https://doi.org/10.18593/ejjl.19800

A RUA GRITA DIREITOS HUMANOS: UMA REFLEXÃO ACERCA DA CRIMINALIZAÇÃO DAS MANIFESTAÇÕES SOCIAIS FEMINISTAS E DE MULHERES NO BRASIL E SUA REPERCUSSÃO COM RELAÇÃO À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

STREET SCREAMS FOR HUMAN RIGHTS: A REFLECTION ON THE CRIMINALIZATION OF FEMINIST AND WOMEN’S SOCIAL MANIFESTATIONS IN BRAZIL AND THEIR IMPACT ON THE EFFECTIVENESS OF HUMAN RIGHTS

Angelita Maria Maders1

Resumo: Objetiva-se, neste artigo, refletir acerca do crescente fenômeno da criminalização das manifestações dos movimentos sociais, dentre eles e em especial, os feministas e de mulheres, e suas consequências para a concretização dos direitos humanos no Brasil. Para alcançá-lo, faz-se, primeiramente, uma revisão bibliográfica, com base em uma epistemologia feminista, acerca da caminhada evolutiva e conceitual desses movimentos. Após, são trazidos e problematizados aspectos inerentes à criminalização das manifestações e protestos dos movimentos sociais e da resistência feminina especialmente no que se refere à efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos, adentrando na questão da exacerbada utilização do Direito Penal como mecanismo simbólico de solução dos conflitos sociais. Conclui-se não ser a repressão a melhor resposta a ser dada pelo Estado para tanto, pois o direito à manifestação é um direito que decorre do direito à liberdade e, portanto, é um direito fundamental; limitações desproporcionais a este são equivocadas e atentatórias aos Direitos Humanos, além de não representarem a melhor técnica para a (re)afirmação da democracia no país. A pesquisa é bibliográfica; afinal, traz um recorte de ideias de autoras que são referência nacional e internacional para aviventar o debate acerca dessa temática, cada dia mais atual.

Palavras-chave: movimentos sociais; feministas e de mulheres; conflitos sociais; criminalização; Direitos Humanos.

Abstract: The objective of this article is to reflect on the growing phenomenon of criminalization of the manifestations of social movements, among them, especially feminists and women, and their consequences for the realization of human rights in Brazil. To achieve this, firstly, a bibliographical review is carried out, based on a feminist epistemology, about the evolutionary and conceptual path of these movements. Afterwards, aspects inherent in the criminalization of social movements and women’s resistance, especially regarding the realization of sexual and reproductive rights, are introduced and problematized, entering into the issue of the exacerbated use of criminal law as a symbolic mechanism for solving social conflicts. It is concluded that repression is not the best response to be given by the State to do so, since the right to demonstrate is a right that derives from the right to freedom and is therefore a fundamental right; limitations that are disproportionate to it are misleading and harmful to Human Rights, and do not represent the best technique for the (re) affirmation of democracy in the country. The research is bibliographical; after all, it brings a selection of ideas from authors who are national and international references to enliven the debate on this theme, which is more current each day.

Keywords: social movements; feminist and women’s movements; social conflicts; criminalization; Human Rights.

Recebido em 20 de novembro de 2018

Avaliado em 11 de dezembro de 2021 (AVALIADOR A)

Avaliado em 07 de dezembro de 2020 (AVALIADOR B)

Aceito em 08 de março de 2022

Introdução

Conflitos são inerentes às relações humanas. Eles sempre existiram e existirão enquanto houver seres humanos e relações sociais. Podem ser de diferentes ordens e ganham novos formatos e distintas dimensões de acordo com a temática, o período do desenvolvimento social e o local onde ocorrem. Não necessariamente envolvem o uso da violência física. Além disso, eles podem ser regulados ou não pelo ordenamento jurídico e ganhar contornos negativos ou positivos, pois ora geram perplexidades e ações humanas no sentido de concretizar uma dominação, ora mudanças que contemplam princípios de justiça social. Assim, eles alçam natureza coletiva.

Tangencialmente às mulheres, a quem se volta o olhar neste texto, os conflitos também fazem parte de seu cotidiano, seja público, seja privado, o que ensejou, ao longo da evolução social, por parte delas, organização de movimentos de resistência e de busca por reconhecimento na esfera privada e espaço na vida pública, os quais, na modernidade, são chamados de “movimentos feministas” ou “movimentos de mulheres”2, e acompanham o movimento feminista mundial. O próprio feminismo, em um sentido mais amplo, é considerado um “movimento político”, pois “questiona as relações de poder, a opressão e a exploração de grupos de pessoas sobre outras. […] Propõe uma transformação social, econômica, política e ideológica da sociedade.” (TELES, 1999, p. 10). Por isso, as lentes que guiam esta pesquisa são, em sua maioria, as de autoras feministas que são referência nacional e internacional sobre o tema. São olhares que relatam os aspectos histórico-conceituais que serão trazidos na primeira parte da escrita.

O Estado, por sua vez, para manter a ordem social, passou a tutelar a quase totalidade das relações, tanto que houve uma sobreposição da esfera pública sobre a privada. Desse modo, ele passou a ingerir sobre o agir humano no ambiente público e privado e, na atualidade, tem ampliado seu poder para frear qualquer forma de oposição oriunda dos movimentos sociais, dentre eles os feministas e de mulheres, utilizando, para tanto, do auxílio da mídia e do Direito Penal para manter uma ideologia3, que ainda é a da classe dominante, em detrimento da efetivação de direitos. Verifica-se, inclusive, um ímpeto de criminalização das diversas formas de manifestação dos movimentos.

As reflexões tecidas partem do pressuposto de que o direito à manifestação é um direito fundamental de acordo com os preceitos da Constituição Federal de 1998 e também um direito humano, bem como que as manifestações populares são formas de expressão e de comunicação coletiva e, portanto, de participação política, importantes para a (re)afirmação da democracia. Em sendo um direito previsto pela legislação vigente, seu exercício pelos movimentos sociais ou por quem quer que seja não poderia ser criminalizado.

Objetiva-se, pois, neste artigo de revisão da literatura, estudar o fenômeno da criminalização das manifestações oriundas dos movimentos sociais feministas e de mulheres que tem ganhado forças e adeptos no Brasil e suas consequências para a efetivação dos direitos humanos destas e, por conseguinte, para a democracia no País. O texto é dividido em duas partes. Na primeira, para fins de contextualização, são trazidos aspectos histórico-conceituais acerca dos movimentos sociais e dos movimentos feministas e de mulheres como espécies daqueles, e também críticos, com suporte teórico em conceituadas autoras. Na segunda, já delimitando o tema, são problematizados dados e aspectos referentes à criminalização desses movimentos e de suas lutas no que se refere, em especial, aos direitos sexuais e reprodutivos, frente aos direitos humanos, contestando a utilização do Direito Penal como mecanismo simbólico de solução dos conflitos sociais. Utiliza-se do método histórico-dialético de pesquisa bibliográfica para dar sustentação argumentativa às reflexões e à compreensão dos dados coletados e discutidos e para iluminar em direção ao resultado.

1 Prolegômenos acerca dos movimentos sociais, feministas e de mulheres

Antes de adentrar no tema propriamente dito, a título de introito, faz-se mister situar contextualmente os termos utilizados no texto e trazer alguns aspectos histórico-evolutivos acerca da origem dos movimentos feministas e de mulheres como espécies de movimentos sociais, cujo processo de criminalização de suas manifestações se pretende trabalhar no próximo item. De acordo com essa linha de raciocínio, entende-se importante esclarecer que, quando se emprega a expressão movimentos sociais neste artigo, isto se dá em um sentido mais abrangente, nas mais diversas abordagens, mas que aglutinam setores afins que têm como finalidade reivindicar e defender interesses que lhes são comuns, dos quais os movimentos feministas e de mulheres são exemplos.

Diversos autores buscam conceituar “movimentos sociais”, cada um partindo de um ponto de vista, por vezes distinto, outras vezes semelhante, mas todos parecem comungar do fato de eles terem origem no conflito ou no desequilíbrio social e de se tratarem de uma organização de pessoas (homens e mulheres) ao redor de uma ação coletiva (programa de ação para atingir o objetivo) que visa a salvaguardar um interesse comum (objetivo comum). Eles surgem quando os conflitos perpassam o campo privado e viabilizam a criação de espaços para dar visibilidade à discussão, à contestação e ao compartilhamento de problemas que afetam atores coletivos. Segundo Lakatos (1985 apud SILVA, 2001a, p. 91), eles

[…] derivam das insatisfações e das contradições existentes na ordem estabelecida, originam-se em uma parcela da sociedade global e apresentam certo grau de organização e de continuidade. Eles são vinculados a determinado contexto histórico e têm como objetivo transformar ou conservar o status quo.

