designadamente, o caso Lliuya v. RWE, objeto precípuo do presente estudo e que aqui se procura apresentar e analisar, na perspectiva de sua relevância para uma boa litigância climática. Outrossim, tal análise será levada a efeito mediante a inserção do precedente referido no contexto mais alargado do direito ambiental e da litigância ambiental na Alemanha.
Palavras-chave: Direito Ambiental. Mudanças Climáticas. Litigância Climática. Alemanha.
Abstract: The widespread and increasingly developed climate change law has also led to an increase in of litigation in the judicial, administrative, arbitration sphere, both in terms of the domestic law of States, and in the scope of public and private international law. In this sense, the analysis of concrete cases, in the light of judicial and non-judicial precedents, is fundamental, as it is necessary for the development of both a theory and an effective practice of climate litigation. Among the countries that stand out most historically in terms of legislation, literature and jurisprudence in relation to the protection of the environment, unequivocally Germany occupies the top position. Several climate disputes and respective judicial decisions have deserved a close look from external observers with a view to their analysis from a comparative point of view. In the present essay, what is intended is to present and discuss is one of the climate litigation case that has gained the most notoriety, namely, the Lliuya v. RWE, the main object of the present study and which is sought to be presented and analyzed here, from the perspective of its relevance for good climate litigation. Furthermore, such an analysis will be carried out by inserting the precedent mentioned in the broader context of environmental law and environmental litigation in Germany.
Keywords: Environmental Law. Climate Change. Climate Litigation. Germany.
Recebido em 22 de abril de 2020
Aceito em 23 de abril de 2020
Introdução
O crescimento exponencial do número de casos judiciais envolvendo litígios climáticos é dado que facilmente se acessa na rede mundial de computadores, o que, contudo, não constitui, como anunciado no título e explicitado no resumo, o objeto do presente texto, que, apenas para relembrar, tem por escopo contextualizar, apresentar e analisar, na perspectiva da ordem jurídica alemã, o litígio mais importante submetido ao crivo do Poder Judiciário da Alemanha,3 designadamente, o caso Lliuya v. RWE AG,4 ainda em tramitação.
A demanda foi proposta por fazendeiro peruano, Saul Lliuya, residente em Huaraz (Peru), perante a Corte Regional de Essen, contra a maior produtora de energia elétrica alemã, a Rheinisch-Westfälisches Elektrizitätswerk AG (Rhenish-Westphalian Power Plant ou RWE), instalada na região de Essen, no norte do Reno. Em apertada síntese, Lliuya alegou, em seu pedido, que a RWE tinha pleno e total conhecimento que as emissões de gases de efeito estufa, em face de sua atividade, em alguma medida, contribuíam para o derretimento no gelo no topo das montanhas perto de Huaraz, colocando em risco os seus 120 mil habitantes (SABIN CENTER FOR CLIMATE CHANGE LAW, 2015). De acordo com o autor, o Lago Palcacocha, localizado acima da cidade de Huaraz, teve um notável aumento em seu volume, desde 1975, quadro que se agravou a partir do ano de 2003.
A relevância e o impacto do referido litígio, inclusive pela sua dimensão transnacional e multidimensional, envolvendo também o crescente problema (em si nada novo) da vinculação do poder econômico (das empresas/corporações) ao direito internacional, destaque para os direitos humanos, bem como da consequente possibilidade de sua responsabilização pela via judiciária, o tem tornado alvo da atenção internacional, inclusive no meio acadêmico.
Além disso, como já se deu em tantos outros casos envolvendo ações e/ou omissões de atores privados resultantes em danos ambientais expressivos, não raras vezes insuscetíveis de integral reparação, o caso aqui posto em evidência, apresenta algumas peculiaridades dignas de nota, que lhe asseguram uma posição de destaque na seara da assim chamada litigância climática.
O conhecimento do caso, assim como de suas circunstâncias e peculiaridades, por sua vez, ademais de sua inserção no contexto da ordem jurídica alemã, podem contribuir inclusive para o desenvolvimento da teoria e prática brasileira no tocante aos litígios climáticos, ainda em fase embrionária no Brasil, ressalvado, é claro, expressiva tradição no tocante a judicialização de questões ambientais em dezenas de milhares de demandas, muitas das quais levadas às cortes superiores.
Com isso não se pretende, calha sublinhar, passar a mensagem de que se pretenda convencer o meio jurídico brasileiro a recepcionar, ainda mais sem filtragem, o direito positivo alemão, a jurisprudência e a doutrina alemã sobre mudanças climáticas e a responsabilidade de atores públicos e privados por danos passados, atuais e futuros.
O que se intenta, reitere-se, é apresentar e discutir como a ordem jurídica alemã, aqui em sentido amplo, tem lidado com a matéria, quais os problemas e desafios enfrentados, com foco, reitere-se, nas possibilidades e limites da litigância ambiental.
Para tanto, inicia-se com algumas notas sobre o sistema de responsabilidade civil alemã, em especial no que diz respeito a danos ambientais vinculados às mudanças climáticas (2), para, na sequência, enfrentar o problema da responsabilização, na esfera cível, de empresas em virtude da violação de direitos humanos em geral e do direito e deve de proteção ambiental em particular (3); No segmento seguinte, serão expostos os fundamentos jurídicos esgrimidos pelo autor da demanda (4); passando-se à apresentação dos fundamentos da decisão da Corte Regional de Hessen, bem como dos argumentos invocados no bojo da apelação, ainda pendente de julgamento, interposta perante o Tribunal Superior Estadual (Oberlandesgericht – equivalente aos Tribunais de Justiça estaduais brasileiros) da Alta Renânia, sediado na cidade de Hamm (5); na sequência tecem-se comentários sobre a vinculação das empresas aos direitos humanos (6); para, ao final, arriscar uma síntese conclusiva, acompanhada de algumas notas críticas direcionadas ao direito das mudanças climáticas na Alemanha (7).
1 Notas acerca do sistema de responsabilidade civil por danos ambientais climáticos na Alemanha
Embora não exista legislação específica para a apuração da responsabilização civil dos emissores de gases de efeito estufa pelos danos decorrentes das mudanças do clima, a legislação alemã possui disposições no âmbito da responsabilidade civil e da responsabilização do poder público mas suas mais diversas manifestações, que podem, em tese, ser invocadas em litígios climáticos. Aliás, sobre o princípio da responsabilidade no contexto da revolução tecnológica, é de um expoente da filosofia de língua alemã, possivelmente a, ou, pelo menos – à vista da evolução em termos quantitativos e qualitativos – da literatura na área, uma das mais importantes obras sobre o tema, traduzida e lida em todos os continentes, nomeadamente o livro Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethik für die tecnologishe Zivilisation, 1979), da autoria de Hans Jonas.5
De fato, para além de fundamentos, políticos e morais da responsabilidade pelos danos causados, o Direito, na condição de estrutura normativo-institucional reguladora das relações políticas, econômicas, sociais, culturais e ambientais, dispõe de instrumentos organizacionais e procedimentais para o reconhecimento da responsabilização dos emissores de gases de efeito estufa causadores das mudanças do clima e de suas catastróficas consequências que tem se expandido nos últimos anos de modo alarmante.
