https://doi.org/10.18593/ejjl.20382

CIDADES (IN)SUSTENTÁVEIS: A NOVA AGENDA URBANA DA ONU/HABITAT III E AS RELAÇÕES RACIAIS

(UN) SUSTAINABLE CITIES: THE NEW URBAN AGENDA OF UM/HABITAT III AND RACE RELATIONS

Josué Mastrodi1

Waleska Miguel Batista2

Resumo: Neste artigo, busca-se apresentar que os objetivos estabelecidos para o desenvolvimento sustentável devem abranger todas as necessidades sociais, econômicas e ambientais, especificamente das minorias, que são os grupos em condição desfavorecida em razão da estrutura e formação do Estado. Com isso, a Nova Agenda da ONU/Habitat III determinou que a partir do Objetivo para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) de número 11, as cidades devem ser includentes e elaborar políticas urbanas que promovam a inclusão social. A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou entre 2015 a 2024 a década do afrodescendente, em razão da profunda desigualdade racial entre pessoas brancas e pessoas negras, motivo pelo qual reconhece a necessidade de políticas públicas e ações afirmativas que combatam essa realidade. Para tanto, utilizou-se os documentos da ONU-Habitat, dos ODS e da década dos Afrodescendentes, além de autores que discutem a questão urbana e a segregação para evidenciar a relação entre cidades sustentáveis e inclusão dos negros nas cidades.

Palavras-chaves: ONU-Habitat; afrodescendentes; desenvolvimento sustentável; cidades.

Abstract: In this article, we seek to present that the objectives established for Sustainable Development must cover all social, economic and environmental needs, specifically of minorities, what are the groups in disadvantaged condition due to the structure and formation of the State. With this, the UN / Habitat III New Agenda has determined that from the Sustainable Development objective number 11, cities must be inclusive and develop urban policies that promote social inclusion. The United Nations Organization (UN) declared between 2015 and 2024 the decade of the Afrodescendant, because of the profound racial inequality between white people and black people, which is why it recognizes the need for public policies and affirmative actions to combat this reality. The UN-Habitat documents, the ODS and the decade of Afro-descendants were used as well as authors discussing the urban question and segregation to evidence the relationship between sustainable cities and the inclusion of people blacks in cities.

Keywords: UN-Habitat; afrodescendants; sustainable development; cities.

Recebido em 27 de março de 2019

Avaliado em 13 de agosto de 2020 (Avaliador A)

Avaliado em 10 de março de 2021 (Avaliador B)

Aceito em 29 de março de 2021

Introdução

O conceito de sustentabilidade foi consolidado como uma forma de suprir as necessidades dos pobres e promover meio ambiente capaz de atender as gerações presentes e futuras, priorizando a transformação no comportamento do homem (FEIL; SCHREIBER, 2017, p. 675-677). A mudança global para que se alcance a sustentabilidade exige a implementação de políticas públicas, para que induza a sociedade a seguir nessa direção.

Houve a criação da ONU-Habitat para discussão das carências existentes nas cidades, que vai desde o desiquilíbrio ambiental à desigualdade social. Dentre tantas desigualdades existentes, decidimos destacar a desigualdade racial a que a população negra está sujeita diante do racismo que é manifestamente reproduzido em todos os setores sociais.3

Assim, buscamos compreender se cidades sustentáveis devem abranger políticas antirracistas, e em que medida essa obrigação está alinhada com os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável, a partir da compreensão da realidade brasileira, em que as cidades continuam sendo espaços segregados o que contrária as recomendações da ONU-Habitat.

Desde a primeira Conferência da ONU para o Meio Ambiente, em 1972, e a primeira Conferência para Cidades e Assentamentos Humanos, em 1976, vários desafios foram colocados como fatores que obstam as chances de que as cidades sejam includentes, como os danos ambientais, a miséria e as discriminações das minorias, como a população negra e as mulheres.

Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), elaborados pela Cúpula do Desenvolvimento Sustentável, não abrangem as discussões raciais de modo explícito, mas tanto pelos acordos internacionais como pelo estudo aprofundado dos objetivos, a questão racial está intrínseca.

Na África do Sul aconteceu a Conferência de Durban, em 2001, para combater todas as formas de desigualdade racial, xenofobia, racismo e crimes correlatos, porém isso não foi suficiente para que medidas estatais efetivassem políticas capazes de combater estas desigualdades, internacionalmente reconhecidas.

Uma cidade sustentável precisa garantir o desenvolvimento social, econômico e ambiental, sempre com atenção às necessidades dos seres humanos e aos conflitos existentes no tecido social. Sachs (2009) relatou que as dimensões da sustentabilidade têm de convergir uma com a outra, pois sozinhas não atingem o objetivo de Estado equilibrado. A ONU reconhece o tripé da sustentabilidade e declara que uma cidade sustentável é aquela que contempla o desenvolvimento, cumulativamente, ambiental, social e econômico, segundo recomendação das Conferências da ONU, que precisam ser seguidas pelos signatários.

Pelo ODS 10, busca-se reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles, afastando leis, políticas e práticas discriminatórias, independentemente de etnia, raça, religião, sexo ou condição econômica (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015b).

Nesse sentido, tendo em vista que as relações sociais acontecem no complexo ecossistema das cidades, o ODS 11 estabelece que, para as cidades, comunidades e assentamentos humanos sejam sustentáveis, é necessário que sejam espaços includentes, seguros e resilientes (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015b). Nesse sentido, a partir da análise dos documentos da Nova Agenda Urbana da ONU/Habitat III, e dos ODS da Agenda 2030, especialmente o ODS 11, bem como de periódicos e livros que apresentam o debate sobre sustentabilidade, direito à cidade e desigualdade racial, verificamos que a segregação ainda é normalizada e naturalizada nos espaços urbanos das cidades brasileiras.

