https://doi.org/10.18593/ejjl.21201

EDITORIAL

As razões da reforma da previdência são de segurança social, não de política fiscal

Carlos Luiz Strapazzon

Editor-Chefe

A EJJL tem recebido poucas contribuições sobre um dos mais importantes temas da atualidade: a previdência social. Em vista disso, já oferecemos aqui neste espaço um texto sobre finanças públicas e agora ofereceremos alguns editoriais que apontam caminhos para pesquisas e para discutir essa, que se tornou a política pública mais influente da campanha eleitoral (ao lado da agenda da segurança pública e do combate à corrupção). A agenda de muitos direitos fundamentais e as condições reais de sua efetivação parecem depender dos desfechos de uma boa reforma da previdência social. Encorajamos autores e grupos de pesquisa a avançar estudos a esse respeito. Registramos aqui, um primeiro passo, a fim de apontar caminhos pouco explorados pela pesquisa em direitos fundamentais, direitos humanos e direito constitucional.

O Art. 194 da Constituição da República estabeleceu, no Brasil, os padrões mínimos1 do direito humano2 a segurança social. Ocorre que para realizar tais padrões mínimos é indispensável a competente atuação do Estado em duas linhas de políticas públicas universais: por um lado, implementação de alguns serviços: (a) em primeiro lugar, serviços de saúde, inclusive de atenção médica; e complementarmente, (b) serviços de acolhimento e cuidados de pessoas em situação de sérias privações multidimensionais – caso dos serviços assistenciais. Por outro lado, é preciso realizar o pagamento de dois tipos benefícios, ambos com recursos alocados em fundos públicos de segurança social. São os benefícios de previdência social e os de assistência social.

Na prática internacional, onde há filosofia e políticas de segurança social, deve haver, no mínimo, instituições (públicas ou privadas) que prestam os mencionados serviços universais de saúde e de acolhimento de vulneráveis, como também deve haver fundos para realizar a política de segurança de renda: um fundo de seguro social e outro fundo de benefícios assistenciais. Essas duas linhas de ação implementam a segurança social. E devem coexistir e convergir para realizar, minimamente, três direitos humanos: o direito ao seguro social, o direito a saúde e o direito a assistência social. No Brasil esses direitos humanos também estão estabelecidos na Constituição, no Art. 6o, e, por isso, são mais conhecidos entre nós como direitos fundamentais irrevogáveis. O tripé saúde, assistência social e seguro social perfazem o âmbito de proteção mínimo do direito a segurança social, que é um direito humano constitucionalizado e referendado pelo Congresso Nacional3 e ratificado pelo Brasil.

Com o passar do tempo, o adjetivo social, foi naturalizado pela linguagem do direito. Incorporou-se ao direito constitucional, à legislação e ao uso comum sem que, junto, a teoria do direito desenvolvesse uma explicação à altura da filosofia e da política da modalidade de segurança que estamos ressaltando aqui.

Durante os debates da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) formou-se um consenso quanto à necessidade de o Brasil mudar o modelo dos direitos e das políticas públicas de previdência e de saúde. Questionava-se também a perspectiva das chamadas políticas assistencialistas e a ineficiência das políticas de ajuda a desamparados. A decisão de mudar o modelo foi muito importante, naquele momento, e ainda é. Tanto para aprimorar o foco, quanto os resultados, quanto para dar um novo rumo nas políticas denominadas sociais.

O modelo de previdência social, vigente a partir de 1960 (Lei Orgânica da Previdência Social) até 1988, oferecia serviços e geria fundos públicos de seguro social. Contudo, protegia apenas uma parte minoritária da sociedade: servidores públicos e trabalhadores formais urbanos, segmento que não chegava a 50% da população trabalhadora. O novo desenho (hoje em bases constitucionais) trouxe uma outra abordagem: a da segurança social universal, cujas linhas básicas eram já bem conhecidas da teoria social e também da OIT. O vocábulo social passou a assumir um novo sentido na linguagem dos direitos constitucionais do Brasil: por um lado, a universalidade como fim, por outro, a solidariedade e a cooperação estado-mercado, como meio para realizá-los. A finalidade de proteger e de envolver toda a sociedade financiamento, na gestão e na prestação de serviços deu um novo contorno jurídico para o planejamento das políticas públicas de previdência social, de assistência social e de saúde. Na Constituição foram implementados alguns princípios4 e algumas importantes regras gerais.5 O desenho institucional básico foi constitucionalizado e o nome dado à inovação como um todo, foi seguridade social. Melhor teria sido denomina-la de sistema de segurança social, como já se faz noutros países de língua portuguesa. O termo espanhol seguridade obscurece essa filosofia da segurança social e seus contornos mínimos. E mantém a confusão (também institucionalizada) entre seguridade e previdência social.

O modelo social da previdência que emergiu a partir de 1988 foi concebido para ser um dos pilares da segurança social da renda. No caso da previdência, para implementar a segurança de renda ancorada num modelo especial de seguro: o seguro social. Ou seja, a Carta da República determinou a institucionalização de um modelo de proteção da renda futura para todos os que, de algum modo, contribuem para o fundo do seguro social. Por isso, de 1988 em diante, foram criadas as condições jurídicas para que todos os trabalhadores formais rurais e urbanos, de algum modo, fossem convertidos em contribuintes obrigatórios e, igualmente, para que fossem cobertos por esse novo tipo de seguro social.