Sem que se possa desenvolver o ponto, importa destacar que a Lei Fundamental da Alemanha, assegura – também para o direito ambiental – um robusto sistema de proteção judiciária, abarcando a possibilidade de controle judicial de toda sorte de ações e omissões por parte de atores privados e do poder público (nas suas três funções), incluindo um eficaz controle de constitucionalidade em abstrato e uma paradigmática reclamação constitucional criada especificamente para permitir a qualquer cidadão e mesmo pessoas jurídicas, o acesso direto ao Tribunal Constitucional Federal (HILLGRUBER; GOOS, 2015).
Todavia, calha anotar que o controle judicial em casos ambientais não é irrestrito, sofrendo limitações importantes de acordo com a Corte Federal Administrativa (Bundesverwaltungsgericht), nomeadamente: a- standards ambientais devem ser estabelecidos por atos administrativos; b- a autoridade competente deve elaborar e/ou confirmar laudos periciais, ou afastar as conclusões técnicas sobre sua própria responsabilidade; c- standards ambientais devem ser racionalmente determinados, baseados em presunções suficientes e conservadoras, e precisam levar em conta dados técnicos e científicos; d- standards ambientais não podem ser antiquados (superados), não comprovados ou, por outro lado, serem cientificamente questionáveis (KNOPP, 2008, p. 71).
É, portanto, considerando tal cenário geral, aqui descrito em apertadíssima síntese, que, pelo menos até o presente momento, que os litígios climáticos devem ser instaurados, processados e julgados na Alemanha.
Para uma melhor compreensão do direito material incidente em tais situações, relativamente à responsabilidade civil, calha anotar, à guisa de preliminar, que o sistema de responsabilidade civil por danos ambientais na Alemanha estrutura-se a partir e em torno de três pilares, designadamente: a) responsabilidade fundada na culpa; b) responsabilidade independente de culpa no âmbito das relações de vizinhança; c) responsabilidade objetiva (Gefährdungshaftung) (SPARWASSER; ENGEL; VOSSKUHLE, 2010, p. 120).
1.1 Responsabilidade civil baseada na culpa e os litígios climáticos
A responsabilidade civil fundada na culpa, assim chamada responsabilidade aquiliana, à falta de legislação específica na esfera ambiental, tem sido regulada pela cláusula geral do Código Civil alemão (BGB), no seu § 823, I. De acordo com o referido preceito legal, aqui transcrito mediante tradução livre, dispõe que: “aquele que com intenção ou por negligência lesione ilegalmente a vida, o corpo, a saúde, a liberdade, a propriedade ou um outro direito de outra pessoa, será obrigado a reparar os danos resultantes.”6
Portanto, para a incidência da responsabilização civil, deve existir lesão de um direito protegido. Bens ambientais ou o clima, não fazem – de per se – parte desse rol de direitos tutelados (KAHL; HILBERT; DAEBEL, 2018, p. 1).
A despeito disso, para alguns juristas, é possível reconhecer que os bens ambientais, como o ar puro, a água limpa e o solo livre de contaminação, podem ser enquadrados na categoria “outro direito de outra pessoa”, no sentido daqueles tutelados pelo § 823, I, do BGB (KAHL; DAEBEL, 2019, p. 70). O argumento, se aceito, serve também para a proteção do clima e responsabilização de eventuais emissores de gases de efeito estufa. Todavia, a exemplo do que sustenta parte da doutrina, o reconhecimento como outro direito, pode ser considerado uma quebra do sistema erigido pelo § 823, que apenas protege direitos individuais (KAHL; HILBERT; DAEBEL, 2018, p. 1).
Como se observa, a responsabilidade civil, de acordo com o § 823, I, do BGB pode, no máximo, servir para reparar danos decorrentes das mudanças climáticas indiretamente pelo sistema de imputação quando direitos expressamente protegidos, como à propriedade e à saúde, são violados. Apenas a invocação do instituto da responsabilidade civil não é suficiente para amparar pleitos de reparação de danos decorrentes das mudanças do clima, de acordo com a referida disposição legal (KAHL; DAEBEL, 2019, p. 70).
1.2 Da responsabilidade sem culpa
De acordo com o § 906 do BGB, o proprietário de um terreno deve tolerar a introdução de gases, de vapor, de odores, de fumaça, de fuligem, do calor, do barulho, das vibrações ou das influencias similares que emanam de outro terreno, no seu domínio, à medida em que a influência desses agentes não interfere no uso da propriedade, o mesmo se verificando quando esse uso afetar apenas de modo insignificante a propriedade (KAHL; DAEBEL, 2019, p. 70).
Todavia, a teor do disposto, no §906, II, do BGB,7 a solução é diversa quando a interferência fática é causada pelo uso normal do outro terreno (fonte de poluição) e não pode ser impedida mediante medidas que são financeiramente razoáveis para os proprietários daquele imóvel. Nas situações em que um proprietário é obrigado a suportar e tolerar os efeitos do uso da propriedade de outra pessoa, lhe é assegurada a possibilidade de exigir do proprietário do terreno gerador da poluição ou inconveniente, uma compensação razoável em dinheiro, designadamente no caso de prejuízo ao uso ou à renda auferida pelo uso da sua propriedade. Desde que o inconveniente suportado pelo proprietário do terreno atingido seja superior ao grau suportável, de acordo com o § 906 II do BGB, lhe é concedido o direito de ser indenizado independentemente da verificação de culpa do emissor (KAHL; DAEBEL, 2019, p. 71).
Calha destacar que o dispositivo legal referido, tornou-se uma espécie de cláusula catch-all para a reparação de danos causados ao ar e solo, porquanto tais bens não são tutelados por preceitos legais específicos. Danos causados à qualidade da água, por exemplo, são tutelados pelo § 89 da Lei Federal da Água (Wasserhaushaltsgesetz). Assim, referida cláusula geral pode, em tese, abranger danos climáticos (KAHL; HILBERT; DAEBEL, 2018, p. 2). A grande dificuldade, contudo, é que o § 906 II do BGB é aplicado apenas em áreas vizinhas e exige um impacto sobre a propriedade de determinada pessoa, que seja originário de propriedade lindeira ou localizada nas cercanias; além disso, não se pode olvidar outro obstáculo evidente à responsabilização cível, designadamente quando existem várias e distintas fontes emissoras de gases de efeito estufa (KAHL; DAEBEL, 2019, p. 70).
À vista do exposto, nota-se que os dispositivos legais citados, podem, em tese, ser invocados no âmbito de litígios climáticos, como fundamento jurídico para pleitear a reparação de danos decorrentes de emissões causadas por fatores antrópicos. Ademais disso, resulta evidente que o BGB, quando elaborado, não estava inserido num Mundo marcado pelas mudanças do clima e da necessidade de uma reação eficaz por parte das ordens jurídicas, no sentido de assegurar, dentre outros aspectos, a responsabilização cível em virtude dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais gerados por catástrofes ambientais (WEDY, 2018).