O Brasil carece de implementação de políticas públicas de desguetização, para eliminação de desigualdades socioespaciais, incluído aqui, de forma explícita, as desigualdades decorrentes do racismo. A população negra (pretos e pardos, segundo o IBGE) representam 56% dos brasileiros e está concentrada nas periferias, favelas e em imóveis irregulares, porque são os lugares mais baratos, enquanto que nos condomínios fechados há um gueto branco e rico, ou seja, com classe e cor definidos, confirmando as disparidades sociais. Importante mencionar que a moradia, enquanto direito fundamental, e a cidade, enquanto espaço coletivo, não deveriam ser definidos segundo seu custo, mas o acesso a esses bens e espaços públicos são exclusivos a quem pode pagar por eles.

Assim, primeiro, apresentamos a importância das Conferências Habitat e os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável. Num segundo momento, destacamos os documentos e as recomendações da Conferência da ONU/ Habitat III4 sobre o combate às desigualdades e à busca de inclusão social. Em seguida, mostramos que a ONU reconhece a desigualdade racial como um dos fatores a serem combatidos por meio de políticas públicas urbanas ou ações afirmativas e, por fim, apresentamos nossas considerações finais.

1 O conceito de sustentabilidade e as diretrizes da Organização das Nações Unidas

Em meados do século XX, a degradação do meio ambiente se destacava como um dos principais problemas a serem resolvidos pelos Estados. Todavia, os conflitos sociais após as grandes guerras também fizeram com que as condições das pessoas fossem levadas em consideração para se atingir uma sociedade adequada, com menores taxas de mortalidade e com crescimento urbano (SANTOS, 1980, p. 77-80).

A busca por um espaço urbano sustentável ou equilibrado tornou-se um dos objetivos da ONU, pois, dentre outros motivos, constatou-se que os recursos naturais não eram ilimitados, assim como que o aquecimento global era decorrente da emissão de gases de efeito estufa que foram dispersados na atmosfera, no mínimo, nos últimos três séculos (BOFF, 2015, p. 27).5

Ao fundo dessa situação estava a busca pela regeneração dos Estados atingidos pelos embates da Segunda Guerra Mundial que, além dos problemas ambientais, resultou em problemas sociais e econômicos. Os Estados assinaram em São Francisco, em 26 de junho de 1945, após dois meses de debates, para afirmar a busca pela paz, a Carta das Nações Unidas, afirmando a igualdade e o pleno exercício entre todos os povos, sem discriminação.6 Já nessa carta, no artigo 13.1, os Estados-parte se comprometem em promover o desenvolvimento econômico, social, cultural, educacional e sanitário, garantindo o gozo dos direitos humanos sem distinção, com respeito a todos os povos, raças, línguas e sexos (artigo 55, da Carta das Nações Unidas).7

A Carta das Nações Unidas reconheceu a necessidade de desenvolvimento social, econômico e ambiental, de modo que daí eclodiram conferências e pactos para que os objetivos apontados na carta da ONU fossem atingidos.

Posteriormente, duas linhas de estudo se desenvolveram na década de 1970 sobre economia ambiental e economia dos recursos naturais, tendo mostrado o que pode ou deve acontecer. A primeira pugnava pela normatização de meios de proteção ao meio ambiente, voltada a normas de proteção, enquanto que a segunda contribuía para o desenvolvimento de tecnologias voltadas ao uso adequado dos recursos naturais (MIKHAIOLOVA, 2004, p. 23). A primeira normativa e a segunda positiva.

Estas pesquisas apontaram que os estudos econômicos e ecológicos não eram suficientes para resolver todos os problemas existentes, pois muitos dos serviços destacados não tinham valor monetário. A economia da época não era precisa na precificação das externalidades de mercado decorrentes da produção industrial, seja no que respeita ao esgotamento dos recursos naturais, seja no que respeita aos custos de reparação ambiental. Nesse período, havia a ideia de que o desenvolvimento tecnológico alteraria as condições de vida das sociedades (MIKHAIOLOVA, 2004, p. 25-26).

Mikhaiolova (2004) assevera que os seres humanos conseguem dar importância aos bens e serviços quando revestidos de um alto valor de capital, caso contrário, são desconsiderados. Por isso que o cuidado com a poluição do ar não era caracterizado como uma preocupação da sociedade, porque ela não era computada para o poluidor.8

Com a possibilidade de penalizar as pessoas físicas ou jurídicas pela poluição do meio ambiente, desenvolveram-se novas formas de conviver com o planeta sem destruí-lo, ou de minimizar os danos.9 Essa mudança não aconteceu pela vontade política de preservar o meio ambiente, mas sim para que a ideia de desenvolvimento fosse aceita e que o desenvolvimento econômico fosse ampliado.10

Aconteceu em 1972, em Estocolmo, Suécia, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, ou Conferência de Estocolmo, onde os atores políticos e sociais discutiram métodos para que pudessem aprender a preservar e melhorar o meio ambiente humano (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1972). Dela participaram 113 países, 400 instituições governamentais e não-governamentais, resultando na Declaração de Estocolmo (SENADO FEDERAL, 2018). Não houve a elaboração de mecanismos que contemplassem a preservação ambiental e o desenvolvimento de sociedade em situação de pobreza (SENADO FEDERAL, ٢٠١8).

O Brasil foi contrário à Conferência de Estocolmo de 1972, pois as pautas ambientais como combate à poluição não atendiam seu objetivo de crescimento econômico.

À vista da documentação submetida aos Governos, a Conferência de Estocolmo podia atender aos interesses brasileiros, não havendo assim razão para que se adotasse uma atitude meramente negativista. Foi, aliás, precisamente a posição cautelosa e atenta, mas também construtiva, do Brasil que modificou praticamente a concepção da Conferência, de modo a orientá-la no sentido dos interesses dos países em desenvolvimento. Em Estocolmo, coube à Delegação brasileira manter tal atitude, inclusive para orientação dos demais países em desenvolvimento, cujas delegações se acostumaram a esperar do Brasil uma posição de equilíbrio, objetividade e ponderação (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1972, p. 10).

