http://dx.doi.org/10.18593/ejjl.v19i2.18875

Editorial

O “Protocolo do Diálogo” entra em vigor

Naiara Posenato1

No dia 1º de agosto de 2018 entrou em vigor o Protocolo n. 16 à Convenção Europeia dos Direitos Humanos (Convenção EDH), graças ao depósito do décimo instrumento de ratificação pela França, em abril. Em conformidade com o art. 8 do Protocolo opcional, o mesmo encontra-se vigente com relação aos Estados da Albânia, Armênia, Eslovênia, Estônia, Finlândia, França, Geórgia, Lituânia, San Marino e Ucrânia.2

O novo instrumento, que inova profundamente em relação ao mecanismo consultivo já previsto pelos arts. 47 a 49 do Título II da Convenção EDH, permite que órgãos jurisdicionais de cúpula solicitem pareceres à Corte Europeia dos Direitos Humanos sobre questões de princípio relacionadas à interpretação e à aplicação dos direitos e liberdades previstos no texto convencional e nos protocolos adicionais. A competência atribuída à Grande Câmara, com base no Protocolo, é de natureza híbrida: consultiva, porque o ato com o qual o procedimento é concluído não tem caráter vinculante; e prejudicial, porque necessariamente relacionado a um procedimento judiciário pendente no tribunal superior nacional que formulou a demanda. A Corte Europeia tem margem de discricionariedade para aceitar ou não o pedido, o que, além de perseguir um objetivo deflacionário, permite a seleção substancial das demandas a fim de privilegiar somente aquelas que levantem questão de princípio ou de interesse geral relativa à interpretação ou à aplicação da Convenção, como, por exemplo, as que refletem problemas estruturais ou sistêmicos dos Estados que podem se repetir e/ou que afetem potencialmente diversas partes contratantes.

Trata-se de uma das reformas introduzidas no âmbito do amplo movimento iniciado em 2000 e direcionado a melhorar a efetividade do mecanismo de controle convencional, sobretudo diante do excessivo número de recursos.3 Também chamado de “Protocolo do diálogo”, espera-se que este possa promover a interação entre a Corte e autoridades nacionais e, assim, estabelecer standards jurisprudenciais mais claros, favorecer a interpretação harmônica da Convenção EDH e, dessa forma, reforçar a observância e a proteção dos direitos humanos em geral.4

O caráter não vinculante da pronúncia não deve gerar dúvidas quanto ao efetivo potencial desse mecanismo: em primeiro lugar porque é ilógico pensar que um órgão jurisdicional nacional que apresenta um pedido de parecer à Corte Europeia não o levará em consideração na formulação da sua própria resposta judicial. Em segundo lugar, porque tais pareceres passam a compor a jurisprudência da Corte de Estrasburgo e, nessa condição, contribuirão para definir os contornos das normas convencionais para muito além do caso a quo.5

Mais concreto é o risco de mal-entendidos entre as cortes nacionais e a supranacional. No entanto, nesse caso trata-se de um elemento fisiológico do próprio sistema de diálogo. O que pode contribuir para reduzir esse risco é a modificação do estilo das respostas da Corte EDH que, como é sabido, é fortemente casuístico no que concerne às sentenças contenciosas. Já na elaboração de um parecer ex Protocolo n. 16, a Corte não terá a tarefa de aplicar as normas ao caso concreto (o que caberá ao órgão judiciário nacional), e, portanto, o cenário provável é que a valoração dos princípios e das normas convencionais seja feita de forma menos relacionada a fatos. Isso pode favorecer a clareza expositiva, sobretudo a favor dos operadores jurídicos dos ordenamentos de civil law, em que o estilo judicial costuma fazer referência a regolae juris abstratas, deduzíveis da legislação ou, ao máximo, da jurisprudência constante (dificilmente do precedente judicial), e muitas vezes consideradas em termos avulsos do caso concreto.6

Segundo o art. 1, parágrafo 1, do Protocolo n. 16, a legitimação para requerer pareceres consultivos à Corte é reservada às mais altas Cortes nacionais indicadas no momento da assinatura ou da própria ratificação da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. Essa solução é flexível o bastante para abarcar a diversidade de estruturas judiciárias nacionais interessadas e também evita que o recurso em massa ao processo consultivo pelas cortes inferiores possa agravar o problema (já muito sério) do excessivo docket da Corte europeia. Ao mesmo tempo, certa doutrina havia, a seu tempo, manifestado o temor de que essa autonomia pudesse levar alguns Estados a “não incluir” as cortes constitucionais ou órgãos judiciais especialmente ativos, comprometendo a efetividade do diálogo.7 Porém, até o presente momento, e à luz das indicações já feitas, somente a Ucrânia deixou de autorizar a própria Corte constitucional a utilizar o mecanismo, enquanto a Romênia, ao contrário e com base em uma interpretação extensiva da disposição, também legitimou todos os tribunais de apelação do seu sistema jurídico.8