1.3 Da responsabilidade objetiva em sentido estrito
A terceira categoria de responsabilização civil no Direito alemão é a da responsabilidade objetiva em sentido estrito. De acordo diversos dispositivos legais, as pessoas são responsáveis quando estabelecem ou criam situações de risco especiais que não podem, evidentemente, ser integralmente controlados, em que pese a adoção de medidas de cautela da mais diversa natureza; aliás, calha invocar, nesse contexto, a conhecida lição de Ulrich Beck sobre aquilo que designou de utopia do risco zero (BECK, 1997).
Note-se, ainda, que em casos como os colacionados, a responsabilidade independe da legalidade da conduta do agente e de eventual apuração de culpa. Embora não esteja prevista em legislação a responsabilidade climática, existem cláusulas que preveem a responsabilidade objetiva no direito alemão como o § 25 da Lei Nuclear (Atomgesetz), o § 32 da Lei de Engenharia Genética (Gentechnikgesetez) além do já mencionado § 89 da Lei Federal da Água (Wasserhaushaltsgesetz) (KAHL; DAEBEL, 2019, p. 71). Existe, portanto, possibilidade e campo fértil para a evolução no plano legislativo no sentido da criação de normas específicas de responsabilidade civil para a tutela do clima e para a responsabilização dos emissores de gases de efeito estufa que permitam uma responsabilização, sem grandes e rigorosas exigências para apuração do nexo de causalidade, em face justamente da sociedade de risco de catástrofes dos dias atuais.
1.4 Responsabilidade por ação sem autorização específica e o enriquecimento ilícito
Pode-se ainda mencionar a responsabilidade por ação, sem autorização específica, ou por enriquecimento ilícito de terceiro, nos casos em que o proprietário remove algo proveniente de outrem, causador de transtorno ou distúrbio, de acordo com o § 1004 (1) do BGB (BUNDESMINISTERIUM DER JUSTIZ UND FÜR VERBRAUCHERSCHUTZ, 2020b). Neste caso, o proprietário que remove a causa do transtorno a que não deu causa, tem o direito de ser reembolsado dos gastos efetuados com o seu ato decorrente de ação sem autorização específica e, também, para evitar o enriquecimento ilícito daquele que se beneficia desta remoção. O causador originário do transtorno ou proprietário da coisa que o gera, portanto, pode ter que reparar o dano nestes casos sofridos por aquele que remove ou afasta referida perturbação (KAHL; HILBERT; DAEBEL, 2018). Referida disposição poderia ser utilizada para responsabilizar civilmente os emissores a indenizar obras de infraestrutura de proteção de propriedades públicas e privadas vulneráveis aos eventos climáticos extremos.
1.5 Responsabilidade pública de agentes não estatais
Quando as normas de responsabilidade civil não abrangem todas as condutas do poluidor, prevalece, no direito alemão, a legislação específica que regula a reponsabilidade pública de agentes não estatais. Referidas normas devem ser aplicadas quando não incidentes ou insuficientes as normas previstas no Código Civil. Nesse sentido, existem a Lei Federal de Controle das Emissões (Bundesimmissionsschutzgesetz) e a Lei de Prevenção e Reparação de Danos Ambientais (Umweltschadensgesetz) (KAHL; DAEBEL, 2019, p. 71-72). Companhias produtoras de energia movidas por combustíveis fósseis, podem, portanto, ser responsabilizadas com base nesta legislação especial. Permanece, no entanto, a dificuldade de demonstração do nexo de causalidade entre as emissões de gases de efeito estufa pelos entes não estatais e os danos causados as pessoas e as propriedades.
De todo modo, segue, em apertada síntese, uma apresentação dos dois diplomas legais acima referidos:
1.5.1 A Lei Federal de Controle das Emissões
O § 14 da Lei Federal de Controle das Emissões complementa o § 906 II (2) do BGB, permitindo o ajuizamento de demandas por impactos que não podem ser razoavelmente previstos decorrentes de emissões permitidas pelo Poder Público. Referida disposição, portanto, inicia a sua esfera regulatória onde termina a tutela que emana do § 906 II (2) e, exige, para sua incidência, impacto de grande dimensão para que possa incidir o seu caráter reparatório. Apenas o vizinho pode ser autor e unicamente o poluidor lindeiro pode ser réu o que faz com que referida disposição de controle de emissões tenha um âmbito restrito de incidência e não possa regular de modo suficiente as emissões causadoras das mudanças do clima de acordo com a interpretação sobre a referida legislação até o momento (KAHL; DAEBEL, 2019, p. 71).
1.5.2 Lei de Prevenção e Reparação de Danos Ambientais
A Lei de Prevenção e Reparação de Danos Ambientais cobre e regulamenta danos ambientais puros, quando não existem danos diretos a parte como, por exemplo, um dano à propriedade ou à saúde. Em casos de perigo imediato de dano ambiental, a pessoa responsável, deve agir para evitar o dano (§5); caso este já tenha ocorrido, o responsável tem o dever de repará-lo (§6) e pagar todos os custos desta reparação (§9).
Note-se que a referida legislação abrange apenas os danos às espécies e ao seu habitat natural, águas e solo (§3 I, 2 Nr.1.). O clima, portanto, não está contemplado entre os bens ambientais tutelados, de tal sorte que o diploma legal ora apresentado não é, em si, um instrumento próprio para a proteção climática (KAHL; HILBERT; DAEBEL, 2018, p. 3).
Ainda que o objeto da referida legislação fosse ampliado, de modo a abranger danos climáticos, a responsabilização tem como pressuposto a existência de um ente ou pessoa responsável que, para os fins da legislação (§2 Nr.3), é aquela que diretamente causou o dano ou o perigo imediato.
Outrossim, calha anotar, inexiste uma regra de presunção de responsabilidade civil na lei, de tal sorte que, existindo causas ou fontes múltiplas para as emissões, nenhuma delas pode ser considerada uma causa adequada para o dano. Portanto, a responsabilização dos réus, com base na Lei de Prevenção e Reparação de Danos Ambientais, resulta complicada quando se trata da judicialização da questão (KAHL; HILBERT; DAEBEL, 2018, p. 4).
1.6 A responsabilidade civil do Estado
A responsabilidade civil do Estado pode ser cogitada quando falham as demandas direcionadas a determinadas pessoas físicas ou jurídicas, dada a ausência da demonstração do nexo causal entre as emissões das pessoas jurídicas responsáveis e os danos causados.8 Uma alternativa, discutida da doutrina, seria a da responsabilização do Estado pela iniciativa na permissão ou autorização de funcionamento das fontes emissoras, ou mesmo por mera tolerância em relação às emissões. Existem, portanto, várias alegações possíveis de serem articuladas contra o Estado em ações judiciais, de acordo com o direito alemão (KAHL; DAEBEL, 2019, p. 73).