Segundo o Relatório da Conferência de Estocolmo, o Chefe da delegação brasileira, o Ministro José Costa Cavalcanti, foi a quarta autoridade a falar, apresentando teses econômicas e políticas sobre os países em desenvolvimento, tais como:

1 - O princípio de que o ônus maior da despoluição e de controle da poluição cabe aos países desenvolvidos, maiores responsáveis pela deterioração do meio ambiente.

2 - A tese da soberania nacional sobre os recursos naturais, e da responsabilidade sobre o seu uso racional em contraposição à tese da administração internacional.

3 - A tese da política demográfica como de inteira responsabilidade nacional.

4 - A tese de que o desenvolvimento econômico é a melhor solução para os problemas ambientais dos países pobres.

5 - A tese de que não se pode limitar a ação de um país à base do desconhecimento ou do conhecimento incompleto, só se admitindo nesses casos, como ação, a pesquisa e análise e o levantamento de novos dados.

6 - A tese de que o principal problema com relação a recursos naturais não é necessariamente sua exaustão mas, ao contrário, a insuficiência de demanda internacional para a oferta atual e potencial de matérias primas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1972, p. 18).11

O termo sustentabilidade surgiu como resultado dessa conferência que, embora parecesse atender apenas a demandas ambientais, abordou temas sobre o bem-estar social (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1972).12 Como resultados do encerramento da Conferência de Estocolmo, foram aprovados a Declaração das Nações Unidas para o Meio Ambiente Humano, com 26 princípios, e o Plano de Ação para o Meio Ambiente Humano, com 109 recomendações. Além disso, a conferência proporcionou e incentivou as Conferências das mulheres, no México (1974) e da Habitat, em Vancouver (1976).

A partir da Conferência de Estocolmo, a legislação interna sobre o meio ambiente de alguns países foi alterada, para que se adequasse aos novos parâmetros propostos no âmbito internacional.13

A ONU criou, em 1983, a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que fez avaliações e debates com líderes de governo e membros da sociedade civil das propostas estabelecidas na Conferência de Estocolmo, que resultaram no Relatório Nosso Futuro Comum ou Relatório Brundtland (BOFF, 2015, p. 35-36).14 O conceito de desenvolvimento sustentável foi definido pela primeira vez nesse relatório, como o desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender as suas próprias necessidades (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1987). Assim, o referido termo foi compreendido sob os aspectos econômico, social e ambiental, visando ao crescimento sem destruição (VEIGA, 2005, p. 188-189). Além disso, recomendou-se que este conceito fosse utilizado como “orientador central de todos os governos e organizações nacionais e internacionais” (BRITO, 2018, p. 104).

Ainda que se tenha definido o conceito de desenvolvimento sustentável, os Estados não apresentaram o que cada um deles entendia por isso. Veiga (2005, p. 17-43) aponta duas respostas à pergunta acerca do que seja desenvolvimento. A primeira é que seja sinônimo de crescimento econômico. A segunda, que é uma ilusão, crença, mito ou manipulação ideológica. O autor chegou a essas considerações porque, para ele, o desenvolvimento está relacionado com o processo de industrialização, servindo como uma armadilha para perpetuar as relações entre minorias dominantes (donos dos meios de produção/ricos) e maiorias dominadas (trabalhadores/ pobres) (VEIGA, 2005, p. 58 ).15

A Declaração do Rio sobre o meio ambiente e desenvolvimento de 1992, assim como a Declaração de Estocolmo (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1972), estabeleceu que os seres humanos estão no centro das preocupações do desenvolvimento sustentável (princípio 1) e que se deve priorizar as atenções aos países menos desenvolvidos (princípio 6), o que comprova que ambos os conceitos possuem fundamentos sociais e econômicos.

Outro ponto relevante foi o fato de que as pautas colocadas na conferência Rio-92 exigiam mais conhecimento técnico e científico para a compreensão da realidade analisada, visto que as metas estabelecidas pelos Estados-partes exigiam uma ação deles por meio da implementação de alguma política governamental em seus respectivos países, com objetivos definidos por profissionais capacitados.

Além disso, também foi identificado que, na maioria dos países participantes da RIO-92, a legislação sobre o meio ambiente se fortaleceu. Entretanto, também se constatou que existia uma grande dificuldade para a implementação dos compromissos firmados diante do desinteresse dos governos e dos demais atores sociais.

Em 1995, houve a Declaração e Programa de Ação da Cúpula Mundial sobre desenvolvimento social, em Copenhague, em 1995, reconhecendo a importância do desenvolvimento social e do bem-estar da humanidade, priorizando os objetivos para o século XXI, diante das disparidades que mantêm algumas pessoas na pobreza extrema, confirmando que, após 3 anos, a realidade não tinha sido modificada para algo melhor.

Consequentemente, na Conferência Rio+10, em Joanesburgo, em 2002, intitulada Revisão Decenal do Progresso alcançado na implementação dos resultados das Conferências das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92), chamou-se a atenção para a valorização dos países do Sul, majoritariamente em desenvolvimento. Apesar disso, constatou-se que as metas traçadas na Conferência Rio-92 restaram fracassadas, pois não houve ações efetivas (BOFF, 2015, p. 36).

Diante da persistência das desigualdades sociais, a busca pela erradicação da pobreza mundial foi inserida na agenda do desenvolvimento sustentável (ABRAMOVAY, 2012). Após os debates da Cúpula do Milênio, em setembro de 2000, na sede das Nações Unidas, em Nova York, os 189 países participantes da Cúpula definiram, como objetivo deste século, a erradicação da pobreza. Para corroborar com isso, foram definidos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM): 1) Erradicar a extrema pobreza e a fome; 2) Universalizar a educação primária; 3) Promover a igualdade entre os sexos e empoderar as mulheres; 4) Reduzir a mortalidade de crianças; 5) Melhorar a saúde materna; 6) Combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças; 7) Garantir a sustentabilidade ambiental; 8) Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento (CARVALHO; BARCELLOS, 2014, p. 224-226).