Para Miranda (2016), há dois modos de sintetizar sua conceituação: de acordo com o modelo clássico ou com o modelo dos novos movimentos sociais, sendo este último considerado o mais adequado para se abordar o movimento feminista. Seguindo o modelo clássico, os movimentos sociais estariam associados à ideia de revolução ou de atuação de massa para apossar-se do poder. Já a outra conceituação estaria marcada e direcionada a mudanças culturais provocadas pela criação de espaços de crítica e de conquista, preocupados com a formação de identidades, sua organização e conflitos.

As manifestações e movimentos sociais, assim como os conflitos, estão presentes em todas as sociedades e em diferentes épocas. No Brasil, desde o início de sua história, pode-se falar da ocorrência de movimentos sociais com as rebeliões de escravos no período colonial, as lutas operárias e camponesas posteriormente, até chegar aos dias atuais, quando se constata a existência de inúmeros e novos movimentos sociais organizados e em organização, que são estudados em diferentes áreas do conhecimento e sob distintos paradigmas (histórico-estrutural, culturalista, neoidealista e neopositivista), a exemplo do que faz Gohn (2012), os quais são apenas citados e não serão objeto de estudo neste texto em razão de sua limitação espacial.

As bases sociais dos movimentos sociais são os grupos sociais, e suas reivindicações são a eles direcionadas, o que os diferencia das classes sociais, cuja luta tem pautas distintas. Os movimentos sociais também não se confundem com as manifestações sociais; tampouco podem ser a elas reduzidos, pois as manifestações, assim como os protestos, podem ser realizados pelos movimentos sociais, como por quaisquer classes sociais ou grupos de pessoas, de modo que se diferenciam dos primeiros (VIANA, 2018).

Ao se tratar de movimentos sociais, não há, pois, como não abordar a questão dos conflitos sociais que são protagonizados por diferentes atores e, no decorrer da evolução social, ganharam novos contornos. Na atualidade, esses conflitos estão mais latentes e afetam a todos por terem por base diversos problemas fundamentais, que estão na base da sociedade e são “fontes de contradições, antinomias, incoerências, injustiças que repercutem com intensidade variável nos mais diversos setores da vida social.” (SANTOS, 1995, p. 283). Muitos desses problemas decorrem não somente da violação de direitos, mas da omissão estatal quanto à efetivação de direitos que foram concedidos aos cidadãos como promessas da democracia. Tanto é assim que, hodiernamente, o Estado é considerado um dos maiores violadores de direitos pelos movimentos sociais, que pugnam por mudanças.

Os conflitos, como referido, surgem em razão da indignação, da perplexidade por questões ligadas ao reconhecimento e à liberdade, pautas da marcha das mulheres, e podem ser analisados sob diversos aspectos como algo negativo; contudo, eles também são importantes para que ocorram mudanças sociais, já que envolvem sujeitos coletivos na luta contra a situação que lhes causou essa perplexidade e, por sua vez, despertou-lhes o desafio da mudança4 e, sob esse aspecto, são positivos. Transformam-se em conflito social quando se generalizam para além do individual.

No que se refere à questão feminina, é oportuno recordar que, embora as mulheres representem em torno de 51% da população mundial, encontram-se, ainda, em estado de subordinação frente a uma minoria masculina. Ao longo da história da humanidade, seus feitos foram desprivilegiados e seu papel inviabilizado. Não raras vezes, elas são consideradas dignas de menos direitos do que os homens, embora (con)vivam com eles sob o manto do mesmo Estado Democrático de Direito. Em virtude dessa situação de submissão que perpassa gerações, os conflitos que surgiram têm uma envergadura mundial e remontam à antiguidade. Eles ganharam a dimensão de movimento social quando elas passaram a lutar contra a opressão masculina a que estavam submetidas ao longo dos séculos, inclusive a violência simbólica que lhes era afligida no seio de suas famílias. Inicialmente, a resistência feminina era contra a política de reconhecimento equivocado como seres inferiores e dependentes, que fomentou a exclusão econômica e social das mulheres do espaço público e, portanto, diversos conflitos, que, ao longo do tempo, ensejaram a formação de diferentes movimentos com objetivos específicos aliados às reivindicações de gênero. Isso ganhou relevo com a Revolução Francesa, a partir de quando as reivindicações das mulheres transformaram-se no “movimento social de mulheres” e passaram a ter “expressão na França e no mundo” (MIRANDA, 2016, p. 40)5 e a alimentar o movimento sufragista6 e as demais reivindicações delas ao longo do século XIX e XX em diversas frentes reivindicatórias. A expressão “movimento de mulheres”, de acordo com Teles (1999, p. 12),

[…] significa ações organizadas de grupos que reivindicam direitos ou melhores condições de vida e trabalho. Quanto ao “movimento feminista” refere-se às ações de mulheres dispostas a combater a discriminação e a subalternidade das mulheres e que buscam criar meios para que as próprias mulheres sejam protagonistas de sua vida e história.

Mas a formação de uma consciência de militância, revolucionária é e foi mais difícil para as mulheres em decorrência do meio patriarcal em que estão imbricadas e no qual sofrem toda sorte de exploração, fenômeno que até naturalizam e reproduzem. Isso, associado “a uma ideologia de uma suposta natureza feminina, as constitui como submissas, subservientes, passivas e apolíticas.” (ÁLVAR0, 2013, p. 9). Em sentido semelhante, de acordo com Lerner (2019, p. 297),

O maior indicativo de impedimento para o desenvolvimento de consciência de classe para as mulheres foi a ausência de tradição que reafirmariam a sua independência e autonomia e qualquer período. Nunca houve nenhuma mulher ou grupo de mulheres que vivem sem a proteção masculina, até onde a maioria das mulheres sabiam. Nunca houve nenhum grupo de pessoas como elas que tivessem feito qualquer coisa significativa para elas. Mulheres não tem história- é o que disseram; então elas acreditaram. Assim, finalmente, foi a hegemonia masculina sobre o sistema simbólico que mais decisivamente deixou as mulheres menos favorecidas.

Apesar disso, muitas delas foram protagonistas de movimentos sociais. Elas não tinham sequer condições de escrever sua própria história e aqueles que escreveram a história oficial não tinham interesse em descrevê-las como sujeitos dessa história. Interessava deixá-las à margem. A falta de registro de informações acerca dos movimentos de mulheres no Brasil é responsável pela crença de que se trata de algo novo, mas “suas raízes podem ser localizadas em lutas anteriormente travadas consciente ou inconscientemente por mulheres intelectualizadas ou por grupos de mulheres de origem popular”, a exemplo das mulheres negras nos quilombos (TELES, 1999).

No Brasil do período colonial, as mulheres, sejam indígenas, negras ou brancas, viviam as desigualdades sociais e econômicas relegadas ao ambiente doméstico, submetidas ao poder do pai ou do marido, ou ainda de seu senhorio. Sua vida pública era limitada, assim como seu direito de ir e vir. Não obstante, algumas se destacaram nos acontecimentos daquela época, apesar de terem sido relegadas ao esquecimento pela história oficial, como dito, ou taxadas de loucas ou prostitutas, no intuito de desmerecê-las (TELES, 1999), a exemplo de Bárbara Heliodora, Dona Beja, Chica da Silva, Marília de Dirceu, Ana Pimentel, Brites de Albuquerque, Filipa Aranha, Zeferina, Clara Camarão, Maria Quitéria, Maria Dias Ferraz do Amaral, dentre outras. Mas esse papel de submissão passou a experimentar algumas transformações no século XIX, as quais são relacionadas aos ideais anarquistas e socialistas trazidos da Europa pelos imigrantes. O governo, então, teria reconhecido a necessidade de educação da população feminina, o que, todavia, atendeu, primeiramente, apenas as classes mais abastadas. A primeira legislação a prever a abertura de escolas públicas femininas é do ano de 1827. O direito a frequentar curso superior foi alcançado apenas em 1839.