Contudo, importante referir que não há responsabilidade do Estado em casos de danos temporalmente distantes e de fontes poluidoras cumuladas. Outro obstáculo considerável, é o de que quem produz as emissões, de acordo com a Lei Federal de Controle das Emissões (Bundesimmissionsschutzgesetz), deve ser um particular e não o Estado (KAHL; HILBERT; DAEBEL, 2018, p. 5).
É possível cogitar, sem sombra de dúvida, agora a partir de um outro olhar, da responsabilização do Estado por danos climáticos, no âmbito internacional. Como refere Verheyen, a responsabilização estatal é de grande importância para os países, como meio de fazer cumprir o direito internacional e suas disposições em relação à reparação danos. A base do direito sobre a responsabilidade estatal é um conceito objetivo de agir mal, que é cometido com a violação do direito internacional. A responsabilidade do Estado pode e deve ser invocada no âmbito do direito internacional primeiramente para cumprir deveres de prevenção e também para buscar a reparação decorrente dos impactos causados pelas mudanças do clima.9
2 Os fundamentos jurídicos do pedido no litígio lliuya Vs. Rwe
Lliuya embasou a sua ação no Código Civil alemão, que, além de prever instrumentos jurídicos para impedir o os danos e riscos causados por determinadas atividades, também assegura medidas de proteção em regime de urgência. Na sua petição inicial, Lliuja requereu que o Tribunal de Essen declarasse que a RWE era, em parte, responsável pelos custos relacionados ao aumento do lago. Também foi requerido que a Corte condenasse a RWE a reembolsar a parte autora pelo custo das medidas com as quais já havia arcado para proteger a sua casa e, ainda, que pagasse à Associação Comunitária de Huaraz 17 mil euros com a finalidade de construir sifões, drenos e diques para proteger a cidade. O valor postulado teve como base o fato de que, segundo a parte autora, a RWE emite aproximadamente 0,47% das emissões mundiais de gases de efeito estufa (DAVID, 2016).
Como já referido, de acordo com o § 1004 (1), do Código Civil alemão, o proprietário que remove algo que restringe, prejudica ou afeta a sua propriedade, pode ser reembolsado pelos gastos efetuados. A demanda pode ser fundamentada juridicamente com base no instituto da ação sem autorização específica (§§ ٧٨٣, ٦٧٠, ٦٧٠, ٦٧٧ BGB, ou § § ٦٨٤, ٨١٢ do BGB) ou pelo do enriquecimento injustificado (§812 (1) Var.2 do BGB). É pré-requisito legal que o réu seja o “perturbador” (Störer), no sentido do disposto no § 1004 (1) do BGB. Este é o caso, quando existe uma conexão causal adequada entre uma imediata, ou indireta ação ou omissão, do poluidor, contrária a um dever e a restrição à propriedade (SABIN CENTER FOR CLIMATE CHANGE LAW, 2015).
3 Dos fundamentos da decisão da Corte Regional de Essen
O pleito formulado por Llyuja, contudo, não foi julgado procedente pela Corte Regional de Essen, pelas razões que ora serão apresentadas em síntese.
Um primeiro argumento esgrimido pelo colegiado que julgou o caso, foi o de que a conduta da RWE não poderia ser considerada, no tocante à causalidade, uma conditio-sine- qua-non, visto que a ação da ré poderia ser entendida, no máximo, como uma causa cumulativa, considerando a existência de muitos emissores de CO2 e de gases de efeito estufa em todo o Mundo. Mediante tal critério, ainda segundo a Corte, nenhuma ação pode ser considerada quando da análise do nexo de causalidade, se por si só, ao ser suprimida, for irrelevante para a causa de eventual dano. As emissões da RWE poderiam ser vedadas ou interrompidas sem que necessariamente o risco de enchente da cidade peruana fosse banido. Além disto, com base no Waldschadensurteile (precedente referente aos danos sofridos pelas florestas alemãs com múltiplos causadores), não é possível atribuir danos individuais e restrições à propriedade aos emissores individuais, quando existem várias fontes emissoras (SABIN CENTER FOR CLIMATE CHANGE LAW, 2015).
Entre outros fundamentos constantes na decisão, portanto, o mais importante foi o de que não foi demonstrado o nexo causal entre a conduta da parte ré (produção de gases de efeito estufa) e o risco potencial de alagamento de Huaraz, decorrente do derretimento das geleiras (WELLER; HUBNER; KALLER, 2018, p. 17). Além disso, a Corte também entendeu que a participação da parte ré nas emissões globais de gases de efeito estufa era muito pequena e que suas emissões não contribuíam de modo significativo para as consequências negativas do aquecimento global (SABIN CENTER FOR CLIMATE CHANGE LAW, 2015).
Outro ponto que enfraqueceu o pedido de Lliuya, de acordo com a Corte, diz respeito às provas produzidas, uma vez que, quando da formulação do pedido, o autor requereu fosse estabelecida de modo específico e exato a contribuição das emissões anuais da parte ré, e não uma mera estimativa genérica, o que, caso tivesse sido assim formulado, poderia facilitar um juízo de procedência da demanda (UNITED NATIONS, 2017, p. 35).
Assim, no mérito, a Corte julgou improcedentes as pretensões declaratórias e mandamentais de Lliuya, assim como o pleito indenizatório formulado (UNITED NATIONS, 2017. p. 35).10
4 Da apelação para o Tribunal de Justiça de Hamm
Irresignado com a decisão prolatada pelo Tribunal de Essen, o autor da demanda interpôs recurso perante o Tribunal de Justiça de Hamm (COLUMBIA LAW SCHOOL, 2017; GERMANWATCH, 2017). Em audiência, realizada em 13 de novembro de 2017, o Tribunal, ao receber o recurso, rejeitou as razões da Corte a quo, no sentido de que o Direito não pode regular impactos causados pelas mudanças climáticas. Em 3 de novembro do mesmo ano, a Corte foi além, determinando a realização de produção de prova técnica, formulando os seguintes quesitos:
A proporção da causa parcial em relação ao nexo causal é mensurável e calculável? Soma 0, 47% hoje?
A diferença proporcional da causalidade parcial, se observada, deve ser determinada e informada pelo perito (COLUMBIA LAW SCHOOL, 2017; GERMANWATCH, 2017).
Importa sublinhar, nessa quadra, que o Tribunal Regional de Hamm considerou o caso – tendo como objeto a fixação da responsabilidade pelos efeitos causados por mudanças climáticas - passível de ser deduzido em Juízo, isto é, submetido ao crivo do Poder Judiciário. A Corte entendeu que o Poder Judiciário, ao apreciar o mérito da demanda, não viola o princípio da Separação dos Poderes, de acordo com interpretação do Art. 20 Sec. 2 GG (Lei Fundamental Alemã), e concluiu que o caso pode ser decidido com base nas leis existentes, especificamente pelo § 1004 do Código Civil (BGB) (COLUMBIA LAW SCHOOL, 2017; GERMANWATCH, 2017).