Estes objetivos foram definidos sem qualquer critério ou análise de indicadores, e as metas estabelecidas não foram ambiciosas o suficiente para causar uma mudança radical na sociedade (CARVALHO; BARCELLOS, 2014, p. 231-232). As metas dos objetivos do desenvolvimento do milênio tinham de ser alcançadas até 2015, porém, mais uma vez não foram atingidas.

Ao término da Conferência Rio+10, a busca por equidade, distribuição e justiça social fazia parte dos Acordos assinados para o desenvolvimento sustentável. Porém, mais uma vez os Estados-partes não determinaram o que eles entendiam por cada uma das metas que foram traçadas, de maneira que as discussões da Conferência Rio +10 não chegaram a nenhuma solução a respeito dos mecanismos necessários para que se atinja uma sociedade sustentável, visto que não tiveram qualquer proposta de solução alcançada (BOFF, 2015, p. 36).16

No ano de 2015, durante a Cúpula do Desenvolvimento Sustentável, como os países já estavam reunidos, e havia a necessidade da definição de novos objetivos, foram declarados os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), inspirados na RIO+20. A agenda pós-2015 foi definida com 17 objetivos e 169 metas a serem cumpridas até o ano de 2030: 1) Erradicação da pobreza; 2) Fome zero; 3) Boa saúde e bem-estar; 4) Educação de qualidade; 5) Igualdade de gênero; 6) Água limpa e saneamento; 7) Energia Limpa e acessível; 8) Trabalho decente e crescimento econômico; 9) Indústria, inovação e infraestrutura; 10) Redução das desigualdades; 11) Cidades e comunidades sustentáveis; 12) Consumo e produção responsáveis; 13) Ação contra a mudança global do clima; 14) Vida na Água; 15) Paz, justiça e instituições eficazes; 17) Parcerias e meios de implementação. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015b).

Todos os objetivos possuem a finalidade de aproximação dos Estados-partes para que, conjunta e reciprocamente, pudessem promover uma sociedade equânime, permitindo mais interação e troca17 entre os países.

3 A Agenda Urbana da ONU/Habitat de 1976 a 201618

A Carta das Nações Unidas reconheceu a necessidade de desenvolvimento social, econômico e ambiental, de modo que daí eclodiram conferências e pactos para que os objetivos apontados na carta da ONU fossem atingidos.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), elaborado em 1966 e ratificado pelo Brasil em, reforçou a ideia de que o desenvolvimento social e econômico deve ser resultado de um Estado que garanta a proteção dos direitos humanos com boas e eficientes políticas nacionais e internacionais (PIDESC, 1966), mostrando que haviam outras preocupações além da questão ambiental.

Em 1º de janeiro de 1975, a Assembleia Geral da ONU criou a Fundação do Habitat e Assentamentos Humanos das Nações Unidas, dedicando-se ao desenvolvimento de programas capazes de fornecer capital e assistência técnica às cidades do planeta, principalmente, as localizadas nos países em desenvolvimento (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2017b).

Nesse período, a urbanização ainda não tinha grande importância na agenda da ONU mas, mesmo assim, ocorreu entre 31 de maio e 11 de junho de 1976, em Vancouver, Canadá, a primeira conferência internacional da ONU em que se reconhecia plenamente o desafio das cidades, denominada de Conferências para Assentamentos Humanos. Destacaram-se as estratégias internacionais para abordar e monitorar os aspectos do crescimento urbano. Como o mundo estava geopoliticamente dividido ao meio em razão da Guerra Fria, as questões sociais não foram priorizadas, mas sim temas relacionados a defesa nacional e segurança urbana.

Havia o envolvimento de interesses políticos, espaciais, sociais, culturais, econômicos e ambientais, além de recomendações aos governos para que desenvolvessem estratégias e políticas para lidar com o uso e posse da terra, crescimento populacional, infraestrutura, serviços básicos e fornecimento de moradia e emprego adequado aos nacionais, proporcionando mais atenção às necessidades de populações desfavorecidas e marginais.

O destaque para a produção do espaço urbano aconteceu em razão da urbanização acelerada e da industrialização após a Segunda Guerra Mundial, assim como em razão dos estudos apresentados pelo filósofo e sociólogo Lefebvre (2001), que estabeleceu o conceito de direito à cidade, e demonstrou a relação do homem como o urbano (BRITO, 2018, p. 29).

Trindade (2017, p. 161) afirma que necessita haver lutas para que o centro seja includente, pois o grupo dominante não abrirá mão voluntariamente de sua exclusividade. A conquista deverá acontecer com a organização e movimentação social, ou por políticas de iniciativa do Estado a partir dos diplomas internacionais a respeito.

O documento da Conferência Habitat reproduziu as ideias da Carta das Nações Unidas de 1945, dispondo sobre a paz mundial, solidariedade, justiça social e o desenvolvimento humano de todos os países, o que mostra a sua utopia, ou no mínimo, a existência de grandes abismos a serem superados para concretização dos objetivos propostos, como criar políticas para reconhecer e dimensionar o ser humano, promovendo atenção aos grupos desfavorecidos, com a participação de todos no planejamento urbano (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1976).

Como resultado desta Conferência, houve a criação da Comissão do Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (UN-Habitat) e do Centro dos Assentamentos das Nações Unidas (Habitat), que proporcionaram o reconhecimento de que o abrigo e a urbanização são questões globais a serem abordadas coletivamente pelos agentes políticos dos Estados-Partes. A esse respeito, entre 1978 e 1996, o Habitat lutou para prevenir os problemas causados pelo crescimento urbano maciço, particularmente nos países em desenvolvimento, e pugnar por melhorias nas condições sociais (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2017a).

O documento da Conferência Habitat I apresentou 19 princípios orientadores para se alcançar o desenvolvimento humano e diretrizes para conduzir o planejamento das políticas de assentamento humano, reduzindo segregação social e étnica (BRITO, 2018, p. 34-36).