O século XX começou com a movimentação de mulheres que passaram a se organizar e lutar por melhores salários e melhores condições de trabalho, bem como pelo direito ao voto. A luta de quase meio século das mulheres para efetivar o seu direito ao voto no Brasil e que se deu por intermédio dos movimentos sociais ou não merece ser aqui relembrada, mesmo que de modo sumário pelas repercussões futuras na sociedade.

De acordo com Rezzutti, em 1885, Isabel de Souza Mattos, uma dentista gaúcha, teria evocado em favor de seu alistamento eleitoral uma legislação vigente, que, em 9 de janeiro de 1881, teria sido aprovada, isto é, o Decreto n. 3.029. Referido decreto era

Conhecido como Lei Saraiva, reformou a legislação eleitoral, obviamente sem fazer qualquer menção à mulher. Entretanto, o seu art. 2º, § 10º, autorizava serem eleitores todas as pessoas com “diplomas científicos ou literários de qualquer faculdade, academias, escola ou instituição nacional ou estrangeira, legalmente reconhecidos”. (REZZUTTI, 2018, p. 156).

Em virtude de seu pedido ter sido negado, ela teve de ingressar com uma ação judicial, na qual obteve vitória apenas em segunda instância (REZZUTTI, 2018).

Com a queda da monarquia e a instalação de uma nova Constituinte, diversas emendas foram tentadas para que fosse garantido às mulheres o exercício da cidadania, inclusive, “31 constituintes assinaram uma emenda conferindo às mulheres o direito ao voto, porém ela foi rejeitada.” (REZZUTTI, 2018, p. 157).

A baiana Isabel Dillon, também devido à Constituinte de 1891, tentou ser candidata a deputada, alegando que o regulamento eleitoral criado, à época (Decreto n. 511, de 23 de junho de 1890), não excluiria as mulheres do processo eleitoral. Ela chegou a publicar sua plataforma eleitoral e seus projetos. No entanto, sequer teve seu título de eleitor aprovado, pelo que sua candidatura não pode ser concretizada.

Assim como Isabel, também Leolinda de Figueiredo Daltro não conseguiu seu título de eleitor no ano de 1890. Mas ela não desistiu. Em 1910, fundou, no Rio de Janeiro, com outras feministas, o Partido Republicano Feminino (PRF) (REZZUTTI, 2018). O partido foi registrado oficialmente em 18 de agosto de 1911 graças a uma brecha na legislação. Entretanto, o partido não podia lançar candidatos, pois as mulheres não eram detentoras de direitos políticos. Mas elas não se calaram. Durante anos de lutas, Leolinda e as sufragistas organizaram passeatas, participaram de audiências oficiais e se mostraram publicamente em defesa do direito das mulheres ao voto (REZZUTTI, 2018), de modo que o PRF conseguiu ocupar diferentes espaços na cena política. Elas conseguiram o apoio do Senador Justo Chermont, que apresentou o Projeto n. 102, em 1919, para que fosse estendido às mulheres maiores de 21 anos o direito de votar e ser votado. Embora o projeto tenha passado pela primeira discussão na Câmara, não teve prosseguimento (REZZUTTI, 2018).

Em 1919, Leolinda tentou candidatar-se à prefeitura do Rio de Janeiro, mas não conseguiu que seu registro fosse aceito. Nesse mesmo ano, Bertha Maria Júlia Lutz e Maria Lacerda de Moura, além de outras mulheres, criaram a Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher. Elas ergueram a voz, atuaram por meio de campanhas na imprensa, manifestações artísticas, debates, panfletagem (REZZUTTI, 2018) para que a fala das mulheres fosse ouvida nos espaços públicos e de poder. O engajamento das mulheres em movimentos sociais de luta por seus direitos e de resistência, inclusive de escrita da sua história, teve um caráter inovador para romper o silêncio e a invisibilidade e, por sua vez, a tranquilidade, a ordem das coisas.

No ano de 1922, foi criada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBRF), que iniciou uma campanha nacional pelo direito das mulheres ao voto, quando também foi realizado o I Congresso Internacional Feminista, para o qual foram convidados vários homens e políticos como forma de dar ainda mais visibilidade à causa e buscar apoio para a legalização desse direito.

Em 1926, o antigo projeto do senador Justo Chermont, de 1919, foi reapresentado na Câmara dos Deputados com algumas modificações. O relator foi o deputado Juvenal Lamartine, do Rio Grande do Norte, membro da Comissão de Constituição e Justiça. Logo ele foi procurado por uma comissão da FBPF, que acabou por transformá-lo num combatente ao lado delas. Lamartine deu parecer favorável sobre o tema no Congresso logo antes de sair para se candidatar à presidência do Rio Grande do Norte. Como candidato ao governo do estado, incluiu em sua plataforma a concessão dos direitos políticos para as mulheres potiguares. E assim foi eleito com o apoio de Bertha Lutz e da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino para ser governador do Rio Grande do Norte no triênio de 1928 a 1931. Antes mesmo de assumir o governo, ainda em 1927, manobrou no senado do seu estado para fazer aprovar a Lei Eleitoral do Rio Grande do Norte que concedeu o direito ao voto às mulheres. Celina Guimarães Viana e Julia Alves Barbosa tornaram-se oficialmente as primeiras eleitoras brasileiras, e Luísa Alzira Teixeira Soriano foi eleita prefeita da cidade de Lajes em 1928, aos 32 anos. Seria a primeira mulher a ocupar uma prefeitura em toda a América Latina. (REZZUTTI, 2018, p. 160).

De acordo com Wollstonecraft (2001), o sufragismo seria a face mais visível do movimento feminista, vinculado às reivindicações de acesso à esfera pública, à inclusão política. Essa é a denominada primeira onda do movimento feminista7 por Hollanda (2018). A conquista do voto, no Brasil, somente se deu em 1932, com o primeiro Código Eleitoral brasileiro, mas apenas mulheres casadas, viúvas ou solteiras com renda própria poderiam exercê-lo. Na Constituição de 1934, porém, restrições foram retiradas e foi permitido o direito ao voto a todos os brasileiros maiores de 18 anos.

Outro momento histórico de mudanças celebrado em razão do movimento feminista, que é tratado com a segunda onda por Hollanda (2018), é o período de 1948, quando houve a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, até aproximadamente o ano de 1963, no qual se lutava pelo fim da discriminação e pela igualdade entre os sexos, mas quando a relação com a política não restou tão evidente. Marcaram o período as obras de Simone de Bevouair (1949) e de Bety Friedam (1963).

Os movimentos sociais ganharam maior representatividade no País após a metade da década de 70, quando membros da sociedade passaram a se organizar contra a ditadura militar e “as mulheres foram duramente atingidas.” (TELES, 1999, p. 159). As mulheres aproveitaram a insaturação do Ano Internacional da Mulher, em 1975, e o alargamento do espaço político para levarem a público suas reivindicações relativas à elaboração de políticas públicas voltadas à superação da desigualdade de gênero e também passaram a se mobilizar politicamente em busca de alternativas para a construção da democracia frente à crise econômica, à repressão política e à violação de direitos humanos vivenciada (SUÁREZ, 1998). As feministas brasileiras integraram-se, na época, aos movimentos democráticos em favor da anistia, da liberdade política e por uma “constituinte livre e soberana.” (TELES, 1999, p. 14). As pautas feministas acerca da igualdade sexual, divórcio, direitos reprodutivos que marcaram a segunda onda do feminismo brasileiro acabaram silenciadas pelas pautas mais amplas e urgentes contra a ditadura militar.

Mas, apesar da repressão sofrida, os movimentos feministas foram capazes de levar um novo significado ao poder político e à forma de entendê-lo, de modo a viabilizar a inclusão das mulheres na sociedade. Embora inicialmente a organização das mulheres brasileiras tenha ocorrido em torno de alguns segmentos, a exemplo das empregadas domésticas, donas de casa e secretárias e tratar de temas como planejamento familiar, aborto, discriminação no trabalho, participação política, os partidos políticos e os sindicatos também passaram a debater a questão do papel da mulher na sociedade e dentro de seus quadros (MIRANDA, 2016).

No período anterior à Assemblegia Nacional Constituinte de 1987, houve uma grande mobilização das mulheres para que as reivindicações feministas fossem incluídas na Constituição Federal de 1988, que se tornou um marco para elas ao contemplar a equidade de gênero. A partir de então, vários avanços foram ocorrendo. Elas passaram à condição de sujeitos de direito no mundo jurídico e a ter previstos direitos que anteriormente lhes eram sonegados. Isso repercutiu na legislação infraconstitucional. Essa é a terceira onda do movimento feminista, atribuída ao período compreendido entre os anos de 1980 e meados de 1990, quando se buscava consolidar o conceito de interseccionalidade entre as vertentes do movimento e as conquistas alcançadas (HOLLANDA, 2018).