5 O problema da responsabilidade das empresas por violação de direitos humanos e o litígio climático Lliuya Vs. Rwe
Ainda que seja possível limitar o objeto do presente texto à uma apresentação e discussão do caso Lliuya ao processo em tramitação no Poder Judiciário da Alemanha e ao respectivo marco normativo, a análise ora levada a efeito resulta enrobustecida e mesmo mais rica, mediante um olhar que leve em conta o fato de que a litigância climática e o direito das mudanças climáticas, guardam estreita e crescente relação com a demanda pela responsabilização de atores privados, designadamente empresas (em sentido amplo) pela violação de direitos humanos e fundamentais.
Aliás, a possibilidade de chamar à responsabilidade o poder econômico por violação de direitos humanos, já tem sido, há considerável tempo, alvo de preocupação por parte da ONU e outras organizações internacionais (VAN DAM, 2014, p. 389-390). Note-se que, em 2005, o então Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, nomeou o Professor John Ruggie como seu principal representante para tratar do tema direitos humanos e corporações transnacionais e outras empresas de negócios. Naquela quadra, Ruggie desenvolveu uma agenda e um conjunto de princípios, pautados pelo respeito e proteção dos direitos humanos, bem como pela criação e utilização de instrumentos legais eficazes para obter as devidas reparações, ademais de sugerir um conjunto de diretrizes para tanto, aprovadas pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (VAN DAM, 2014, p. 393).
Tais princípios e diretrizes, desenvolvidos e estruturados no âmbito da ONU e do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, estão, de acordo com Van Dam, ancorado em três pilares: o dever do Estado de proteger, o dever das corporações de respeitar, bem como o acesso aos instrumentos jurídicos para a lograr a reparação dos danos causados pela violação aos direitos humanos. O segundo pilar, em particular, prevê, em combinação com princípios acima referidos, o estabelecimento de standards não vinculativos, que, todavia, possam contribuir para a prevenção e mesmo coibição de violação de direitos humanos. Ainda de acordo com Van Dam, tal modalidade de soft law pode ser o primeiro passo na direção da criação de standards obrigatórios na esfera interna dos sistemas nacionais de responsabilidade civil das empresas e companhias no caso de violação de direitos humanos (VAN DAM, 2014, p. 394).
Importante referir, que as emissões de gases de efeito estufa por companhias produtoras de energia produzida pela queima de combustíveis fósseis, é causa do aquecimento global e de efeitos catastróficos11 que podem, em princípio, implicar violação de direitos humanos. Existem exemplos clássicos de possíveis violações dos direitos humanos por companhias emissoras de gases de efeito estufa, como se dá com as mortes e privações econômicas, políticas e sociais causadas por eventos climáticos extremos como as secas, as inundações, o aumento do nível dos oceanos, da intensidade das tempestades, dos ciclones e dos furacões, que não raras vezes levam a existência dos assim chamados refugiados climáticos.12
Nesse contexto, é de fazer coro com a advertência de Verheyen, para quem casos relacionados às mudanças climáticas nunca serão de decisão simples, porquanto sempre envolverão a habilidade de aplicar e interpretar regras primárias, avaliar evidencias científicas, estimar danos e dividir responsabilidades, ademais de implicar julgamentos com base em princípios de justiça e de equidade para preencher lacunas existentes no direito internacional (VERHEYEN, 2005, p. 95).
Além disso, a exemplo do que sustenta van Dam, o direito internacional público pouco protege as vítimas de direitos humanos violados por companhias Transnacionais (TNCs), porque referida legislação tutela principalmente a liberdade de comércio, ao invés de regular como estas empresas utilizam a sua liberdade de iniciativa (VAN DAM, 2014, p. 393). Também é discutível se as TNCs têm obrigações no que toca ao direito internacional público, o que tem levantado a questão sobre qual o papel pode ter a responsabilidade civil no contexto transnacional para suprir tal lacuna (VAN DAM, 2014, p. 389).
Referida discussão, aliás, tomou corpo com o ressurgimento do US Alien Tort Statute (ATS), em 1980, com base no qual as Cortes Norte-Americanas têm reconhecido a sua jurisdição para apreciar qualquer ação civil proposta por estrangeiro invocando a responsabilidade civil, por ato cometido em violação as leis das nações (UNITED STATES – COURT OF APPEALS, 1980). A referida lei tornou-se a base de dezenas de ações promovidas contra TNCs por violação aos direitos humanos perpetuados no exterior (STEPHENS, 2002; VAN DAM, 2014, p. 389-390). Novamente de acordo com Van Dam, em comparação com os litígios instaurados nos Estados Unidos, a litigância na Europa contra as TNCs “está ainda na infância”.
Pese o aumento gradual do número de casos, o fato é que, a exemplo dos litígios fundados no US Alien Tort Estatute, ainda não existem decisões substanciais, que possam indicar uma mudança substancial do quadro europeu, embora alguns casos tenham sido convertidos em transações com considerável compensação de pagamentos para as vítimas (VAN DAM, 2014, p. 392). Além disso, é de se ter presente que as vítimas que ajuízam demandas contra as TNCs enfrentam uma série de obstáculos que afetam negativamente a legislação de responsabilidade civil como um instrumento reparador de violação aos direitos humanos. Três obstáculos evidentes podem ser brevemente mencionados: a fixação de uma Corte competente, o direito aplicável e a verificação do standard aplicável ao caso no que diz com os cuidados exigidos (VAN DAM, 2014, p. 389-390).
Retornando ao caso da Alemanha, objeto precípuo da análise, calha enfatizar que, nessa era das mudanças climáticas, que a Responsabilidade Social Corporativa (CSR), de acordo com o Ministério Federal do Trabalho e Assuntos Sociais (Bundesministerium für Arbeit und Soziales), é definida pelo seu impacto sobre a sociedade e inclui aspectos sociais, econômicos e ambientais, como reconhecido por documentos internacionais sobre a CSR, com destaque para a Declaração da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre empresas multinacionais e políticas sociais, o Guia sobre Empresas Multinacionais da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD),13 o Guia de Princípios sobre Negócios e Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), além da UN- Compact e da ISO 26000.14
O Governo da Alemanha, portanto, segue a definição de CSR, tal como revisada e editada pela União Europeia, em 2011 (WELLER; HUBNER; KALLER, 2018, p. 3). Calha frisar, que até então, a definição utilizada na União Europeia (e na Alemanha) incluía o elemento da voluntariedade. De acordo com a nova definição, deve haver compliance em relação ao novo standard normativo europeu, designadamente, a Diretiva da CSR ou o a Regulação dos Conflitos Minerais (UNIÃO EUROPEIA, 2017). Nessa perspectiva, o que se espera é que as companhias cumpram as obrigações previstas na CSR para implementar a segurança dos sistemas que asseguram a proteção de determinados standards, ou seja, parâmetros mínimos em matéria de direitos humanos (incluindo os direitos ambientais), assim como de determinados deveres morais.