Após 20 anos da Habitat I, de 03 a 14 de junho de 1996, ocorreu a segunda conferência sobre Assentamentos Humanos (Habitat II) e da Agenda Habitat, em Istambul, Turquia, para avaliar as duas décadas de progresso desde a Habitat I e para definir novas metas, após as Conferências realizadas desde 1990. O término da Guerra Fria permitiu que as questões urbanas passassem a ter mais relevância que questões geopolíticas.

Os países que aprovaram a Agenda Habitat assumiram o compromisso de garantir abrigo adequado para todos e, também, o bom desenvolvimento dos assentamentos humanos em um mundo urbanizado (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1996). Esse documento destacou várias áreas de atividade necessárias para o desenvolvimento urbano eficiente, como bom planejamento urbano, o que incluía acesso a serviços públicos básicos, infraestrutura e habitação adequada. Ademais, estabeleceu que todas as pessoas estão incumbidas de auxiliar no desenvolvimento sustentável (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1996). Outro documento, resultado da Conferência da ONU/Habitat II, foi a Agenda 21, que estabeleceu os desafios a serem superados no século XXI como desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos, combate à pobreza e mudança nos padrões de consumo, entre outros (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 1996).

Ao final das discussões da Conferência Habitat II, foi elaborada a Declaração de Istambul, que continha apenas as metas definidas. Os aspectos ambiental, social e econômico foram abordados pelo documento como forma de promover sociedades mais sustentáveis. Porém, a Declaração não menciona como implementar tais metas, restando silente quanto a quaisquer planos de efetivação de tais metas.

Quatro anos mais tarde, com a Declaração do Milênio das Nações Unidas em 2000,19 novas prioridades para o desenvolvimento sustentável foram identificadas.

Consequentemente, a ONU-Habitat, por meio do programa de desenvolvimento das Nações Unidas e da Declaração sobre cidades, defendeu a redução da pobreza, com o objetivo de fornecer serviços de habitação e de baixo custo que atingem os pobres, especialmente, em favelas e assentamentos não planejados.

As Conferências internacionais dos anos 1990 e as do começo do século XXI não foram suficientes para compelir os Estados-membros a mudarem o comportamento da maioria da sociedade, de modo que se chegou à Conferência Habitat III com os mesmos problemas sociais, ambientais e econômicos no tecido social. As desigualdades, a pobreza e ausência de recursos, a escassez de matéria prima e as mudanças climáticas mostram que pouca coisa, ou nenhuma situação, foi alterada.

A Conferência da ONU/Habitat III foi a Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável, que ocorreu de 17 a 20 de outubro de 2016, em Quito, Equador, reafirmou o compromisso político de busca pelo desenvolvimento urbano sustentável. Além disso, determinou a avaliação das ações realizadas, até a data da conferência, de combate à pobreza e de enfrentamento dos desafios novos e emergentes, como políticas públicas para a promoção de moradias adequadas, o exercício da cidadania com o gozo do direito à cidade e a inclusão étnica (NOVA AGENDA URBANA, 2016).

4 A Nova Agenda Urbana da ONU/Habitat III

Os Estados-partes tiveram a oportunidade de discutir o desafio de como as cidades, vilas e aldeias são planejadas e gerenciadas, para que desempenhem e concretizem os objetivos da Agenda para o Desenvolvimento Sustentável até 2030, minimamente, no que tange a reduzir as desigualdades (ODS n. 10) e tornar as cidades includentes, seguras e sustentáveis (ODS n. 11).

Após debates e discussões a respeito dos temas relacionados à busca pelo desenvolvimento urbano sustentável, foi declarada a Nova Agenda Urbana (NAU), que afirmou a equidade como uma questão de justiça social, com o dever dos Estados-Parte de assegurarem o acesso de todos os cidadãos à esfera pública, de ampliar oportunidades e ampliar o número de bens comuns disponíveis a seus habitantes. A NAU também impõe um planejamento urbano nacional com a concretização de estratégias para alcançar o desenvolvimento sustentável por meio da urbanização sustentável (NOVA AGENDA URBANA, 2016).

Desta forma, a Declaração de Quito sobre cidades e assentamentos humanos sustentáveis para todos reconhece que a segregação socioespacial continua sendo uma realidade na maioria dos países, manifestando-se de múltiplas formas, sendo um dos grandes obstáculos para a concretização do desenvolvimento sustentável.

Ainda, a partir das discussões realizadas para a elaboração da NAU, foram elaborados dez documentos que abrange de modo específico alguns pontos a serem enfrentados pela política habitat. São eles: 1) Direito à cidade e cidade para todos; 2) Estruturas urbanas socioculturais; 3) Políticas urbanas nacionais; 4) Governança, capacidade e desenvolvimento institucional urbanos; 5) Finanças e sistema fiscal municipais; 6) Estratégias territoriais urbanas: mercado imobiliário e segregação; 7) Estratégias de desenvolvimento econômico urbano; 8) Ecologia urbana e resiliência; 9) Serviços urbanos e tecnologia; 10) Políticas habitacionais.

O documento de Política Habitat III, número 5, elaborado a partir da Conferência da ONU/Habitat III, apresenta que o crescimento econômico promove as conquistas de mais benefícios para a sociedade.20

As questões sociais, culturais e espirituais foram abordadas no documento de número 6, pois mostra que a segregação socioespacial impede o exercício de cidadania dos grupos vulneráveis. A esse respeito, o documento número 2 explicita que a valorização da cidade pode ser apenas um mecanismo de especulação imobiliária, que acaba tendo como resultado a exclusão das pessoas que não tenham condições de arcar com os novos custos do espaço urbano. Este fenômeno se chama gentrificação.21

Fato é que “as cidades não podem ser construídas com base apenas no valor econômico” (ALFOSIN et al., 2017, p. 1228), porque isto viola o direito à moradia que, sendo um direito fundamental, deveria ser fornecido gratuitamente (ou, conforme Comentário Geral n. 4 do Comitê das Nações Unidas para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, fornecidas de modo subsidiado pelo governo).22

Os governos precisam ter a iniciativa de promover mecanismos que sigam as diretrizes de todas os documentos decorrentes das Conferências da ONU-Habitat, assim como o setor privado teria que assumir mais responsabilidades para combater o crescimento desordenado dos assentamentos humanos. O documento de Política Habitat III número 3 prescreve sobre a importância de elaborar políticas públicas que contemplem o direito à cidade para todas as pessoas, sem discriminações e preconceitos.