A partir de 2010, o movimento feminista, ainda de acordo com a citada autora (HOLLANDA, 2018) vive a chamada "quarta onda", associada a uma nova forma de se organizar, reivindicar e lutar por direitos utilizando-se das redes sociais e da internet, cujo alcance é maior.

Importante esclarecer que essa divisão histórica do movimento feminista em ondas é desaprovado por outras autoras que igualmente estudam o feminismo. Nesse horizonte, parafraseando Chimamanda Adichie (2019), Pereira faz uma crítica à narrativa histórica da ideia do “feminismo em ondas”, por simplificar o processo complexo de lutas por reconhecimento político e histórico, seja dos movimentos feministas como dos movimentos de mulheres e não ter dado visibilidade à luta de muitas mulheres, a exemplo das mulheres indígenas e das negras escravizadas no Brasil. Segundo a autora Pereira (2021, p. 5)

Nessa ótica, a narrativa histórica hegemônica que consolida a ideia do feminismo em “ondas” por anos invisibilizou ou desqualificou formas de resistência e de luta pela vida, contra opressões e pela liberdade – na materialidade perigosa de uma história única (ADICHIE, 2019). Essa mesma leitura muitas vezes trabalha com uma ideia de movimento feminista (e não de movimentos feministas e movimentos de mulheres), e alinha essa qualificação cronológica da construção das lutas à conformação dos direitos de cidadania dentro de uma perspectiva bastante marshalliana.

Entretanto, o movimento feminista continua em atividade em busca de equidade de gênero. A cada vitória, novas demandas e novos enfrentamentos surgem e são levados a efeito, mesmo sob os olhares críticos da mídia, de alguns segmentos sociais e do poder estatal, para quem o próprio termo “feminismo” já incomoda. Recentemente, “As mulheres se tornaram o centro das últimas eleições presidenciais, uma vez que a rejeição ao candidato era alta entre elas.” (PINHEIRO-MACHADO, 2019, p. 137). Organizaram-se utilizando dos recursos das redes sociais e internet em uma marcha meio e fim, que uniu mulheres que possuíam como causa comum o rechaço do candidato Jair Bolsonaro ao poder. “O #EleNão foi um fato político permeado por uma série de ineditismos.” Era um evento sobre a politização das mulheres, para além dos resultados das eleições (PINHEIRO-MACHADO, 2019, p. 154). Embora Bolsonaro tenha vencido a eleição e assumido o cargo de Presidente do Brasil, elas vêem que o movimento foi vitorioso8, pois não se desfez; ao contrário, incentivou o comprometimento de diversas mulheres em garantir maior participação política. Para a citada pesquisadora,

#EleNão não foi uma simples hashtag, mas um movimento extraordinário de base, difuso e microscópico, que ao mesmo tempo organiza um ato político e serve de ponto de convergência para outras movimentações de mulheres, on-line e face a face. A politização feminina ocorreu nas redes sociais, pelo grupo Mulheres Unidas Contra Bolsonaro, mas, acima de tudo, por meio de conversas francas entre mulheres. (PINHEIRO-MACHADO, 2019, p. 155).

Ao criticarem a situação vigente e exigirem mudanças, os movimentos sociais em suas diversas modalidades de atuação, promovem uma certa turbulência na vida das pessoas, seja por retirá-las da zona de conforto em que se encontram ao provocarem reflexão, seja pelo fato de recordá-las da importância de sua participação política e da força que advém de sua capacidade de mobilização para a (re)afirmação do Estado Democrático de Direito; afinal, o poder emana do povo, consoante o descrito no parágrafo único do artigo 1º da CF/88. Saffioti, todavia, tece críticas à falta de perspectiva revolucionária do feminismo no Brasil, pois entende que estava apenas preocupado com os direitos das mulheres, quando deveria voltar-se contra o sistema capitalista e preocupar-se com a luta de classes. Para ela, as medidas que visavam a melhorar as condições de trabalho da mulher eram paliativas, que corresponderiam ao que denominou um “feminismo pequenoburguês” (SAFFIOTI, 1976). O feminismo deveria pensar a interseccionalidade9 em sintonia com os problemas gerais da sociedade, já que com eles inter-retro-agem. Em nível global, o feminismo hegemônico, liberal, também é criticado, inclusive por mulheres feministas, como Nancy Fraser, Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya (2019). Já se trabalha com um conceito de pós-feminismo.

Por vezes, as notícias e informações prestadas com relação a algumas manifestações sociais oriundas dos movimentos sociais ocorridas no País são veiculadas de forma desconexa com a realidade, a exemplo do ocorrido durante as manifestações populares de 2013, em virtude da violência perpetrada por grupos individualizados e infiltrados nos protestos, como é o caso dos black bloc10. Fatos como esse (re)forçam a antipatia das pessoas com essa forma de expressão da vontade popular e com os movimentos sociais em si, favorecem a incriminação dos integrantes dos movimentos, além de incentivarem o incremento do estado penal no Brasil, levando, consequentemente, à relativização e ao esvaziamento do conteúdo de princípios constitucionais que estabelecem freios ao poder punitivo. Quando eles afetam os movimentos sociais, cuja existência e atuação é disciplinada normativamente e, portanto, sob controle público, obstaculizam a efetivação do direito à livre manifestação e à liberdade de expressão, bens mais preciosos do ser humano, como já afirmado no artigo 11 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão veiculada pela Revolução Francesa de 1789: “A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; [...].” (DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO, 1789).

Nessa tangente, Viana (2018) refere que existem duas formas de criminalizar os movimentos sociais, a derivada e a direcionada. A primeira verifica-se quando alguma ramificação do movimento social pratica um ato considerado crime, a exemplo da ocupação da propriedade privada, que também é garantida constitucionalmente. A segunda ocorre quando é, como o nome já diz, direcionada ao próprio movimento social, como é o caso de criminalizar seu agir quando não houver comunicação prévia às autoridades de eventual ato de manifestação que venha a ocorrer, nos moldes previstos na legislação estadual do Rio de Janeiro.

Esse ímpeto criminalizante tem avançado pelas três esferas do poder estatal no País. Tramitam no Congresso Nacional vários projetos de lei para regulamentar o direito de manifestar, muitos deles no intuito de estabelecer limites à liberdade de expressão (criminalização direcionada), a exemplo do aviso prévio obrigatório de manifestações (PLs 876/2015 e 4657/2016), como refere Camila Marques, coordenadora do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação:

A gente teve a consolidação de uma jurisprudência extremamente criminalizadora e restritiva. No Executivo, o que se vê são as secretarias de segurança pública intensificando a compra de armamentos menos letais, como canhões de jato d’água e software de vigilância”, afirma Camila acrescentando que o Legislativo segue no mesmo rumo. “[No Legislativo], há 59 projetos de lei que tramitam sobre direito de protesto. Desses, apenas seis visam trazer alguma proteção aos manifestantes. O restante busca criar novos crimes ou aumentar penas. (AGÊNCIA CÂMARA NOTÍCIAS, 2017).

Em 14 de setembro de 2017, foi realizada pela Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados uma audiência pública para discutir os impactos dessas propostas legislativas nos direitos de reunião e de expressão assegurados constitucionalmente. Além disso, tramita no Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário 806.399/SE, interposto pelo Sindicato Unificado dos Trabalhadores Petroleiros Petroquímicos, Químicos e Plásticos dos Estados de Alagoas e Sergipe – Sindipetro, pela Coordenação Nacional de Lutas – Conlutas, e pelo Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado – PSTU, contra decisão de 2008, que proibiu um protesto que previa fechar trecho da BR 101, no qual foi reconhecida a repercussão geral e discute-se a necessidade de aviso prévio ao exercício do direito de reunião/manifestação. Essa seria, segundo Viana, uma forma de criminalização direcionada aos movimentos sociais.