Um aspecto interessante do funcionamento do Protocolo n. 16 é sua abertura à participação de terceiros, nos termos do art. 3: esse direito cabe ao Comissário para Direitos Humanos do Conselho da Europa e ao Estado cujos tribunais domésticos foram ativados. O dispositivo também prevê a possibilidade, segundo a discricionariedade do Presidente da Corte e no interesse da justiça, de admitir outras manifestações escritas. Outros documentos oficiais também indicam a oportunidade de admitir a manifestação das partes do processo nacional, inclusive em observância do princípio da igualdade.9 A possibilidade de ampliar o foro de discussão de questões essenciais relacionadas à interpretação da Convenção EDH é coerente com a ideia da função pública de definição do sentido do direito, e com a natureza democrática desse processo; em segundo lugar – e não menos importante, tratando-se de um tribunal internacional – acentua a transparência e o caráter pluralista da decisão judicial, e, assim, ocorre maior legitimação à atuação e ao papel da Corte de Justiça.

A participação da sociedade civil, de instituições e pessoas físicas (amici curiae) nos processos, em termos muito amplos, é uma peculiaridade que desde sempre caracteriza o sistema interamericano de promoção e proteção dos direitos humanos em relação a outros tribunais internacionais,10 tanto que este já foi classificado como “amicusfriendly”.11 Especialmente visível no âmbito da sua competência consultiva, essa característica emergiu com força nos últimos pareceres elaborados pela Corte Interamericana, em especial nas OC-25/18,12 OC-24/17,13 e OC-23/17.14

No sistema interamericano não há como estabelecer a incidência concreta que possa ter havido a participação de terceiros e a sua contribuição para o desenho final de cada opinión consultiva, até porque normalmente se encontra nelas somente uma referência genérica ao fato de que os escritos apresentados foram considerados e analisados, e que auxiliaram a ilustrar os distintos temas submetidos à consulta.15 Ao mesmo tempo, é inegável que a abertura, em si, repercute em termos concretos no processo porque modifica o comportamento dos julgadores, que são chamados a responder às maiores expectativas geradas pela ampliação do debate. O envolvimento crescente do meio acadêmico de forma autônoma, mediante a apresentação de academics amicus briefs, também é produtivo porque acrescenta especialização e neutralidade ao diálogo.

Sabe-se que o sistema interamericano de promoção e proteção dos direitos humanos, em geral no que concerne à função consultiva, apresenta várias e profundas diferenças em relação ao homólogo europeu: por exemplo, segundo o art. 64 do Pacto de San José, o mesmo pode ser acionado por qualquer Estado-membro da Organização dos Estados Americanos (além de alguns outros órgãos políticos regionais), em relação à interpretação não somente da Convenção Americana dos Direitos Humanos, mas de qualquer outro instrumento internacional, multilateral ou bilateral, vigente nos Estados americanos, e que possa incidir sobre a proteção dos direitos humanos.16 A diversa ratione materiae também faz com que a opinión consultiva não necessariamente deva ser fornecida em relação a um procedimento judiciário pendente.

Não obstante essa diversidade, natural para contextos tão diferentes, pode-se dizer que o mecanismo da Opinião Consultiva trouxe inegáveis progressos para a proteção dos direitos humanos na América Latina. Agora essa é uma feliz perspectiva também para o continente europeu.

Joaçaba, v. 19, n. 2, p. 325-328, maio/ago. 2018


1 Doutora em Direito Internacional e da União Europeia pela Università Di Roma La Sapienza; Mestre em Direito, Economia e Finanza do Comércio Internacional pela Università degli Studi di Padova; Professora no Curso de Sistemas Juridicos Comparados e Direito e Economia da Globalização na Facoltà di Scienze Politiche, Economiche e Sociali da Università degli Studi di Milano; naiara.posenato@unimi.it

2 Assinaram o Protocolo, mas ainda não o ratificaram outros nove países: Andorra, Bósnia e Herzegovina, Grécia, Itália, Holanda, Moldova, Noruega, República Eslovaca e Turquia.

3 A propósito veja-se, nesta Revista, v. 15, n. 1, 2014, Posenato, Naiara. Diálogo Judicial e Direitos Humanos: o novo Procotolo 16 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, p. 259 e ss., bem como Posenato, Naiara. Il Protocollo n. 16 alla CEDU e il rafforzamento della giurisprudenza sui diritti umani in Europa. Diritto Pubblico Comparato ed Europeo, v. 3, 2014, p. 1421 e ss.

4 O Tribunal de Justiça da União Europeia, no âmbito do Parecer n. 2/13 de 18 de dezembro de 2014 sobre a Adesão da União Europeia à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e a compatibilidade do referido projeto com os Tratados UE e FUE, manifestou-se criticamente em relação ao funcionamento do Protocolo n. 16, afirmando que este poderia “afetar a autonomia e a eficácia do processo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267° TFUE.” Cfr. TJUE. Parecer n. 2/13, § 197. Essa posição foi, em geral, duramente questionada pela doutrina no velho continente.