A Nova Agenda Urbana evidencia que todas as formas de desigualdades devem ser enfrentadas com programas e ações de governo que promovam a segurança do meio ambiente, do crescimento econômico e das condições sociais das pessoas a partir do uso igualitário de cidades e assentamentos humanos:

Dentre tantos compromissos firmados entre os Estados-Partes da Nova Agenda Habitat III, destacamos o que prescreve a elaboração de políticas habitacionais que reduzam as formas de discriminação e violência (NOVA AGENDA URBANA, 2016, p. 14).

A Nova Agenda Urbana da ONU/Habitat III declara que, se as cidades forem bem planejadas e administradas, a urbanização pode ser um instrumento eficaz para o desenvolvimento sustentável, visto que o crescimento populacional, realizado de modo ordenado, não gerará o caos (NOVA AGENDA URBANA, 2016, p. IV).

Apesar de os desafios existentes contarem, em cada caso concreto, com as peculiaridades de cada Estado-membro, a Nova Agenda Urbana reafirmou todos os acordos prescritos até então sobre direitos humanos,23 evidenciando que a sustentabilidade deve proporcionar aos habitantes dos Estados-membros da ONU o gozo dos direitos de cidadania de forma plena.

No item 9, todos se comprometeram a alcançar o ODS número 11, buscando a diversidade cultural para o enriquecimento da humanidade, com igualdade e sem discriminação (NOVA AGENDA URBANA, 2016).24

Os compromissos avençados da Agenda são para propor um novo paradigma de cidade, visando a eliminação da desigualdade mediante planejamento, financiamento e administração com políticas públicas includentes. Os Estados-membros apontaram a necessidade de envidar esforços nesse sentido, esforços estes que precisam ser ainda maiores para com os países do continente africano.

Reconheceram-se vários tipos de desigualdade, como de gênero, classe e etnia, conforme apontado pela Agenda da ONU, mas sem exaurir as possibilidades para a inserção de novos grupos vulneráveis. Sanchís (1994, p. 367-368) também relatou que existem diversas formas de desigualdade, fazendo com que o grupo que possui restrições de direitos seja considerado minoria a ser protegida.

O plano para aplicação das metas estabelecidas na Nova Agenda Urbana propõe combater as desigualdades e a pobreza, assim como as discriminações, com a finalidade de fomentar o desenvolvimento sustentável.

A partir dos ODS 10 e 11, o artigo 13 da NAU prescreve o ideal de cidade a ser almejado pelos governos e cidadãos, apontando que a cidade deve promover o cumprimento de sua função social (algo previsto desde 1988 no artigo 182 de nossa Constituição, e desde 2001 no Estatuto da Cidade), acesso à moradia sem discriminação, com inclusão social, participação política e com o reconhecimento dos grupos vulneráveis ou desfavorecidos, tendo a sustentabilidade como base.

O documento final da Conferência da ONU/Habitat III estabelece políticas de governo e dos demais atores sociais para a implementação das metas da NAU.

As Conferências Habitat não foram suficientes para alterar as disparidades sociais, as crises econômicas e os danos ambientais, que são o objeto principal de suas declarações e prescrições. De igual modo, não promoveram mudanças significativas nas relações sociais de base racial ou racista, tema que, embora incluído no conceito de cidades sustentáveis, não foi tratado diretamente por nenhuma de suas declarações, mas esta questão é reconhecida pela ONU, principalmente em razão da determinação da década dos Afrodescendentes de 2015-2024.

5 A década dos afrodescendentes e o reconhecimento internacional da desigualdade racial

A desigualdade racial, principalmente entre brancos e não-brancos, ainda é um motivo de segregação, que dificulta o grupo subalternado do direito à igualdade e do direito à cidade. É preciso, portanto, explicitar a desigualdade racial como indicador de exclusão e como empeço à concretização da igualdade.

A Nova Agenda da ONU/Habitat III abrange os ODS, a luta em favor dos Direitos Humanos, e consequentemente, a Década Internacional dos Afrodescendentes (Resolução n. 68/237 da Assembleia Geral da ONU), proclamada pela Assembleia Geral no período de 2015 a 2024.25

A declaração da Década Internacional dos Afrodescendentes foi um reconhecimento internacional de que a população afrodescendente é inferiorizada em todo o mundo, padecendo com a discriminação racial, xenofobia, racismo e ausência de direitos. As relações sociais racistas encontram-se tão bem estruturadas que libertar-se dessa situação é um sonho distante para essas pessoas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015a). Mas, ainda assim, não deixa de ser um objetivo a ser alcançado e um princípio a determinar normas de promoção de igualdade.