Há uma grande preocupação com a aprovação de alguns desses projetos de lei ante a possibilidade de supressão de direitos conquistados. Na ponderação do conflito entre os direitos postos em causa, parece haver um esquecimento proposital por parte dos integrantes do poder estatal de que os movimentos sociais surgem em decorrência de conflitos oriundos da violação de direitos e que a participação popular por meio de manifestações é um ato legítimo, constitucionalmente consagrado como direito fundamental, e como tal deve ser respeitado; enfim, faz parte do processo de construção de uma sociedade democrática, cujo poder tem apenas um titular: o povo.

Do mesmo modo, a marcha feminina organizada como movimento social feminista ou de mulheres em busca da efetivação de direitos é vista com restrição pelos poderes instituídos11, que tentam silenciá-la, quiçá pelo efeito dominó que seu desdobramento implicará entre as etnias e outros segmentos sociais. Por isso, as pautas feministas estão longe de ser um consenso na sociedade brasileira e mundial; afinal, elas enfrentam resistências culturais e políticas, inclusive internas12, que são perceptíveis no agir discriminatório e criminalizador que é endereçado aos movimentos sociais em si, às suas lideranças e ativistas, o que se pretende demonstrar no próximo item.

2 Criminalização dos movimentos sociais feministas e de mulheres e sua repercussão com relação aos direitos humanos

A sociedade brasileira passa por um processo evolucionário marcado por conflitos que rompem o equilíbrio e desestabilizam a almejada paz social. Alguns são solucionados pelo ordenamento jurídico, outros não. Apesar disso, tem-se percebido uma exacerbação da utilização do Judiciário pelos brasileiros para a resolução de qualquer espécie de conflito, especialmente do espaço do Direito Penal, além de uma tendência por sua ampliação. Outros, porém, têm-se mostrado descrentes com o sistema de justiça vigente, com a democracia, e tendenciosos ao retorno à barbárie ao incentivarem a realização da justiça com as próprias mãos. Paralelamente, há um incremento na criminalização dos movimentos sociais e dos embates por eles travados contra a violação de direitos de diferentes ordens em decorrência de um aumento significativo dos discursos de ódio e intolerância e um aumento da liderança política com viés autoritário. O sistema democrático vivencia uma crise sem precedentes na história e precisa ser reinventado (CASTELLS, 2018) para reconstruir a confiança do público e ser mais inclusivo no processo de tomada de decisões.

Não é diversa a situação na Europa e no mundo, onde discursos nacionalistas pipocam e o autoritarismo se arvora, de modo que isso não significa que esse fenômeno seja isolado no cenário brasileiro. Entretanto, ele tem-se sistematizado nos últimos anos, em parte, pelo agir do próprio Estado, que se omite na proteção de direitos constitucionalmente assegurados, e tem tentado frear seu gozo por parte dos cidadãos, inclusive pelo uso da força, encontrando aliados na sociedade civil.

Em relação à atuação dos movimentos feministas e de mulheres, em âmbito nacional ou internacional, a situação é a mesma. Existem, inclusive, abaixo-assinados para criminalizar o “feminismo” no Brasil e para isso são usadas as redes sociais e a internet.13 Não é por nada que Castells (2018) preveja uma ciberguerra. Cabe aqui abrir um parêntese para trazer uma observação de Saffioti (2013, p. 179) quanto a essa ferida: “Cria-se, então, a imagem da feminista como um monstro que visa a destruir a família e a reduzir os homens à escravidão, numa completa subversão das leis divinas.” Fecha parêntese. De acordo com Adriana Mezadri, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), há uma luta constante para defender uma pauta de mudanças nas estruturas capitalistas e patriarcais que tentam impedir os avanços no que se refere ao reconhecimento da igualdade de gênero, mormente quanto à elaboração de políticas públicas para efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos. Segundo ela, mesmo com a crescente criminalização das manifestações, em uma autêntica tentativa de deslegitimar o sujeito político e suas lutas, o movimento continua enfrentando o grande capital e trabalhando pela ampliação de sua base de atuação (CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA, 2009). Silvia Camurça acredita que os motivos dessa criminalização seriam as conquistas alcançadas pelas mulheres. “São tantas e tão profundas as mudanças que o feminismo colocou para a sociedade, que as forças conservadoras não mais toleram.” (CFEMEA, 2009).

Diversos são os limites impostos ao direito de protestar, tanto que no Dia Internacional da Mulher - 08 de março de 2018 -, teve curso um protesto de mulheres ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em frente ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, onde são julgadas as apelações da Operação Lava Jato, e, dentre os objetivos do ato estava protestar contra a “seletividade” da Justiça. O grupo, todavia, fora impedido de se aproximar do tribunal por um cordão de isolamento da Brigada Militar (AZEVEDO, 2018). Atos dessa natureza limitam o exercício de direitos, pois o direito de protestar e de se manifestar constitui faculdade assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país no art. 5°, inciso XVI, da Constituição Federal de 1988, que dispõe que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido o aviso à autoridade competente.” (BRASIL, 1998).

Não obstante, diferentes movimentos sociais buscam junto ao Judiciário medidas preventivas para assegurar o exercício do direito à manifestação e ou repressivas para reaver o direito de ir e vir de seus líderes e integrantes, do qual estariam privados em razão de acusação de formação de quadrilha e ou apologia ao crime pelo Estado, em virtude de sua participação nos movimentos sociais, como é o caso das pautas de movimentos feministas e de mulheres que buscam a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez, que vai de encontro à ideologia conservadora de instituições como a família, a Igreja, a escola.

Há diferentes formas e mecanismos para criminalizar os movimentos sociais, como a ameaça, a coação e o medo, que objetivam deslegitimar o sujeito político e conter suas lutas e também as demandas populares. A criminalização dos movimentos sociais não ocorre por acaso. O Estado dela se utiliza como instrumento de repressão legitimada para conter atos revolucionários, considerados subversivos por exigirem transformações, mormente em sociedades capitalistas.14 Para conseguir o apoio da população, utiliza-se do poder de convencimento da mídia para deslegitimar a ação coletiva e suas reivindicações e incriminar os próprios ativistas. De acordo com Carlos Cés D’Elia, há vários elementos que buscam “legitimar” o processo de repressão dos movimentos, sendo o discurso mais recorrente o da desqualificação da luta por direitos ou pela defesa de direitos, que perpassa pelo convencimento da opinião pública, para a qual tudo o que foge à “normalidade” é reprovável (ATEU, 2017). Nessa tangente, o citado Procurador do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Comitê Estadual contra a Tortura afirma que:

Os movimentos sociais são diversos, desde os clássicos, como os sindicatos e as organizações de trabalhadores, como os novos que estão emergindo em meio à complexidade social, e visam a reivindicar ou defender direitos e se defendem ou reivindicam direitos, não existem motivos para sua criminalização em um estado democrático de direito, ainda mais quando se sabe que os direitos são frutos de lutas já travadas. Esses movimentos surgem em razão de ataques ou violações contra direitos já conquistados ou que se pretende conquistar. Há uma relação dialética entre criminalizar, ou seja, apontar o Direito penal em relação aos movimentos sociais que buscam contra-atacar em defesa ou na busca de novos direitos. (ATEU, 2017).

O Estado utiliza-se também da violência, do autoritarismo e da seletividade penal para conter as manifestações e movimentos sociais. É o que se observou, por exemplo, nas denominadas Jornadas de Junho, por ocasião das obras da Copa do Mundo em 2013 nas comunidades mais vulneráveis do Rio de Janeiro, quando coletivos protestavam por moradia, saúde e pelo direito à cidade (PINHEIRO-MACHADO, 2019).

Ao impor padrões de normalidade à sociedade de acordo com um sistema cartesiano, ao discriminar ou criminalizar padrões de conduta que não se encaixam em conceitos pré-definidos ou ao tentar barrar a manifestação, a luta por direitos, o Estado acaba excluindo e violentando pessoas (FOUCAULT, 2010), já que não enxerga a realidade nas entrelinhas dos fatos da vida. Quando o Estado não consegue conter os movimentos sociais, parte para a coerção e criminaliza os sujeitos que confrontam o status quo. Nesse sentido é o entendimento de Wood (2005, p. 47):

Em geral, somente quando sai para a rua, o conflito de classes se transforma em guerra aberta, principalmente porque o braço coercitivo do capital está instalado fora dos muros da unidade produtiva. O que significa que confrontações violentas, quando acontecem, não se dão geralmente entre capital e trabalho. Não é o capital, mas o Estado, que conduz o conflito de classes quando ele rompe as barreiras e assuma uma forma mais violenta. O poder armado do capital geralmente permanece nos bastidores; e, quando se faz sentir como força coercitiva pessoal e direta, a dominação de classe aparece disfarçada como um Estado "autônomo" e "neutro".

