https://doi.org/10.18593/ejjl.11903

Trabalho, identidade e reconhecimento a “captura” da subjetividade do trabalhador no capitalismo contemporâneo: uma estratégia frustada?

Work, identity and recognition the “capture” of the subjectivity of worker in the contemporary capitalism: a frustrated strategy?

Aldacy Rachid Coutinho1

Samia Moda Cirino2

Resumo: O presente artigo analisa os impactos sobre a saúde mental dos trabalhadores decorrentes das estratégias de captura da subjetividade implementadas na organização do trabalho após a reestruturação produtiva do capitalismo. A partir de estudos da psicodinâmica do trabalho, demonstra-se a importância da atividade laboral para a construção e estabilização da identidade do sujeito, bem como a impossibilidade de reconhecimento da contribuição da atividade laboral no atual modelo de exploração do trabalho. Com fulcro em pesquisas empíricas realizadas em montadoras de veículos, buscou-se entender a consciência dos empregados desse segmento em relação à sua atividade laboral sob a égide desse novo modelo organizacional. Além disso, buscou-se identificar eventuais estratégias desenvolvidas individual e coletivamente pelos trabalhadores como forma de resistência à tentativa de captura da subjetividade e de continuidade da luta por reconhecimento e autorrealização pelo trabalho.

Palavras-chave: Capitalismo. Trabalho. Reestruturação produtiva. Identidade. Reconhecimento. Sofrimento.

Abstract: The article analyzes the impact on the mental health of workers resulting from the strategies of capture of subjectivity implemented in work organization after the productive reorganization of capitalism. Based on the studies of psychodynamic of work, it demonstrates the importance of labor for the construction and stabilization of the worker´s identity, and the inability to recognize the contribution of labor activity in the current model of labor exploitation. Based on empirical researches in automakers, it aims at understanding the awareness of the employees of this segment in relation to their work activities under this new organizational model. Furthermore, it was intended to identify individual or collective strategies developed by workers as a form of resistance to the strategies of capture of subjectivity and to continue the struggle for recognition and self-realization through work.

Keywords: Capitalism. Labour. Productive reorganization. Identity. Recognition. Suffering.

Data da submissão: 25 de agosto de 2016

Avaliado em: 26 de setembro de 2016 (AVALIADOR A)

Avaliado em: 3 de abril de 2017 (AVALIADOR B)

Avaliado em: 6 de agosto de 2018 (AVALIADOR C)

Avaliado em: 2 de julho de 2018 (AVALIADOR D)

Aceito em: 16 de fevereiro de 2019

Introdução

O medo, seja proveniente de ritmos de trabalho ou de riscos originários das más condições de trabalho, destrói a saúde mental dos trabalhadores de modo progressivo e inelutável, como o carvão que asfixia os pulmões do mineiro com silicose. (Christophe Dejours. A Loucura do Trabalho).

Após a crise do capitalismo sob o modelo fordista, o sistema passou por consideráveis transformações que ganharam contornos específicos em virtude de propostas neoliberais, ao eliminarem progressivamente as contrapartidas sociais do modelo de Estado de Bem-Estar Social (países de capitalismo central) e requererem uma nova configuração do Estado-Nação, diante dos novos atores econômicos transnacionais, bem como em face dos avanços tecnológicos, que propiciaram a reestruturação da produção. Nesse novo modelo as relações de trabalho foram precarizadas e flexibilizadas, além do que a tentativa de conformar a classe trabalhadora aos ideais do capitalismo foi levada até as últimas conseqüências por meio de sofisticadas técnicas de mobilização mental dos trabalhadores, que acabaram por retirar das pessoas o valor de sua principal manifestação como ser humano, o valor do trabalho.

Em sentido contrário a esse fenômeno de precarização do trabalho, uma análise atenta da realidade vivenciada nas relações laborais demonstra que o trabalho nunca foi tão essencial para o capitalismo como na contemporaneidade. No atual paradigma da produção flexível, vivencia-se o auge da intensificação da exploração do trabalho, da extração da mais-valia e da conformação da classe trabalhadora ao modo de existência capitalista. O trabalhador, reduzido a mera mercadoria no processo produtivo, parece não bastar mais; esse novo espírito do capitalismo busca cooptar o trabalhador, o seu corpo e sua alma, para se identificar com o lado do capital e, assim, transformá-lo em capital humano, ao convertê-lo ao fetichismo da sociedade do consumo. O objetivo dessa estratégia é de erradicar o sistema de valores e saberes do trabalho vivo, desestruturar os coletivos de trabalho, e enfraquecer o desenvolvimento da consciência de classe e da luta de classes.