Diante dessas disparidades, foram traçados objetivos pela ONU para corroborar com o término da subalternação destinada aos afrodescendentes a partir da renovação dos ideais recomendados na Carta das Nações Unidas de 1945, nos pactos assinados e ratificados, assim como com a adoção e reforço do Declaração e Programa de Ação de Durban e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015a).26

No Brasil, a desigualdade racial foi evidenciada por inúmeros dados estatísticos. O IPEA elaborou indicadores para avaliação e apresentação de dados que contribuíram com as denúncias da desigualdade racial e com o combate ao racismo, tendo recebido apoio das instituições públicas como Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal e Tribunal Superior do Trabalho (MARTINS et al., 2004, p. 60-61). Houve progresso em algumas áreas, mas a desigualdade social continua produzindo profundo obstáculo em desfavor da população negra, conforme reconhecido no item 16, da introdução aos ODS:

16. Quase quinze anos atrás, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) foram acordados. Estes forneceram um quadro importante para o desenvolvimento e um progresso significativo foi feito em diversas áreas. Mas o progresso tem sido desigual, particularmente na África, nos países menos desenvolvidos, nos países sem litoral em desenvolvimento e nos pequenos Estados insulares em desenvolvimento, e alguns dos ODM permanecem fora dos trilhos, em particular os relacionados com a saúde materna, neonatal e infantil e à saúde reprodutiva. Nos comprometemos com a plena realização de todos os ODM, incluindo os ODM não cumpridos, em particular por meio da assistência focada e ampliada para os países menos desenvolvidos e outros países em situações especiais, em conformidade com os programas de apoio relevantes. A nova Agenda se baseia nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e pretende completar o que estes não alcançaram, particularmente em alcançar os mais vulneráveis. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015a, grifo nosso).

Os documentos da ONU relatam que o Brasil foi o principal receptor de homens escravizados vindos da África, a ponto de possuir a segunda maior população negra do mundo, tanto que, nos dias de hoje, 54% da população brasileira se identificam como afrodescendentes (negros ou pardos) (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2018).

Os Estados-partes da ONU assumiram o compromisso de adotar medidas que assegurem a participação ativa, significativa e livre dos afrodescendentes, a ponto de eles serem incluídos no desenvolvimento do processo de tomada de decisão, diante de um quadro de inferiorização e desigualdade (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015a, p. 14-15).

A Assembleia Geral reconhece também que existe desigualdade no acesso à moradia, pois a maioria dos afrodescendentes em todo o mundo residem em áreas insalubres, precárias e sem a garantia de direitos como saúde, educação e emprego.

A ONU impôs à comunidade internacional o dever de tomar medidas que priorizem programas e projetos criados especificamente para enfrentar o racismo e a discriminação racial contra a população afrodescendente (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015a, p. 17).

Gonzalez e Hasenbalg (1982) afirmaram que a desigualdade racial está tão arraigada que definiu lugares específicos nos espaços da cidade para brancos e negros. Os negros não poderiam frequentar os espaços definidos como os brancos, pois estariam violando a norma que estabelece a segregação.

A autora Millington (2011) também relatou que a segregação socioespacial das cidades acontece não apenas em razão da desigualdade de classe, mas também pela “raça”. A autora evidenciou que, nas cidades, compreendidas a partir da perspectiva de Lefebvre, os espaços não são absolutos, de modo que precisam ser pensados além da realidade, pois uma cidade não deve ser racializada.27

Nos anos de 1980 e 1990, os guetos-norte americanos passaram a ser não apenas a aglomeração de pessoas discriminadas pela cor de pele (os negros), como também pela classe social, formando um “depósito de excedentes, ou seja, excluídos” (WACQUANT, 2008, p. 55-56).28

Os negros e não-brancos foram atingidos pela segregação ou apartação das atividades civis, ficando restritos apenas aos espaços e setores públicos autorizados pelos brancos, que sempre constituíram a força estatal. Nesse sentido, as pessoas negras não eram cidadãs, visto que não tinham direito ao voto, não podiam circular livremente pela cidade, tendo sido relegadas a zonas improdutivas e distantes (MBEMBE, 2014, p. 12-13).

A partir do momento em que se evidencia que as cidades possuem muito mais negros do que brancos nas áreas periféricas, nas favelas e nas ruas, não podemos entender que os problemas estejam apenas na desigualdade de classe ou em algum tipo de má-sorte que só atinge os negros. O racismo é o instrumento utilizado para manutenção da exclusão ou sub-inclusão dos negros29 nos espaços da cidade.

6 Considerações finais

A Agenda Habitat da ONU, por certo, não deve estar de fora dessa realidade internacional de ações em favor da Década dos Afrodescendentes, visto que o desenvolvimento sustentável não pode ser alcançado ou almejado se não houver o cumprimento da igualdade que, necessariamente, passa pelo combate ao racismo e pela implementação dos objetivos da Década dos Afrodescendentes.

Tanto os ODS quanto os objetivos da Década dos Afrodescendentes são utilizadas pela Agenda da ONU/Habitat III para a mudança da realidade, desde que ações efetivas sejam adotadas não para amenizar as dificuldades, mas para alterar a estrutura que levou a existência do racismo.

Apesar da declaração dos ODS e da Década dos Afrodescendentes, e apesar da Nova Agenda da ONU/Habitat III, os números --ao menos os relativos ao Brasil e à África do Sul-- evidenciam que as estruturas do racismo e exclusão social da população negra continuam enraizadas.

Os documentos da Década dos Afrodescendentes não apresentam a peculiaridade dos negros em seu contexto nacional, pois quando se fala de negros da África, não discrimina o país, aldeia e identidade desses negros, incluindo a todos no mesmo grupo de excluídos. Há a necessidade de distinguir as formas de combate ao racismo segundo a realidade específica em cada lugar, pois o fato de os fundamentos da desigualdade racial serem similares, não é suficiente para garantir que o enfrentamento seja uniforme.

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1 Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho; Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Campina; Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4834-0170; mastrodi@puc-campinas.edu.br

2 Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Mestra em Sustentabilidade pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.; Bolsista Integral Capes; Bolsista Integral Capes; Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6700-9577; mbwaleska@gmail.com.

3 Para compreender melhore a respeito dos fundamentos do racismo no Brasil, ver Batista e Mastrodi (2018) e Almeida (2018).

4 Os eventos anteriores e posteriores às conferências Habitat, incluindo as legislações brasileiras que foram elaboradas ou complementadas como resultado dos acordos celebrados podem ser estudados na dissertação de mestrado de Brito (2018).

5 Antes da industrialização já havia degradação ambiental, porém em dimensões menores, muito abaixo da capacidade de regeneração do planeta. Atualmente, a exploração de matérias primas para manutenção do modo de produção já está, há tempos, além dessa capacidade (MASTRODI, 2017, p. 52). O modo de produção capitalista estrutura as dinâmicas sociais para que seja garantida a maximização do lucro, ainda que isso implique em danos ecológicos (WOOD, 2011, p. 228).