Relevante destacar, ainda, levando em consideração a perspectiva da responsabilidade civil, que as vítimas de violações de direitos humanos, residentes junto às margens de rios e/ou de terras poluídas, além de outras pessoas, podem ter os seus direitos e interesses protegidos também com base no art. 823 do BGB. Nesses casos, é possível pleitear em Juízo a reparação dos danos ou outra compensação da parte da empresa que lhes deu causa. Diferentemente dos deveres contratuais que vinculam as partes contratantes, a responsabilidade civil pode ser oposta em relação a todos, com base no princípio neminem laedere, muito embora a proteção com base no sistema da responsabilidade civil na Alemanha seja limitada (WELLER; HUBNER; KALLER, 2018, p. 11). Isso se deve ao fato de que apenas os direitos absolutos, no sentido de oponíveis erga omnes (absolute Rechtsgüter), são protegidos de acordo com o art. 823 do BGB, incluindo a vida, o corpo, a saúde ou a propriedade; tal proteção limitada e, portanto, a correspondente limitação da responsabilidade, acaba, ao fim e ao cabo, protegendo mais a liberdade de ação dos agentes econômicos.
Uma alternativa para se contornar a necessidade da demonstração de um dano à integridade corporal, à saúde, ou à propriedade, seria a de considerar os direitos humanos como parte das regras da CSR, incluindo-os no rol dos outros direitos do art. 823 do BGB.
A grande dificuldade que tal proposta coloca, é que os direitos humanos, que podem ser violados por eventos climáticos extremos causados por fatores antrópicos, tradicionalmente apenas vinculam os Estados, não indivíduos. Assim, como bem reconhecem Weller, Hubner e Kaller, precisaria ser determinado se os indivíduos, incluídas as companhias transnacionais, poderiam ser considerados como vinculados a regimes e regras de direitos humanos (WELLER; HUBNER; KALLER, 2018, p. 12). No entanto, não está claro quais das inúmeras convenções de direitos humanos poderiam se encaixar no conceito outros direitos previsto no art. 823 do BGB. Outro ponto nebuloso é que os direitos humanos são formulados de modo vago, o que dificulta a precisa apuração da responsabilização e consequente reparação dos danos no caso de sua violação (WELLER; HUBNER; KALLER, 2018, p. 11).
Além do mais, mesmo que se enquadre os direitos humanos na categoria de outros direitos previstos no art. 823, BGB, a responsabilização civil da companhia, para que reste configurada, exige a quebra de um dever de cuidado (Verkehrspflicht). Outras normas que embasam a responsabilização civil, como é o caso do art. 823 (2) ou do art. 831 e seguintes, todos do BGB, não são aplicáveis para efeitos do estabelecimento de uma responsabilidade geral das empresas, visto que os direitos humanos não podem ser interpretados como normas protetivas (Schutzgesetze), de acordo com o disposto no art. 823 (2) e seguintes do BGB.
Para demandas na esfera cível, o art. 4º do Regulamento Ia de Bruxelas, dispõe que qualquer Corte alemã tem jurisdição sobre demandas contra companhias ou pessoas jurídicas que tiverem foro estatutário, administração central ou como principal local dos seus negócios a Alemanha (WELLER; HUBNER; KALLER, 2018, p. 16),15 sendo irrelevante se o ato causador ou o dano ocorreram no exterior como justamente se dá no caso ora comentado (WELLER; HUBNER; KALLER, 2018, p. 17). Ademais disso, a aplicação da legislação empresarial é, em geral, determinada de acordo com a teoria do local/assento real (Sitztheorie) da companhia, de tal sorte que o foro competente não pode ser eleito pelas partes; o direito a ser aplicado será aquele com o qual a companhia guarda o mais próximo vínculo (WELLER; HUBNER; KALLER, 2018, p. 17-18).
Note-se, ainda, que a referida teoria permite que o Estado controle efetivamente as companhias em seu território, evitando a fuga da regulação econômica estatal, conhecida como o fenômeno do race to the bottom.16 Por outro lado, de acordo com o Direito da União Europeia, a lei aplicável deve ser determinada com base na teoria da incorporação (Gründungstheorie), ou seja, a legislação do país no qual a companhia foi fundada (MünchKommGmbHG/Weller, 2015, para. 350).17 A grande vantagem desta teoria, aplicada também em convenções internacionais – como é o caso do Tratado de Comércio e Amizade entre Estados Unidos e Alemanha (1954) – é a sua compatibilidade com as liberdades econômicas europeias, como, no caso, a de estabelecimento da atividade econômica (MünchKommGmbHG/Weller, 2015, para. 341).
Embora exista dissídio sobre o que deve ser considerado ato da fundação da companhia, se o ato do estabelecimento, o ato do assento estatutário, o ato do local do registro, o local livremente escolhido pelos fundadores da empresa como ato de fundação ou o ato realizado no local no qual foi garantida a personalidade jurídica da companhia, no caso Lliuja, todas as correntes apontam para o foro alemão (WELLER; HUBNER; KALLER, 2018, p. 19). Além disso, no caso de responsabilidade civil ambiental, de acordo com o Art. 7º do Regulamento II de Roma, se a quebra da CSR levar ao dano ambiental a vítima ainda pode escolher entre o local do delito (lex loci delicti) ou a lei do país no qual o dano ocorreu, o que permite a aplicação do disposto no Art. 7º a casos envolvendo direitos humanos (WELLER; HUBNER; KALLER, 2018, p. 22), e em tese, como aqui se ousa sugerir, também aqueles violados em virtude das mudanças climáticas causadas por fatores antrópicos
Em geral a ordre public alemã, engloba não apenas o art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, que expressamente nomeou direitos garantidos pela Lei Fundamental, mas também inclui direitos humanos europeus e internacionais, como aqueles garantidos na Carta Fundamental de Direitos da União Europeia, na Convenção Europeia de Direitos Humanos, nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho, assim como outras Convenções de Direito Internacional (WELLER; HUBNER; KALLER, 2018, p. 25). Tais Convenções, à medida que ratificadas, são direito vinculante na ordem jurídica alemã (art. 59, 2, da Lei Fundamental), assim como as regras gerais de direito internacional que, inclusive, devem ter precedência sobre as leis e diretamente criam direitos e deveres para os habitantes do território federal de acordo com o Art. 25 da Constituição.
Conclusão
À vista do exposto, uma primeira conclusão a que se pode chegar, forte na decisão do Tribunal de Justiça de Hamm de reconhecer a competência da Corte Regional de Essen para o processamento e julgamento da demanda, é que mediante tal provimento judicial, ainda que não definitivo, o sistema de justiça da Alemanha começa a se abrir à possibilidade de conhecer e julgar litígios climáticos promovidos por pessoas naturais ou jurídicas estrangeiras por danos alegadamente causados por empresas alemãs situadas no exterior.