5 O valor formal da jurisprudência da Corte europeia de direitos humanos varia em conformidade com o que lhe é reconhecido em cada ordenamento jurídico nacional. Na Itália, com as sentenças “gêmeas” da Corte constitucional n. 348 e n. 349, de 24 de outubro de 2007, a Consulta estabeleceu que, em virtude do art. 117, 1, da Constituição italiana, as normas da CEDH possuem o valor de normas interpostas, encontrando-se acima da lei ordinária e abaixo da Constituição. Assim, em caso de contraste entre uma norma italiana e a CEDH, esta última tornar-se-á, em conformidade com o art. 117, parâmetro substancial de validade constitucional da primeira.

6 Sobre o “estilo” das sentenças das cortes superiores e cortes regionais de proteção e sobre a sua importância para a legitimação desses órgãos e para a efetividade da tutela, vide Posenato, Naiara. Lo stile delle sentenze. Profili di attualità di diritto comparato. Padova: Cleup, 2017, especialmente p. 121 e ss.

7 Cfr. Dzehtsiarou, Kanstantsin e O’Meara, Noreen. Advisory jurisdiction and the European Court of Human Rights: a magic bullet for dialogue and docket-control? Legal Studies, 2014, p. 19. Em sentido análogo, Pollicino, Oreste. La Corte costituzionale è una “alta giurisdizione nazionale” ai fini della richiesta di parere alla Corte EDU ex Protocollo 16? Forum di Quaderni Costituzionali, Paper, 02 abr. 2014, p.to 2, que afirma que esse risco se encontra presente sobretudo para os juízes constitucionais dos Estados que ainda não ultimaram a própria consolidação democrática.

8 Em conformidade com o Relatório explicativo ao Protocolo, de fato, a expressão empregada pelo art. 1, par. 1 do Protocolo tem justamente como objetivo possibilitar a inclusão de tribunais que, ainda que não sejam cortes superiores, tenham especial relevância para a definição de determinadas matérias. Cfr. Council of Europe. Protocol No. 16 to the Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms, Explanatory Report, § 8.

9 Cfr. Council of Europe. Protocol No. 16, cit., § 20; European Court of Human Rights. Opinion of the Court on Draft Protocol No. 16 to the Convention extending its competence to give advisory opinions on the interpretation of the Convention, de 6-5-2013, § 10.

10 Em conformidade com o disposto no art. 73,3 do quarto Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como reformado em seu LXXXII Período Ordinário de Sessões, celebrado de 19 a 31 de janeiro de 2009.

11 A expressão é de Kent, Avidan e Trinidad, Jamie. International law scholars as amici curiae: an emerging dialogue (of the deaf)? Leiden Journal of International Law, v. 24, i. 4, 2016, p. 1099.

12 Corte Interamericana de Derechos Humanos. Opinión Consultiva OC-25/18 de 30 de mayo de de 2018 solicitada por la República del Ecuador. La Institución del asilo y su reconocimiento como derecho humano en el sistema interamericano de protección y alcance de los artículos 5, 22.7 y 22.8, en relación con el artículo 1.1 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos.”

13 Corte Interamericana de Derechos Humanos. Opinión Consultiva OC-24/17 de 24 de noviembre de 2017 solicitada por la República de Costa Rica. Identidad de género, e igualdad y no discriminación a parejas del mismo sexo. Obligaciones estatales en relación con el cambio de nombre, la identidad de género, y los derechos derivados de un vínculo entre parejas del mismo sexo (interpretación y alcance de los artículos 1.1, 3, 7, 11.2, 13, 17, 18 y 24, en relación con el artículo 1 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos.”

14 Corte Interamericana de Derechos Humanos. Opinión Consultiva OC-23/17 de 15 de noviembre de 2017 solicitada por la República de Colombia. Medio ambiente y derechos humanos (Obligaciones estatales en relación con el medio ambiente en el marco de la protección de los derechos a la vida y a la integridad personal – interpretación y alcance de los artículos 4.1 y 5.1, en relación con los artículos 1.1 y 2 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos).”

15 Para la resolución de esta solicitud de opinión consultiva, la Corte examinó, tomó en cuenta y analizó los 55 escritos de observaciones, así como las 26 participaciones en audiencia e intervenciones por parte de Estados, órganos de la OEA, organizaciones internacionales, organismos estatales, organizaciones no gubernamentales, instituciones académicas y personas de la sociedad civil (supra párrs. 6 y 9). La Corte agradece estas valiosas contribuciones, las cuales asistieron en ilustrar al Tribunal sobre los distintos temas sometidos a consulta, a efecto de la emisión de la presente opinión consultiva.” Cfr. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Opinión Consultiva OC-25/18 de 30 de mayo de de 2018 solicitada por la República del Ecuador, cit., § 11.

16 Cfr. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Opinión Consultiva OC-1/82, de 24 de septiembre de 1982, “Otros tratados” objeto de la función consultiva de la Corte (art. 64 Convención Americana sobre Derechos Humanos), § 31; e Corte Interamericana de Derechos Humanos, Opinión consultiva OC-3/83, de 8 de septiembre de 1983, Restricciones a la pena de muerte (arts. 4.2 y 4.4 Convención Americana sobre Derechos Humanos), § 36-37.