http://dx.doi.org/10.18593/ejjl.v19i2.18890

Editorial

Cleptocracias multipartidárias1

Multi-party kleptocracies

Branko Milanovic2

O termo democracia não liberal foi introduzido, penso eu, por Fareed Zakaria. Foi usado como distintivo de honra por Viktor Orban, o Primeiro-ministro húngaro e ex-garoto-propaganda de jovens reformadores da Europa Oriental e liberais da década de 1990, que decidiu, depois, seguir a nova tendência. Mais recentemente, o termo ganhou mais popularidade como forma de nomear e explicar regimes como o de Erdoğan, na Turquia, ou o de Putin, na Rússia. Talvez a Venezuela também possa ser colocada na mesma categoria.

O emprego do termo democracia não liberal sugere que o sistema é democrático porque existem eleições mais ou menos livres, existe também uma certa diversidade de opinião na imprensa, há liberdade de reunião, etc. Contudo, os valores defendidos pelo regime não são liberais. Erdoğan, por exemplo, acredita na primazia do Islã sobre os direitos humanos definidos pelo Iluminismo, Orban acredita na “civilização cristã”, Putin, na “espiritualidade russa”, Maduro, na “Revolução Bolivariana”. Não liberal também indica que em tais regimes o sistema decisório é majoritário e que certos direitos fundamentais “inalienáveis” podem ser revogados por meio de simples votação de maioria. No limite, a maioria pode decidir negar certos direitos (digamos, a liberdade de expressão) a uma minoria.

Essa definição, a meu ver, exagera a importância dos valores para esses regimes. A essência ou um dos objetivos mais importantes dessa nova geração de regimes quase democráticos é o multipartidarismo com apenas um partido que pode vencer. A Rússia é que foi mais longe no caminho dessa “engenharia partidária e eleitoral”, na qual aparentemente há uma democracia, vários partidos, etc., mas a regra do jogo é que apenas um partido pode vencer; e os outros, em razão de sua “flexibilidade” e proximidade do “partido do poder”, podem partilhar os ganhos da vitória.

É, precisamente, a “partilha dos espólios” a característica mais importante desses regimes. Eles não compartilham, como supõem alguns analistas, valores contrários aos valores liberais ocidentais. Pelo contrário, creio eu. Os valores diferentes são apenas inventados para dar aos eleitores a sensação de que estão, de fato, votando em algum programa “nacional”, “caseiro”, “não cosmopolita”, enquanto que o objetivo real do “partido do poder” é controlar o estado a fim de roubar, seja diretamente (de obras públicas ou de empresas estatais), seja indiretamente (por meio de corrupção no setor privado e vendendo leis e regulamentos).

Assim, o “partido do poder” corresponde, simplesmente, à institucionalização do roubo que, para sobreviver e prosperar, precisa fingir defender certos “valores” e, mais importante: continuar a fornecer vantagens econômicas a seus apoiadores. O sistema é, portanto, totalmente clientelista. Funciona de forma muito parecida com o Zaire de Mobutu (como descrito de forma elegante por Michala Wrong, no livro Nas pegadas do Sr. Kurtz). Os que estão na cúpula (Erdoğan e seu filho, Putin, Rothenberg e outros oligarcas, etc.), como Mobutu, tomam a fatia maior do bolo, entretanto são – mais do que qualquer outra coisa – mediadores no processo de divisão do dinheiro entre muitas facções. Quando você lê o livro de Wrong sobre o Zaire, percebe que Mobutu estava no ápice da pirâmide, mas que ele não era um ditador descarado. Para permanecer no poder ele teve de sustentar o apoio de vários grupos que estavam disputando o dinheiro. É precisamente assim que Putin mantém seu poder: não como um ditador estalinista, mas como um árbitro indispensável, alguém que, caso saia do jogo, desequilibra totalmente o sistema até que, possivelmente, uma guerra civil possa encontrar um novo árbitro amplamente aceito.