O processo de criminalização do direito de manifestar ou protestar e dos movimentos sociais tem início já no processo legislativo, quando a lei é elaborada de modo seletivo a determinados destinatários de acordo com os anseios do grupo dominante, a exemplo dos Projetos de Lei anteriormente citados, que tramitam no Congresso Nacional e pretendem impor restrições ao direito de manifestação (primária); ou pela ação punitiva concreta por meio de instâncias de controle e aplicação da lei, que se estabelece desde a investigação até a aplicação da pena (secundária).

Tangencialmente às mulheres, a criminalização de seu direito de manifestar e protestar, dentro ou fora dos movimentos feministas e de mulheres, é mais uma forma de violência contra elas endereçada pelo Estado, além da negação de direitos e anulação de sua própria subjetividade a que foram submetidas durante séculos. Tem-se observado que a ofensiva é ainda maior quando elas saem às ruas para reivindicar acerca da liberdade sexual e reprodutiva15 e da legalização da interrupção voluntária da gravidez, por exemplo. Embora essa seja uma das bandeiras mais antigas do movimento feminista, enfrenta forte resistência no país, onde o aborto é considerado crime16 por parte de uma ala conservadora dentro do próprio Legislativo17 e também da mídia, da Igreja, em contrariedade ao exercício dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Nesse mote, as mulheres e os manifestantes que advogam essa causa acabam sendo acusados, incriminados de fazerem apologia ao crime, quando o que querem é justamente a modificação da legislação vigente, que data de 1940, para a efetivação de direitos humanos das mulheres. Essa incriminação se dá por meio de um reforço intelectual deliberadamente perpetrado pelo aparato comunicacional através de discursos de legitimação da legislação vigente e da infração a ela pelos que defendem a mudança legislativa.

A repressão estatal é questionada por integrantes dos movimentos sociais quanto aos seus limites e legitimidade frente ao denominado pacto social firmado, pois ela não se limita à lei, mas à soberania do poder que emana do povo - primado do Estado Democrático de Direito -, dos cidadãos e cidadãs vítimas dessa violência, os quais sancionam a ordem jurídica e a quem esta se destina, sendo estes, pois, ao mesmo tempo, sujeitos e objetos do ordenamento jurídico. Ocorre que o agir estatal encontra limites na própria legislação e nos princípios democráticos basilares. Entretanto, na prática, estabelecer o limite entre a violência estatal legítima e a ilegítima é deveras complexo, ainda mais quando a discussão necessariamente tem de ser travada e julgada perante os órgãos estatais, já que tem a ver com dominação, com exercício de poder (violência simbólica)18, e assim já foi objeto de diversos estudos, inclusive por Hannah Arendt e Pierre Bourdieu.

A violência estatal considerada legítima é aquela que guarda correspondência com a autorização do ordenamento jurídico, que se utiliza politicamente de instrumentos legais repressivos, a exemplo da prisão preventiva; e a ilegítima, aquela que não guarda essa sintonia. Esta sustenta-se em uma visão de moralidade própria que esquece a humanidade do outro, em uma espécie de banalização do mal, de perda do vínculo com as normas vigentes, alterando valores e paradigmas, em um processo de naturalização da violência. Entretanto, ela tem-se alastrado sob o manto da legalidade e legitimidade para garantir a segurança pública e, em virtude disso, defender direitos humanos transformou-se em “caso de polícia”.

Constata-se, nessa dialética, um alargamento no direcionamento do Direito Penal sobre os movimentos sociais, que nasceram para lutar contra os ataques a direitos e que acabam sendo tratados pelo próprio Estado, equivocadamente, como organização criminosa, o que faz com o auxílio da mídia, que atua no imaginário popular trabalhando a ideia de que a solução dos conflitos e dos problemas deve se dar por meio da criminalização e da punição imediata, conforme Batista (2002).

Embora o Direito Penal seja considerado um aliado nas lutas feministas por direitos por algumas linhas dos movimentos feministas e de mulheres, e também na punição à violência doméstica contra a mulher, a exemplo da Lei Maria da Penha, a repressão penal é questionada e criticada como mecanismo de garantia da igualdade de gênero por outros setores dos movimentos sob diferentes aspectos, especialmente porque, ao estabelecer padrões homogeneizadores, não consegue abarcar as diversas facetas e nuanças de um movimento plural que pretende combater a misoginia19. Nesse sentido, Karam (2015a) afirma:

[...] O sistema penal nunca atua efetivamente na proteção de direitos. A expressão “tutela penal”, tradicionalmente utilizada é manifestamente imprópria, na medida em que as leis penais criminalizadoras, na realidade, nada tutelam, nada protegem, não evitam a ocorrência das condutas que criminalizam, servindo tão somente para materializar o exercício do enganoso, violento, danoso e doloroso poder punitivo. O bem jurídico não deve ser visto como objeto de uma suposta “tutela penal”, mas sim como um dado real referido a direitos dos indivíduos, que, por imposição das normas garantidoras dos direitos humanos fundamentais, há de ser levado em conta como elemento limitador da elaboração e do alcance daquelas leis criminalizadoras.

Sobre esse aspecto, Zaffaroni (1991, p. 149) afirma que, “enquanto os direitos humanos assinalam um programa realizador de igualdade de direitos de longo alcance, os sistemas penais são instrumentos de consagração ou cristalização da desigualdade de direitos em todas as sociedades.” Esse processo de criminalização dos movimentos sociais e de seus ativistas, defensores de direitos humanos, é atribuído por alguns autores, dentre eles Teixeira e Gomes (2010), à opção ideológica de quem acusa e julga. Quando o poder público, em suas três esferas, classifica os manifestantes como vândalos e as manifestações sociais como organização criminosa, utiliza-se da Lei de Organização Criminosa (Lei n. 12.850, de 02 de agosto de 2013) para o enquadramento, a qual, entretanto, destina-se às organizações terroristas e não deveria ser adotada para impedir a livre manifestação do pensamento.

Reagir de forma violenta contra a violência não é a melhor técnica; mesmo assim o Estado tem buscado administrar os conflitos utilizando da criminalização de condutas legítimas para dar respostas imediatas aos observadores. Equivoca-se, pois, de acordo com o pontuado por Karam (2015b),

O sistema penal tampouco alivia as dores daqueles ou daquelas que sofrem perdas causadas por comportamentos de indivíduos que desrespeitam e agridem seus semelhantes. Ao contrário. O sistema penal manipula essas dores para criar e facilitar a aparente legitimação do poder do estado de punir. Manipulando o sofrimento, o sistema penal estimula sentimentos de vingança. Desejos de vingança não trazem paz. Desejos de vingança acabam sendo autodestrutivos. O sistema penal manipula sofrimentos, perpetuando-os e criando novos sofrimentos.

Isso demonstra que o Judiciário, última ratio para quem busca a solução para os conflitos, mesmo após as mudanças legislativas em relação ao exercício dos direitos fundamentais e sociais, bem como sobre a questão de gênero, continua amarrado a respostas jurídicas de acordo com a lógica tradicional legalista-positivista,

[…] sujeito à assimilação dos parâmetros androcêntricos, refletindo em suas decisões a estrutura social em que se encontra inserido, reproduzindo-a na prática jurisdicional por meio de uma leitura da violência de gênero adstrita ao conflito isolado e privado, sem enxergá-la como uma violação de direitos humanos e por vezes utilizando argumentos morais ao invés de técnicos em seus julgamentos. Isso se verifica, inclusive, na interpretação equivocada de gênero, pois de acordo com Sciammarella e Fragale Filho, a polissemia do termo gênero tem sido utilizada no Judiciário com outros matizes, onde estaria se desconstituindo e ou se diluindo nos debates acerca da competência judiciária, o que viria de encontro às expectativas nele depositadas pelos movimentos feministas e também da intenção da própria lei. (MADERS; DUARTE, 2017, p. 195).