É importante destacar a expressão contribuir de algum modo para o seguro social. Embora não siga a mesma ratio dos seguros privados de renda --- em que cada um contrata individualmente seu próprio seguro de renda futura --- no modelo social de seguro todos contribuem para a sustentabilidade do fundo do seguro social. De novo, é um regime em que todos os segurados contribuem de algum modo para formar o fundo. Além dos segurados, alarga-se o dever de contribuir para organizações com fins econômicos. Assim, o seguro social é financiado por toda a sociedade. Todos contribuem de algum modo.

O que no Brasil se chama de Previdência Social é, portanto, um modelo social de contribuição para o fundo do seguro social, que por sua vez existe para pagar o seguro de renda a todos os trabalhadores que contribuem. Esse seguro de renda paga benefícios como aposentadorias, pensões, salário-maternidade, auxílios (doença, acidente), etc. Não nos enganemos: não é um modelo de plena cobertura para todos. Trabalhadores informais, desempregados e desocupados tendem a ficar sem a proteção econômica do seguro social.

Mas é um modelo assentado em premissas que ampliam muito as possibilidades de proteção da renda futura de trabalhadores de baixa renda. Sem a ajuda de pessoas jurídicas e de segmentos mais ricos, estudos econômicos recentes já demonstraram que é inviável manter um fundo previdenciário universal. Também se torna inviável para aproximadamente 2/3 da população pagar, mensalmente e durante toda a vida, algo entorno de 21% a 28%6 de seu salário para ter um seguro privado de renda equivalente a seu último salário.

Em síntese: no Brasil, a segurança social da renda assumiu duas modalidades com o novo arranjo constitucional: contributiva e não contributiva. Quer dizer: para ter direito a uma modalidade, a do seguro social, o beneficiário deve contribuir para o fundo do seguro social. Na outra modalidade, a dos benefícios assistenciais, o beneficiário não é obrigado a contribuir, dada a sua condição de extrema privação multidimensional.

O que poucos sabem, e por isso – provavelmente – não levam na devida conta, é que o modelo social de previdência adotado pela Constituição (o do seguro social) é o mais adequado para sociedades como a brasileira, onde há acentuada desigualdade de renda7. No caso do Brasil, em que mais de 2/3 da população tem baixo nível de renda do trabalho, a robusta maioria das pessoas não tem capacidade de poupança para pagar altas contribuições para ter um seguro de renda privado. A parcela da população de baixa renda pode contribuir com uns 5% a 8% da renda do trabalho. Não mais que isso.

Quando o modelo vigente de seguro social foi criado, em 1988, essas eram as preocupações mais importantes. Criar uma sociedade livre, justa e solidária.

É certo que há outros caminhos para realizar esse objetivo constitucional. É certo, também, que qualquer proposta de reforma da previdência precisa explicar, com detalhes, por que outros modelos podem ser melhores do que o atual, para realizar este fim.

É importantíssimo, portanto, não confundir a qualidade do modelo de seguro social vigente no Brasil, com as inconsistências que nosso modelo tem: dentre elas a aposentadoria por tempo de contribuição, a desigualdade de regimes entre brasileiros em geral e brasileiros em sentido próprio, o alto custo da contribuição patronal paga pelo Estado brasileiro para o fundo do seguro social de servidores públicos, o alto custo do auxílio doença e a desarticulação entre políticas de previdência social, políticas de atenção básica em saúde e políticas de emprego.

A previdência social precisa de reformas, urgentemente.

Mas a reforma da previdência não deve ser feita por causa da crise fiscal em que se meteu o Brasil. As razões da reforma são razões de segurança social, não de política fiscal.

Joaçaba, v. 19, n. 3, p. 677-680, set./dez. 2018


1 Sobre os padrões mínimos, ver OIT Convenção 102, de 1952.

2 Sobre o direito humano à segurança social, ver Art. 22 e 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e Art. 9o do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Veja, no entanto, a versão oficial em inglês, pois estão erradas todas as traduções mais importantes para a língua portuguesa do Brasil. Assim, a tradução fornecida pelo Decreto 591/1992 para o Art. 9o do PIDESC. O mesmo erro crasso acontece na tradução fornecida pelo Decreto 99.710/1990, ao Art. 26 da Declaração dos Direitos da Criança e, de novo, gravíssimo erro de tradução para a Convenção 102/1952, da OIT. Em todos os casos citados, os documentos traduzem social security por previdência social, e confundem, portanto, o direito a segurança social, com o direito ao seguro social.

3 Decreto Legislativo n° 226, de 12 de dezembro de 1991.

4 Art. 3o, I; Art. 6o; Art. 193 e Art. 194, § único.

5 Art. 7o. XXIV, Art. 165, § 5oI; Art. 167, XI, Art. 195, Art. 196 a 204 e Art. 250.

6 Ver Fabio Giambiagi e Luís Eduardo Afonso. Alíquota previdenciária em um regime de capitalização: uma contribuição ao debate. BNDES. Textos para Discussão, n. 134, 2019. Disponível em: https://bit.ly/2Rw8v6a

7 Ver dados recentes da PNAD-contínua, do IBGE. Disponível em: ftp://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Nacional_por_Amostra_de_Domicilios_continua/Trimestral/Quadro_Sintetico/2019/pnadc_201901_trimestre_quadroSintetico.pdf