É – também – por essa razão, que o caso Lliuya vs. RWE, independentemente mesmo de qual o resultado quanto ao julgamento do mérito do feito, assume tamanha importância no cenário internacional, visto ser o primeiro litígio dessa natureza, assumindo um caráter pioneiro e paradigmático.
Note-se, nesse contexto, que os elevados níveis de consciência e educação ambiental na Alemanha, ademais de contar com uma legislação moderna e substancialmente eficiente e eficaz em termos de proteção do meio ambiente, uma economia comprometida com a descarbonização e com o êxito no cumprimento dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, estipulados na Agenda 2030, com as metas estabelecidas no Acordo de Paris e, mais recentemente, com as diretrizes econômicas estabelecidas no Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos, em janeiro de 2020.18
Soma-se a isso que a matriz energética germânica em poucos anos será livre de carbono, uma vez que até mesmo a energia nuclear, embora “limpa”, está sendo abandonada como medida de precaução19 de modo a evitar catástrofes humanas e ambientais. Outrossim, avultam na Alemanha os parques eólicos e solares sendo nítida a decadência dos combustíveis fósseis no país.
Tendo em conta o quadro esboçado, poder-se-á mesmo especular se é por isso que na Alemanha não se tenha, ao menos por ora, desenvolvido uma doutrina própria especializada e robusta sobre o direito das mudanças climáticas, a despeito de já existirem autores de prestígio dedicando-se ao tema, como é o caso, entre outros, dos Professores Wolfgang Kahl e Marc-Philippe Weller da célebre Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, cujo texto sobre o caso Lliuya serviu de inspiração e referência para o presente trabalho.
Mas mesmo a Alemanha, como outros países tradicionalmente mais engajados na causa da proteção do ambiente, ao menos em termos comparativos com a maioria, não pode prescindir de instrumentos jurídicos eficazes também no concernente aos assim chamados litígios climáticos, porquanto também vulnerável em face dos gases de efeito estufa, por mais que sejam preponderantemente oriundos de fontes externas ao seu território.
Isso não significa, por sua vez, que, na Alemanha e fora dela, inexistam empresas/empreendimentos que produzam emissões em nível significativo, contribuindo, em maior ou menor medida, para o aquecimento global, como se dá precisamente no caso da RWE, ré na demanda proposta pelo fazendeiro peruano Saúl Lliuya.
Nesse contexto, soa correto, a exemplo do advogado pelos (ainda poucos, mas cada vez mais!) autores alemães debruçados sobre o tema, afirmar que um dos desafios que se coloca para a ordem jurídica alemã, em especial o Poder Legislativo, seja o de aperfeiçoar o direito material existente de modo a atualizá-lo e adequá-lo para efeitos de assegurar um instrumental mais robusto e moderno, que permita chamar à responsabilidade empresas sediadas no seu território ou no exterior por emissões que contribuam efetivamente para o aquecimento global.
Particularmente relevante, ainda nessa quadra, é o investimento na responsabilidade objetiva pelo risco integral e pela adoção da teoria da causalidade alternativa para superar a dificuldade da aferição do nexo de causalidade em demandas do estilo de LIiuya que certamente serão ajuizadas nos próximos anos e nas próximas décadas para apuração, não apenas das emissões presentes e futuras de gases de efeito estufa, mas de emissões e desmatamentos realizados no passado.
Isso se deve ao fato, comum ao direito ambiental, mas ainda mais preocupante quando se trata de combater o aquecimento global e seus nefastos efeitos, de que no âmbito do assim chamado Direito das Mudanças Climáticas é necessário não apenas responsabilizar as gerações presentes e futuras, mas também as passadas, mediante a possibilidade de propor demandas sem correr o risco de esbarrar no obstáculo da imprescritibilidade dos danos ambientais.
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1 Doutor em Direito pela Ludwig Maximillians Universität München (estudos de Pós-doutorado na Universidade de Munique, Instituto Max-Planck e Georgetown Law Center); Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Avenida Ipiranga, ٦٦٨١, Partenon, ٩٠٦١٩-٩٠٠, Porto Alegre, Rio Grande do Sul; https://orcid.org/0000-0002-2494-5805; iwsarlet@gmail.com
2 Doutor em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Estudos de Pós-doutorado na Universidade de Columbia, NY e Heidelberg); Professor no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Juiz Federal; https://orcid.org/0000-0002-6187-6167; gtwedy@gmail.com
3 Sobre o cenário mundial dos litígios climáticos, refere o diretor do Sabin Center for Climate Change Law da Columbia Law School, Professor Gerrard (2019, p. 18-19), que “[…] o Sabin Center for Climate Change Law tem um site que tenta rastrear todos os litígios relacionados ao clima ao redor do Mundo. Descobrimos que há muito mais litígios climáticos nos EUA do que no restante do Planeta. Na verdade, pela nossa contagem, dos 1.187 casos no Mundo, 907, ou seja, 76% são nos EUA. A Austrália vem em um segundo lugar distante com 97 casos, a maioria dos quais são sobre a avaliação de impacto ambiental. Já bem atrás estão o Reino Unido e o Tribunal de Justiça da União Europeia (que tem julgado casos sobre a aplicação do sistema europeu de comércio de emissões) com 46 e 41 casos, respectivamente. Os únicos outros países a atingir os dois dígitos são a Nova Zelândia, Canadá e Espanha, e os Tribunais da Convenção das Nações Unidas sobre alterações climáticas. Há apenas alguns casos na Ásia, na África e na América do Sul.” Sobre o tema, ver também Wedy (2017).
4 Sobre o caso refere o Professor Wolfgang Kahl (Diretor do Centro de Direito e Sustentabilidade da Universidade de Heidelberg), na apresentação da obra, Litígios Climáticos: de acordo com o direito brasileiro, norte-americano e alemão, “Na Alemanha, só houve uma ação judicial de proteção climática até agora que é a demanda de um agricultor peruano contra a RWE (maior produtora de eletricidade do país). O autor da ação alega que a RWE é parcialmente responsável pelo derretimento de uma geleira perto de sua cidade natal e o consequente aumento do nível de um lago, que provavelmente inundará área de sua propriedade da qual ele necessita para sua subsistência econômica. No entanto, o Tribunal Distrital de Essen decidiu, em primeira instância, que a RWE não é legalmente obrigada a pagar por medidas que o autor já tenha tomado para proteger a sua propriedade e residência contra esse risco. Em consonância com a jurisprudência, o Tribunal salientou que não é possível atribuir danos individuais e prejuízos a emissores únicos, quando há uma multiplicidade de tais emissores. Portanto, nenhum nexo causal conectou as emissões da RWE aos perigos sofridos pelo demandante e aos custos arcados por este decorrentes do derretimento da geleira. O autor apelou ao Tribunal Regional Superior de Hamm. A decisão está sendo aguardada ansiosamente por vários juristas e advogados pois, caso o agricultor peruano tenha sucesso, esta será uma decisão histórica para o sistema da responsabilidade civil alemão. Este último – sistema de responsabilização civil – encontra-se até agora limitado aos bens jurídicos individuais tais como a vida e a saúde (não engloba o meio ambiente e o clima como bens coletivos ou comuns) e existem grandes e rigorosas exigências para a demonstração do nexo de causalidade nos casos em concreto.” (KAHL, 2019, p. 18-19).