Essa função do poder estatal segue sendo arduamente criticada por não escutar os gritos que vêm das ruas, por não decidir em conformidade com o que as pessoas necessitam e por não enxergar a estrutura social na qual o conflito está inserido e trazer essa discussão para dentro de suas decisões, como poderia ter ocorrido no caso da criminalização da conduta de uma ativista da Marcha das Vadias, Roberta da Silva Pereira, que acabou denunciada e sentenciada pela prática de ato obsceno em razão de ter retirado a camiseta que vestia e exposto seus seios em via pública durante a Marcha das Vadias no ano de 2013, em Guarulhos/SP, e que espera, desse mesmo poder instituído, porém em uma escala hierárquica superior, ou seja, no Supremo Tribunal Federal, a modificação da citada decisão.20

Warat (2010, p. 127) sempre reforçou a ideia de que em uma democracia os ocupantes de um poder instituído não podem ser prisioneiros do normativismo; precisam ser mais sensíveis e aprender a ouvir a rua, isso porque “la calle grita constantemente la desmesura, denunciando como son ignoradas las diferencias, reducidas a minorías excluidas. Es um grito que no se escucha.” Isso se aplica também às lutas das mulheres, que são plurais, pois elas próprias são diversas, apesar do processo de silenciamento, invisibilização e subalternização que ainda vivenciam, do qual participaram, segundo Lerner (2019)21, e contra o qual continuam a guerrear.

Ainda, de acordo com Azevedo e Cifali (2015), ao aplicarem a lei e julgarem os casos concretos, ou seja, atuando como atores centrais no sistema de justiça, os juízes acabam sendo seletivos na aplicação da lei penal e na interpretação dela utilizando de seu poder discricionário para os setores sociais menos favorecidos econômica e culturalmente. Não bastasse isso, ao relativizarem princípios constitucionais, sob a argumentação “da excepcionalidade da situação vivenciada no país” e sob o manto de “manter a ordem pública”, como se em uma democracia não pudesse haver conflitos, protestos ou divergências, acabam por desconstruir todo um processo de conquista de direitos civis, esquecendo a existência de problemas históricos não resolvidos e, consequentemente, ferindo direitos humanos consagrados em convenções e tratados internacionais e previstos como direitos fundamentais na vigente Constituição Federal de 1988.

Com esse agir em nome da paz social, está-se, na verdade, a impor uma ditadura quando o que se quer é a efetivação da democracia, a qual, “[…] mais que respeito às leis estabelecidas, é conflito” e a “única forma de política que considera o conflito legítimo”, de acordo com Chauí (2006). Para viabilizar os direitos humanos de todos e todas é preciso conhecer a causa dos problemas, enxergar os invisíveis, prevenir conflitos e reconhecer que a manutenção das desigualdades sociais propicia o surgimento da violência e acaba com os marcos civilizatórios. Tentativas de mudanças por parte de movimentos sociais que cumprem seu papel civilizatório na sociedade e projetam em seus integrantes sentimentos de pertencimento social, como refere Gohn (2012), não podem ser alvo de criminalização para manutenção das gritantes injustiças sociais vigentes, pena de se incorrer em um grande retrocesso. Ao contrário, como conclui Castells (2018, p. 156), “os movimentos sociais de diferentes formas mudam mentes e, através delas, as instituições.” Nisso reside a esperança para uma nova política.

3 Conclusão

O objetivo do artigo restou alcançado ao proporcionar uma reflexão teórica acerca da criminalização das manifestações sociais trazendo, para tanto, aspectos e fatos que confirmam a crescente criminalização dos movimentos sociais, dentre eles os de mulheres e feministas, pela exacerbação da utilização do Direito Penal como instrumento de controle social, inclusive como resposta estatal ao surgimento de conflitos, o que tem reflexos na concretização de direitos humanos, a exemplo do próprio direito de liberdade de manifestação e de protesto, bem como dos demais que com esses estejam vinculados e cuja efetividade poderia vir a ser alcançada por meio dessa forma de pressão popular. Nesse sentido, buscou-se demonstrar que muitos direitos foram conquistados em virtude da ação das mulheres, organizadas em movimentos sociais feministas ou de mulheres, que somaram forças e lutaram por seus direitos, a exemplo daqueles que foram inseridos no texto constitucional vigente.

As pesquisas realizadas apontam que, ao longo dos tempos, “a condição da mulher brasileira não foge à regra universal da opressão feminina.” (TELES, 1999, p. 157). As reivindicações das mulheres por seus direitos de igualdade no espaço público e privado, pelos direitos sexuais e reprodutivos, pelo fim da violência, dentre outros, vêm de longa data e se alastram territorialmente. No campo ou na cidade, elas organizam-se em para lutar contra a exploração e opressão, em busca de novos direitos e pela reafirmação dos já conquistados, porquanto entendem que uma democracia igualitária depende “do enfrentamento daquilo que faz rodar as engrenagens de gênero.” (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 14). As manifestações e pautas pelas quais se empenharam ao longo dos tempos mudaram, assim como elas próprias, que se transformaram em agentes ativos de mudança, responsáveis pela promoção de transformações sociais.

Observou-se, também, que a teoria e a prática dos movimentos feministas e de mulheres não possui as mesmas características de outrora, mas implicaram transformações neles mesmos e na sociedade, além de visibilidade e novas pautas ao longo do tempo, bem como o reconhecimento de novos sujeitos, inclusive da diversidade das mulheres. Por isso se diz que a teoria feminista continua em constante e perpétua mudança para absorver a complexidade de suas lutas e essa é e deve ser sua razão de existir. Espera-se que seja um caminho sem volta.

Trazer os aspectos histórico-conceituais dos movimentos sociais feministas e de mulheres, embora suas diferenças, permite resgatar seus feitos, romper o silêncio, denunciar a invisibilidade e a homogenização do saber e dar maior visibilidade a sua causa, o que lhes foi negado ao longo da história social. Demonstra que elas não foram apenas coadjuvantes, mas protagonistas de sua história e continuam escrevendo a história que é de todos. As pautas dos movimentos feministas e das mulheres, mesmo distintas, não deveriam estar desvinculadas à solução dos problemas gerais da sociedade; no entanto, “a negligência em relação à mulher fica mais visível nos momentos mais significativos de nossa história.” (TELES, 1999, p. 63). O próprio movimento feminista tem sido refratário a algumas questões, dentre elas a dos direitos reprodutivos e a racial.

Ao contrário do que se está vivenciando no Brasil e sendo incentivado pelo Estado com o apoio da mídia, a intervenção penal deveria ser mínima e a última alternativa a ser utilizada para a pacificação social, pois a adoção de um estado penal repressivo esconde as causas da violência e da desigualdade e a falta de políticas públicas adequadas ao enfrentamento dos problemas sociais. As lutas por justiça econômica e justiça cultural (como no caso das mulheres) não podem ser alvo da violência estatal, porque esta reforça a lógica do ódio e da violência. Utilizar como meio preferencial o Direito Penal para a resolução de conflitos sociais e gerenciamento de condutas no espaço público, reflete seletividade na aplicação penal e, por sua vez, impede a universalização de uma cidadania igualitária.

Em nome da defesa das instituições e da segurança pública não se deveria restringir direitos fundamentais, como é o caso da liberdade de manifestação; afinal, nesse embate, acaba-se primando a forma ao conteúdo. É necessário desvencilhar-se da lógica punitiva, utilizando o Direito Penal em sua função genuína instrumental de proteção aos direitos e bens fundamentais, não como produtor de esperanças para a consolidação da pauta da segurança, mero efeito simbólico de tranquilizador da opinião pública. O Direito Penal não previne a violência, apenas proíbe condutas; não consegue compreender e ou combater as causas da violência.

Como refere Touraine (2007, p. 97), “o feminismo provocou debates e obteve vitórias; e até mesmo, sendo um movimento militante, transformou a vida a vida e o espírito da maioria das mulheres.” Por isso, os protestos e as manifestações populares por sua vez, assim como os conflitos, precisam ser ouvidos, não silenciados, como foram as mulheres ao longo dos anos; são atos legítimos e inerentes ao regime democrático. Eles têm o poder da transformação e isso, por si só, convida à reflexão. Sua criminalização contraria os princípios democráticos, pois esvazia a liberdade e o livre exercício de direitos já alcançados em verdadeira afronta ao exercício da cidadania. A voz da rua, os gritos das mulheres por direitos não pode ser silenciada pela lei. A criminalização dos movimentos sociais é, portanto, uma ameaça à democracia, pois o conflito é inerente a esta e faz-se necessário para o amadurecimento das relações políticas além das de dominação. A[o criminalizar os movimentos feministas e de mulheres, está-se mascarando uma tentativa de imposição de um pensamento único e criminalizando o direito fundamental à manifestação destas; então, nem o direito fundamental, nem a democracia, por consequência, sobrevivem.