Foi quando passei o verão (2017) na Sérvia e Montenegro que me dei conta de que o crucial para a democracia não liberal é essa natureza particular do poder combinado com o clientelismo; e não a oposição a valores liberais. Montenegro foi governado por um homem, Djukanoviċ, por trinta anos. Ele, entretanto, mudou – como Putin – várias vezes de cargos a partir dos quais exercia o poder: Presidente do seu partido, depois Primeiro-ministro e, mais tarde, Presidente do País. Além disso, o Governo de Djukanoviċ é amplamente ajustado a valores liberais ocidentais em temas como direitos dos homossexuais, meio ambiente, pouca regulação da economia e coisas semelhantes. Ele foi mais longe: trouxe Montenegro para o limiar da União Europeia e incluiu-o na OTAN. Mas a estrutura de seu Governo é equivalente à de Putin: controla o governo para roubar e para distribuir os ganhos a seus apoiadores (e, é claro, para si e para sua panelinha).

Para que tal sistema sobreviva, ele precisa vencer continuamente as eleições. Idealmente, precisa vencer sempre. Ben Ali e Mubarak, que dirigiam sistemas semelhantes na Tunísia e no Egito, falharam. Mas Djukanoviċ, Lukashenko, Erdoğan, Putin e Orban, por enquanto, não falharam. Mais uma vez a Rússia está na vanguarda. Para vencer as eleições, todos os meios são usados: servidores públicos recebem forte “recomendação” para votar no candidato “certo” ou no partido “certo”, pessoas recebem telefones celulares para registrar seu voto e, se votarem “certo”, podem ficar com os aparelhos (Montenegro usou essa técnica por mais de uma década), votos são comprados diretamente ou cédulas falsas são jogadas às urnas só para semear confusão. O roubo explícito de votos, pela fabricação de resultados, permanece como último recurso. Na Rússia essa última solução é difícil (ou impossível) nas grandes cidades, mas bastante viável em pequenas cidades ou áreas distantes, onde a porcentagem de votos para o candidato “certo” chega a 90% ou mais.

A meu ver é errado considerar tais governos como espécies diferentes de regime liberal ocidental. Eles apenas exageram algumas características que existem nas democracias “avançadas”: a venda de regulação e de leis, por exemplo, é feita em todos, mas é feita de forma mais aberta e descarada nesses “novos” regimes; a criação de um segundo, e real, partido na Rússia é tão difícil quanto a criação de um terceiro nos Estados Unidos; a supressão dos eleitores seria só um passo a mais. Eles normalmente amplificam, e às vezes de maneira grotesca, os aspectos negativos das democracias e suprimem, quase totalmente, os aspectos positivos.

A principal característica desses novos regimes é que são cleptocracias eleitorais multipartidárias, nas quais apenas uma parte pode vencer.

Joaçaba, v. 19, n. 2, p. 329-332, maio/ago. 2018


1 Tradução de Carlos Luiz Strapazzon, Editor-Chefe da EJJL. Esta tradução foi autorizada para ser publicada na EJJL v. 19, n. 2, 2018. O título, da versão original em inglês é: Multi-party kleptocracies rather than illiberal democracies e foi publicado em 22 de julho de 2017 em: <http://glineq.blogspot.com/2017/07/multi-party-kleptocracies-rather-than.html>. A autorização foi concedida em 27 de julho de 2018.

2 Professor no Stone Center on Socio-Economic Inequality, na City University of New York (CUNY), Estados Unidos; Bolsista sênior do Luxembourg Income Study (LIS). Foi economista-chefe no departamento de pesquisa do Banco Mundial. Autor de The Haves and the Have-Nots: a brief and idiosyncratic history of global inequality e de muitos artigos sobre distribuição global da riqueza. Seu mais recente livro é Global inequality: a new approach for the age of globalization (Harvard University Press, 2016).