https://doi.org/10.18593/ejjl.16391

Editorial

REFORMAS E O MOMENTO DE TRANSIÇÃO NO BRASIL1

Há uma singular relação entre a durabilidade das sociedades, o sucesso dos governos e o desenho das instituições públicas. Sociedades de todos os tipos se empenham para conhecer suas necessidades e limitações. Também desenham instituições para estabilizar os meios de realizar seus fins mais importantes. De tempos em tempos, porém, toda a sociedade tem a sensação de finitude e de esgotamento de seu modelo e de seus meios. Esses são “momentos constitucionais” decisivos. Nas repúblicas democráticas esses momentos são particularmente conflitivos e aflitivos.

O Brasil passa por um “momento constitucional” desse tipo. Há uma difusa sensação de esgotamento de caminhos. Por um lado, assistimos ao esgotamento das elites políticas que dirigiram a transição democrática dos anos 1980 para os anos 1990, do século XX. Todos os partidos políticos mais influentes durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, e que tinham um modelo de desenvolvimento democrático para o Brasil, foram testados. Políticas públicas de centro-direita e de centro-esquerda foram implementadas e deixaram marcas de erros e de acertos muito evidentes. Também o novo Poder Judiciário foi testado. A esperada redução de sua lentidão administrativa e os desejados aumentos de transparência, de autocontrole institucional e, particularmente, de intervenção na arena política, de fato, ocorreram. Novos problemas foram conhecidos, como o nepotismo cruzado. Algo semelhante ocorreu com os Tribunais de Contas e com o Ministério Público. Tornaram-se todos mais efetivos, menos servis e mais conhecidos da sociedade brasileira. Ameaças de retrocesso para ditaduras foram afastadas e as liberdades políticas restauradas, o acesso à Justiça foi ampliado e também a liberdade de imprensa. O novo sistema público de saúde ajudou muito a amenizar problemas simples, mas graves, como a mortalidade infantil, a vacinação e a prevenção de doenças. Mas ainda temos 27 milhões de brasileiros fora da proteção previdenciária. O próprio sistema federativo foi testado e revelou resultados bastante insatisfatórios diante da guerra fiscal e do desperdício na gestão de competências comuns estabelecidas pela Constituição.

Apesar de tudo, nesses temas o Brasil melhorou. Houve importante redução de desigualdades. A pobreza e a marginalização quase foram erradicadas. Mas ainda temos 50 milhões de brasileiros sem oportunidades reais de empreender, inovar e criar. São pobres em sentido multidimensional. Estão dependentes de bolsas assistenciais, desconfiam da democracia. A violência social aumentou e os mais vulneráveis são os mais atingidos. Mas avanços muito notáveis foram alcançados na redução de preconceitos raciais e de gênero, apesar do pouco avanço em relação à proteção de povos tradicionais e do ódio nas redes sociais.

A dependência externa e as interferências do FMI foram eliminadas, a inflação foi controlada e as crises bancárias desapareceram, muito embora ainda há o indescritível custo que o Brasil se autoimpõe com nossa política de juros básicos da taxa Selic. Por que tem de ser a mais elevada do mundo? Estamos em guerra? As respostas para isso ainda precisam de mais estudos sociais e jurídicos.

O crescimento do PIB é um fato, a despeito da recessão recente 2015-2016. Os prognósticos para os próximos cinco anos são animadores e o contexto internacional é favorável. Até muito pouco tempo o desemprego havia diminuído e a formalização do trabalho crescia. Hoje isso é dúvida. Há uma reforma da legislação trabalhista que coincide com um momento histórico de disrupção tecnológica e com a busca por elevação da produtividade econômica. É preciso conciliar essas agendas.

Olhando assim parece que os fundamentos e os objetivos da República Federativa do Brasil foram realizados com importante proveito. O Brasil de hoje é mais soberano, plural e muito mais influenciado pelas preferências dos cidadãos do que era em 1988. Mas há algo mais profundo que precisa ser notado. E o momento presente não favorece, imerso que está na superação da crise de legitimidade política do Governo federal. Essa crise de legitimidade, no entanto, será superada. Seu tempo é de dois anos, no máximo. E daí aparecerá o que é, de fato, importante: que o Brasil ainda não é uma sociedade justa e solidária e que não tem um modelo para seu desenvolvimento nos próximos 30 anos. No entanto, esta é a chave para o século XXI.