Para que os direitos preconizados pela Constituição Federal e os princípios democráticos transformem-se em realidade social é necessário, pois, além do importante esforço realizado pelos movimentos sociais, um esforço de toda a sociedade e do Estado, que deveria investir em ações de natureza positiva, que abarquem os fatores causadores da desigualdade e do conflito e promovam direitos, e não negativa, que somente restringe direitos. É preciso diálogo e união em torno da efetivação, da libertação e não do esvaziamento dos direitos humanos. O recrudescimento do chamado movimento de lei e ordem lançado não pacifica, não dá voz àqueles que não tem voz e vez, mas, ao contrário, estimula a violência, além de proporcionar ainda mais dúvidas e inseguranças quanto ao futuro da democracia no país. Acena, pois a um retrocesso.

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1 Mestre em Gestão, Desenvolvimento e Cidadania pela UNIJUÍ. Doutora em Direito pela Universidade de Osnabrück (Alemanha). Pós-doutora pela Universidade de Santiago do Chile. Endereço: Rua Honduras, 565, Bairro Jardim Residencial Sabo, Santo Ângelo, RS; CEP 98804-180; http://orcid.org/0000-0003-1904-6095; angmaders@hotmail.com

2 Não há consenso quanto às diferenças entre ambos. “[…] Numa primeira aproximação, pode-se afirmar que o movimento de mulheres é mais amplo. Porquanto o movimento feminista faz parte dele. Mas, uma reflexão mais profunda sugere que são diferentes quanto ao modo de saber e à amplitude das reivindicações. O movimento de mulheres difere do movimento feminista nas reivindicações específicas do primeiro, que emanam do habitus, descrito por Bourdieu (1990) como saber localizado e resultante do entrelaçamento do ator com a sua prática social cotidiana. Já as reivindicações do movimento feminista, embora também orientadas pelo habitus, procedem de esquemas conceituais disciplinados e altamente ideológicos. Caracterizado por promover a denúncia da desigualdade de gênero, o movimento feminista levanta reivindicações universalizáveis, que são específicas das mulheres enquanto mulheres e não enquanto mulheres trabalhadoras, mulheres donas de casa, etc.” (MIRANDA, 2016, p. 21).

3 De acordo com Chauí (1980, p. 23), ideologia é “conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer.”

4 Nesse sentido, Santos (1995, p. 22) afirma que “o exercício de nossas perplexidades é fundamental para identificar os desafios a que merece a pena responder. Afinal todas as perplexidades e desafios resumem-se num só: em condições de aceleração da história como as que hoje vivemos é possível pôr a realidade no seu lugar sem correr o risco de criar conceitos e teorias fora do lugar?” (

5 O feminismo francês é considerado precursor do feminismo em tributo a Olympe de Gouges, fora guilhotinada por haver publicado a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã no ano de 1791 (MIRANDA, 2016).

6 No Brasil, o direito ao sufrágio feminino foi alcançado apenas no ano de 1934, quando foi constitucionalizado.

7 A história do feminismo no Brasil é dividida em “três ondas” por algumas autoras estudiosas do tema, que já apontam para uma quarta onda, marcada pelo ativismo online da atualidade. Elas representariam as principais reivindicações de movimentos feministas em cada momento histórico, mas não acontecem necessariamente de forma simultânea com outros lugares do mundo. A primeira onda teria foco na igualdade de direitos na vida pública, na reivindicação ao direito do voto. A segunda, está ligada às questões que debatem sexualidade e autonomia da mulher no contexto familiar. A terceira traz o conceito de interseccionalidade entre gênero, raça e classe.

8 No entanto, há quem refira que o movimento feminista, especialmente a campanha #elenão, ajudou a eleger Bolsonaro, ideias que são atribuídas a conservadores que repudiam as ideias feministas e a luta antipatriarcal, o que teria aumentado a repulsa a partidos e candidatos de esquerda (FERNANDES, 2019). A autora ressalta que, embora os movimentos sociais, referindo-se aos da esquerda moderada e da radical, tenham realizado “algum trabalho de base, tiveram dificuldades em expandir esse trabalho para além das demandas econômicas e imediatas.” (FERNANDES, 2019, p. 310).

9 Conceito cunhado por Kimberlé Crenshaw em 1989, que significa “um conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pea qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras.”

10 Grupo não centralizado formado por pessoas que se identificam por protestarem contra o sistema político e econômico vigente (anarquismo, anticapitalismo e antiglobalização) que surgiu na Alemanha nos anos 80 e nos Estados Unidos nos anos 90. Utilizam vestimenta preta, máscaras, capuzes e armas, bem como de mecanismos como a desobediência civil e ação direta (violência contra a ação policial e vandalismo contra o patrimônio de grandes organizações).

11 Sobre o assunto, Saffioti (1969 apud MOTTA, 2020) “[...] nos leva a crer que a análise das relações entre homens e mulheres é parte fundamental para a compreensão do autoritarismo no país. Daí a relevância do tratamento da questão de gênero para a compreensão da democracia, refletindo sobre suas possibilidades e limites.”

12 A história do feminismo no Brasil traz registros parciais e marcados pela condição da mulher como a da mulher universal, sem pormenorizar as formas de resistência das mais diferentes mulheres com relação às distintas opressões sofridas (PINTO, 2003).

13 Nesse sentido ver o teor da petição disponível em: http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR100306. Acesso em: 12 jan. 2018.

14 De acordo com Álvaro (2013, p. 48-49), há “uma unidade dialética entre as subestruturas básicas de poder da sociedade capitalista: classe, sexo, “raça”/etnia, na qual essas categorias estão organicamente integradas. Dessa forma, ‘o importante é analisar estas contradições na condição de fundidas ou enoveladas ou laçadas em um nó. […] No nó […] a dinâmica de cada uma condiciona-se a nova realidade, presidida por uma lógica contraditória’ (SAFFIOTI, 2004, p. 125).”

15 Não se está aqui vinculando os direitos sexuais à procriação, senão referindo-se à liberdade e capacidade para desfrutar da sexualidade inerente à condição humana.

16 Contudo, o aborto é permitido quando a gravidez oferece risco de vida a mulher; quando houver malformação fetal, como nos casos de fetos com anencefalia; ou quando a gravidez for decorrente de estupro.

17 Há uma articulação sistemática de setores que se intitulam “Pró-vida” e que tem se organizado no sentido de ações para criminalizar as mulheres e buscar, por exemplo, o fechamento de clínicas que praticam aborto. Nesse sentido ver: http://www.sof.org.br/2011/11/09/aborto-e-a-criminalizacao-das-mulheres/. Acesso em: 12 jan. 2018.

18 Definir violência é deveras complexo pela própria polifonia do termo, que é originário do latim violentia, vis, significa emprego da força. Ela é inerente à condição humana e já foi utilizada, paradoxalmente, como instrumento de conquista da paz (SILVA, 2001). De seu conceito pode-se extrair que existe a violência física e a violência simbólica. A primeira é facilmente perceptível, já que deixa marcas, na maioria dos casos, mas a última está oculta nas relações sociais e tende a ser empregada para manter a estrutura social hierarquizante, reproduzindo as desigualdades e gerando mais violência. A violência simbólica, de acordo com Bourdieu (2007, p. 47), “[…] se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da dominação, fazem esta relação ser vista como natural; ou em outros termos, quando os esquemas que ele põe em ação para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes (elevado/baixo, masculino/feminino, branco/negro etc.), resultam da incorporação de classificações, assim naturalizadas, de que seu ser social é produto.”

19 Por misoginia compreende-se o ódio, desprezo ou repulsa ao gênero feminino e às características a ele associadas, sendo um aspecto central do preconceito sexista e ideológico, e, como tal, base importante para a opressão de mulheres em sociedades dominadas pelo machismo.

20 A Marcha das Vadias é outro movimento social que luta em prol da autonomia das mulheres e pela descriminalização do aborto e contra a violência. É caracterizado pelo enfrentamento mais direto e agressivo, com a exposição do corpo, por exemplo, como protesto pela liberdade.

21 De acordo com Lerner (2019, p. 298), “Há milênios, as mulheres participam do processo da própria subordinação por serem psicologicamente moldadas de modo a internalizar a ideia da própria inferioridade. A falta de consciência da própria história de luta e conquista é uma das principais formas de manter as mulheres subordinadas.”