6 NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, grifo nosso).

7 Artigo 13.1. A Assembleia Geral iniciará estudos e fará recomendações, destinados a: a) promover cooperação internacional no terreno político e incentivar o desenvolvimento progressivo do direito internacional e a sua codificação; b) promover cooperação internacional nos terrenos econômico, social, cultural, educacional e sanitário e favorecer o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, por parte de todos os povos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião (ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, grifo nosso).

Artigo 55. Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a. níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b. a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e c. o respeito universal e efetivo raça, sexo, língua ou religião (ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, grifo nosso).

8 O Tratado de Roma (1957) não fez referência sobre a punição ao poluidor do meio ambiente. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 1972, prescreveu sobre o Poluidor Pagador. No Brasil, esse princípio está prescrito no artigo 225, §3º, da Constituição Federal de 1988.

9 Acontece que dentro do regime capitalista é inevitável os danos e desgastes om os recursos, pois a exploração e acúmulo de capital são colocadas como prioridade no lugar da preservação dos recursos.

10 Com essa ideia, mesmo que os recursos fossem preservados, a exceção a essa regra estava no desenvolvimento. Este justificava o término dos recursos naturais.

11 O Brasil se mostrou contrário à luta coletiva para combater os danos ambientais e a escassez de recursos.

12 A Declaração de Estocolmo coloca o ser humano como a criatura mais valiosa, capaz de alterar o meio para que promova o desenvolvimento. Desta forma, o princípio prescreve que “o desenvolvimento econômico e social é indispensável para assegurar ao homem um ambiente de vida e trabalho favorável e para criar na terra as condições necessárias de melhoria da qualidade de vida.” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1972).

13 Sobre a condição do Brasil frente às Declarações interacionais e a mudança interna, ver Brito (2018).

14 O nome Brundtland foi colocado em homenagem à presidente da comissão, Gro Harlem Brundtland, que à época era primeira ministra da Noruega.

15 Na medida em que cada dominado quer ser como o dominante, abre-se espaço para que um ou outro, singularmente, ascendam e mudem de classe, algo que ideologicamente é muito eficaz para manter os dominados no lugar e manter a ideia de que a estrutura é justa. O conflito acontece quando o grupo inteiro que é dominado quer acabar com a dominação (não necessariamente quer acabar com os dominadores). O sistema econômico jamais deixará que o dominado seja o dominante, todavia, para retroalimentar a ideologia de desenvolvimento/crescimento, permite-se a ascensão de algumas pessoas.

16 Segundo Boff (2015, p. 36), para os analistas sociais era notável que o desenvolvimento sustentável era uma contradição ao sistema capitalista, já que as injustiças e desigualdades ainda estavam mantidas.

17 A troca entre os países, em tese, deveria ser uma cooperação para que pudessem desenvolver conjuntamente mecanismos para que se alcançasse equidade social e econômica entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, conforme pactuado na Carta das Nações Unidas de 1945. Em verdade, na prática, as trocas de informações para o desenvolvimento dos países acontecem, tão somente, quando há algum benefício ou ganho econômico ao fornecedor das informações. Ou seja, não se verifica como princípio o apoio entre os países.

18 A dissertação de Brito (2018) aborda quase todos os eventos relativos às conferências Habitat, e como isso refletiu no ordenamento jurídico do Brasil.

19 Em 09 de junho de 2001, a Assembleia Geral da ONU adotou a declaração sobre Cidades e Outros Assentamentos no novo milênio, reafirmando os pontos da Agenda Habitat e novos compromissos definidos durante a Conferência Habitat II.

20 O documento Habitat número 5 sequer trata da situação se tiver um país que não seja federado. Ou seja, não atinge a todos os Estados.

21 No Brasil, a partir do século XX, as cidades brasileiras passaram a ser definidas em três pilares: crescimento econômico, expansão urbana e segregação social. Consequentemente, houve o aumento dos subúrbios, pois o custo de vida nos centros urbanos estava ficando mais caro. E esse processo denomina-se gentrificação (FERREIRA, 2005, p. 65-66).

22 Mastrodi e Sala (2017, p. 1047-1048) afirmaram que o planejamento urbano prioriza o mercado imobiliário e não o direito à moradia e à cidade, de maneira que estes direitos passam a ser encarados ora como privilégios, ora como mercadorias.

23 O item 12 prescreve que a Nova Agenda Urbana se fundamenta, entre outros, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), nos tratados internacionais de direitos humanos, na Declaração do Milênio (2000) e na Carta Mundial (2005).

24 As discriminações étnicas e de raciais estão abrangidas nesse ponto, vez que diversidade cultural está relacionado a tais questões.

25 Há “a necessidade de reforçar a cooperação nacional, regional e internacional em relação ao pleno aproveitamento dos direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos de pessoas de afrodescendentes, bem como sua participação plena e igualitária em todos os aspectos da sociedade” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015a).

26 A Declaração de Durban (2001) afirma a importância de continuar as lutas iniciadas na África do Sul de combate as discriminações, preconceito, xenofobia e desigualdade racial, assim como a Convenção Internacional para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação (UNESCO, 1996).

27 Para a autora, os espaços não são absolutos porque são constituídos a partir das relações entre as pessoas, de maneira que se há grupos excluídos, formam-se espaços de pessoas excluídas, como acontece com as minorias.

28 Frise-se que, nos Estados Unidos da América, a definição de a pessoa ser negra era pela gota de sangue, independentemente do fenótipo. É um preconceito de marca, conforme apontou Abdias do Nascimento.

29 “As novas formas do racismo são decorrentes de processos de novos discursos de ideologias construído por grupos dominantes para justificar a sua condição de maioria social, originando uma forma indireta de preconceito” (ADRIGHETTO; OLSSON, 2014, p. 453).