Por um lado, a necessidade de tornar o Brasil uma sociedade mais justa e solidária não é mais uma questão de natureza exclusivamente moral. É uma questão de resiliência social, isto é, de ter os meios para lidar coletivamente com as circunstâncias de crise perene de um ambiente econômico, social e ambiental muito mais ameaçador do que qualquer experiência anterior. Ter uma sociedade justa e solidária, como determina a Constituição, tornou-se agora uma questão de segurança social e, assim, de proteção coletiva. Entretanto, superar a injusta distribuição de renda para construir uma sociedade resiliente exigirá reformar o sistema tributário para distribuir mais equitativamente os custos dessa transição. Também será preciso ser implacável com desperdícios e desvios de recursos públicos, eliminar subsídios injustificáveis e todas as formas de discriminação (notadamente as de gênero e de oportunidades sociais), empoderar as pessoas com educação superior, investir mais nas crianças do que em idosos, reinventar a tecnologia de financiamento da criatividade e de geração de renda, de proteção da saúde e de proteção dos mais vulneráveis. As instituições sociais imaginadas para o Brasil da elite política que saiu da Assembleia Nacional Constituinte incluem a família como unidade afetiva, a escola pública, o transporte público, o crédito para a moradia, o Sistema Único de Saúde, o Sistema Único de Assistência Social, o Cadastro Único e o Bolsa Família, a Previdência Social e os sindicatos de trabalhadores. Agora todas precisarão ser atualizadas. Já não servem para a classe média e para novos ricos do Brasil, nem respondem adequadamente aos novos desafios da mudança estrutural do capitalismo digital. Faltam arranjos adequados de defesa social e de oportunidades sociais para uma era que deve gerar mais desemprego do que emprego, mais distância entre os conectados e os desconectados. Falhar nisso pode ser irreversível, e a violência difusa será somente o primeiro sintoma. Não o pior.

Por outro lado, a necessidade de garantir o desenvolvimento do Brasil, ou como diz a Constituição, o desenvolvimento nacional, já não tem mais nenhum apelo de natureza exclusivamente produtiva. O desenvolvimento nos próximos 30 anos estará profundamente, e ineditamente, conectado à inteligência artificial (IA), à produção de bens liderada pela indústria 4.0 (IoT) e à tecnologia que imita e controla a vida. Isso quer dizer que o modelo de desenvolvimento industrial ou agroindustrial concebido dos anos 1940 a 1960 do século passado, e para o qual instituições como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Banco do Brasil foram concebidos como peças fundamentais, será radicalmente abalado. Esse modelo gerou uma indústria petroquímica avançada, uma indústria aeronáutica importante, uma renovada agroindústria e um sistema bancário competitivo. Mas o baixo investimento na pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias não foi suficiente para gerar expansão proporcional do setor de serviços, nem para fazer florescer algum dos três setores mencionados. O Brasil favoreceu e tem protegido mais intensamente a indústria de bens de consumo e produtos da cadeia de alimentos básicos (particularmente a carne vermelha) e de vegetais pouco viáveis para o consumo humano (soja). A necessidade de garantir a resiliência econômica para o Brasil exigirá uma mudança radical aqui: instituições de ciência e tecnologia devem proliferar para apoiar as decisões de investimento econômico.

Por fim, a garantia do desenvolvimento nacional exigirá a reinvenção da governança das cidades, notadamente das metrópoles, e do meio ambiente, em especial de recursos escassos, como a água, e o reaproveitamento dos resíduos. O nível político local, portanto, será muitas vezes mais importante do que é hoje. Em relação à resiliência urbana e ambiental, o direito constitucional de 1988 teve poucas ideias estimulantes. Nisso estamos, de fato, muito atrasados, e precisaremos imaginar smart cities.

Esse contexto mais profundo coloca em primeiro lugar uma instituição pouco prestigiada no Brasil: a ciência. Nunca houve um momento mais importante para uma nova e audaciosa política científica do que o atual. A revolução do desenvolvimento, que exigirá muito dos governos e de novas instituições está ligada, como nunca, ao êxito do novo conhecimento científico e do domínio de tecnologias que ele possa propiciar para o âmbito econômico, social e ambiental.

O “momento constitucional” tem duas crises: uma superficial e outra profunda que vai aparecendo progressivamente. As duas exigem ação. A primeira exige ação dentro das regras e instituições vigentes. Mas é apenas uma casca. A segunda traz uma semente nova: a demanda por conhecimento científico de ponta em todos os setores da vida. Esta reclama um novo pacto de civilidade, um novo arranjo de prioridades que, definitivamente, passou desapercebido pela Assembleia Nacional Constituinte. É o grande desafio constitucional do nosso tempo.

Carlos Luiz Strapazzon

Editor-Chefe/EJJL

Dez. 2017

Joaçaba, v. 18, n. 3, p. 597-600, set./dez. 2017


1 Esta é uma versão atualizada de opinião publicada com o título: O momento constitucional do Brasil, nos Cadernos Jurídicos da OAB PR, v. 69, p. 59, 2017.