5 Sobre o livro: “Na obra foi proposta uma abordagem ética da ciência, em vista principalmente dos riscos existenciais trazidos pelas novas tecnologias desenvolvidas pela racionalidade humana, que expressam, numa dimensão sem precedentes, o triunfo do homo faber sobre a natureza e a vocação tecnológica da humanidade. Para ele, a operacionalização do arsenal científico e tecnológico deve ser pautada pela responsabilidade do cientista e submetida a parâmetros éticos, a fim de preservar-se a condição existencial humana, bem como a qualidade de vida. No mesmo sentido, outro célebre e já citado filósofo alemão, Vittorio Hösle, que publicou a Filosofia da Crise Ecológica (Philosophie der ökologischen Krise), reconhece a incapacidade de os cientistas modernos conceberem as conseqüências éticas e futuras quanto ao emprego de novas tecnologias por eles desenvolvidas.” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2014, p. 139). Sobre o tema, ver também Müller (1996, p. 9-62).
6 “§ ٨٢٣ – Schadensersatzpflicht: (1) Wer vorsätzlich oder fahrlässig das Leben, den Körper, die Gesundheit, die Freiheit, das Eigentum oder ein sonstiges Recht eines anderen widerrechtlich verletzt, ist dem anderen zum Ersatz des daraus entstehenden Schadens verpflichtet.” (BUNDESMINISTERIUM DER JUSTIZ UND FÜR VERBRAUCHERSCHUTZ, 2020b).
7 Segue transcrição literal do § 906, II, em alemão: “(1) Wird das Eigentum in anderer Weise als durch Entziehung oder Vorenthaltung des Besitzes beeinträchtigt, so kann der Eigentümer von dem Störer die Beseitigung der Beeinträchtigung verlangen. Sind weitere Beeinträchtigungen zu besorgen, so kann der Eigentümer auf Unterlassung klagen. (2) Der Anspruch ist ausgeschlossen, wenn der Eigentümer zur Duldung verpflichtet ist.” (BUNDESMINISTERIUM DER JUSTIZ UND FÜR VERBRAUCHERSCHUTZ, 2020b).
8 Bem refere Meyer sobre as dificuldades de estabelecer o nexo causal em litígios climáticos, em grande parte, em virtude da variedade de interferências de processos físicos e químicos causadores do aquecimento global (MEYER, 2016, p. 485).
9 Sobre a responsabilidade do Estado em litígios climáticos no âmbito do direito internacional, ver Verheyen (2005, p. 330).
10 Para a verificação da análise da doutrina alemã sobre o julgamento, ver Kahl e Daebel (2019, p. 69-70).
11 Sobre direitos das catástrofes ver Farber (2007).
12 Esclarecem Verheyen e Zengerling (2013, p. 759) que “nem a Corte Internacional de Justiça, nem a Organização Internacional do Comércio, nem o Tribunal para o Direito do Mar apreciaram até o momento um caso sequer envolvendo mudanças climáticas e que apenas decisões da Comissão de Compliance de Kyoto são favoráveis aos interesses protetivos do clima com base na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas e no Protocolo de Kyoto, sendo as decisões dos demais corpos judiciais e quase judiciais decepcionantes e incapazes de contribuir para o fortalecimento do regime internacional do clima ou deixar claros e especificados os deveres de proteção do clima dos Estados de acordo com o Direito Internacional.”
13 Importante referir, referente ao caso em tela, em específico, que as normas ambientais guia para as Multinacionais previstas pela OECD são no sentido de que: As empresas deverão, no âmbito das leis, regulamentos e práticas administrativas dos países onde realizam suas operações, e levando em consideração os acordos, princípios, objetivos e normas internacionais relevantes, prestar a devida atenção aos imperativos de proteção do ambiente, da saúde e higiene públicas, e de modo geral dirigir suas atividades de tal modo que contribuam para o objetivo global de desenvolvimento sustentável (ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICOS, 2020).
14 A responsabilidade social das organizações está fixada pela ISO 26000 que dispõe: “a responsabilidade social se expressa pelo desejo e pelo propósito das organizações em incorporarem considerações socioambientais em seus processos decisórios e a responsabilizar-se pelos impactos de suas decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente. Isso implica um comportamento ético e transparente que contribua para o desenvolvimento sustentável, que esteja em conformidade com as leis aplicáveis e seja consistente com as normas internacionais de comportamento. Também implica que a responsabilidade social esteja integrada em toda a organização, seja praticada em suas relações e leve em conta os interesses das partes interessadas.” (INMETRO, 2010). De se considerar “O Guia de Princípios sobre Negócios e Direitos Humanos da ONU”, também conhecidos como Princípios Ruggie, que consistem em 31 princípios, aprovados em 2011. As orientações são baseadas no reconhecimento de obrigações assumidas pelos Estados de respeitar, proteger e implementar os direitos humanos e liberdades fundamentais e no reconhecimento do papel das empresas como órgãos especializados da sociedade que devem cumprir todas as leis aplicáveis e respeitar os direitos humanos e a necessidade de que os direitos e obrigações sejam providos pelos Estados de instrumentos legais procedimentais correspondentes a serem utilizados em caso de sua violação (UNITED NATIONS, 2020).
15 Para fins de esclarecimento, o Brussels Ia – Regulation é outro termo para o Council Regulation (EU) N 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012 sobre jurisdição, reconhecimento e cumprimento de julgamentos em matéria cível e comercial.
16 O fenômeno race to the bottom é uma expressão utilizada em economia para descrever a desregulamentação estatal sobre o ambiente dos negócios, redução de taxas, com o objetivo de atrair ou impedir atividades econômicas nas fronteiras de determinado país. Como resultado da globalização e do livre comércio, o fenômeno pode ocorrer quando a competição aumenta entre nações sobre determinado setor do comércio e da produção, ver DAVIES e Vadlamannati (2013).
17 A Gründungstheorie é consistente com a liberdade de estabelecimento prevista no Art. 49, 54 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFEU – Treaty on the Functioning of the European Union).
18 No Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos, em janeiro de 2020, foi manifestada forte preocupação com a realidade das mudanças climáticas ficando estabelecido que a economia mundial deve desenvolver-se de modo sustentável, tendo como matriz as energias renováveis. Referido entendimento é salutar, pois de acordo com o Global Risks Report 2020, em 2018, os desastres naturais causaram um prejuízo global de US$ 165 bilhões de dólares (WORLD ECONOMIC FORUM, 2020).
19 Em relação ao princípio da precaução, ver Wedy (2020).