Essas estratégias do capitalismo para desqualificação da importância do trabalho acarretam conseqüências nefastas à saúde física e mental dos trabalhadores, uma vez que eliminam a possibilidade de reconhecimento da contribuição do trabalho, esfera essencial para a construção e estabilização da identidade em uma sociedade fundamentada na divisão social do trabalho, magnificando a alienação. O crescente número de trabalhadores desestruturados em sua autonomia psíquica constitui somente a evidência mais gritante da degradação do trabalho pelo atual modelo de organização do trabalho. Sob influxo dessas mudanças, os trabalhadores parecem avançar cada vez mais até os limites da exaustão e da perda de sentido de sua atividade laboral.

Diante desse cenário, o presente artigo analisa pesquisas empíricas realizadas em montadoras de veículos para entender a consciência dos empregados desse segmento em relação à sua atividade laboral sob a égide desse novo modelo organizacional. Além disso, busca-se identificar eventuais estratégias desenvolvidas individual e coletivamente pelos trabalhadores como forma de resistência à tentativa de captura da subjetividade e degradação do trabalho. Justifica-se a utilização de pesquisas empíricas realizadas com trabalhadores da indústria automobilística, porquanto é paradigmática para a compreensão de como se constituem as novas formas de produção reestruturadas.

Para o escopo desta pesquisa, parte-se da premissa de que, não obstante as estratégias do capitalismo contemporâneo, de captura da subjetividade do trabalhador, a irredutibilidade do trabalho vivo ao capital, bem como as próprias contradições ínsitas ao novo modelo de organização do trabalho mobilizam o desenvolvimento de estratégias individuais e coletivas de resistência dos trabalhadores e a continuidade da luta por reconhecimento e autorrealização pelo trabalho. A captura jamais atinge os seus objetivos no sentido de tomar o trabalhador como um todo e aniquilar o sujeito desejante, não é totalizante, sempre permanece um resto de subjetividade que permite, com instrumentos e mecanismos emancipatórios de (contra)estratégia, se fazer, se dizer, presente.

Para compreender a razão dessa mobilização, bem como a gravidade dos impactos desse novo modelo sobre a saúde dos trabalhadores, busca-se fundamento nos estudos realizados pela Psicodinâmica do Trabalho. Com a ajuda dessa disciplina é possível defender a tese de que, não obstante as estratégias de cooptação no capitalismo contemporâneo, o trabalhador insiste em desenvolver estratégias de resistência para superar os constrangimentos do real do trabalho e alcançar o reconhecimento essencial para a emancipação e autorrealização no trabalho, haja vista a importância da atividade laboral para a construção da identidade do sujeito.

1 A reestruturação produtiva do capitalismo: em busca da alma do trabalhador

No início da década de 1980 um cenário de intensa crise econômica em um mercado globalizado implicou profundas mudanças no sistema capitalista, que ganharam contornos específicos graças à revolução tecnológica e ao conjunto de idéias políticas neoliberais, desagregadoras das contrapartidas fordistas3 do período anterior. Embora ainda se esteja vivenciando as mudanças ocorridas nas últimas décadas do século XX, pode-se afirmar que essas transformações deram início a um novo modelo de reprodução do capitalismo, caracterizado pela doutrina como pós-fordismo ou regime de acumulação flexível.

O pós-fordismo, consoante terminologia adotada por Wilson Ramos Filho (2012, p. 382), é caracterizado por um novo modelo organizacional que busca a eficiência por intermédio da flexibilidade e precarização das relações laborais, em empresas esbeltas, organizadas em rede e conduzidas por equipes orientadas para a satisfação do cliente e dos acionistas, mediante a mobilização geral de colaboradores atemorizados pela perda do emprego. Dessa forma, a expressão pós-fordismo designa as mudanças implementadas no fordismo, especialmente os novos modelos de organização do trabalho que precarizam as relações laborais e adotam sofisticadas estratégias para envolver os trabalhadores no modo de existência capitalista.

Essas mudanças no sistema de reprodução do capitalismo foram significativas a ponto de ser coerente a tese de um novo regime de acumulação e regulamentação do capital, pautado no paradigma da flexiblidade. Nesse sentido, Harvey (2013, p. 148) esclarece que as pressões competitivas e a luta por melhor controle do trabalho levaram ao surgimento de formas industriais totalmente novas, bem como à integração do fordismo a toda uma rede de subcontratação e de deslocamento para dar maior flexibilidade diante do aumento da competição e dos riscos. A produção em pequenos lotes e a subcontratação conseguiram superar a rigidez fordista e atender a uma gama bem mais ampla e cambiável de necessidades do mercado.

Essas mudanças no sistema capitalista, as quais foram possíveis, em grande medida, pela revolução tecnológica, acarretaram a reestruturação produtiva, ou seja, mudanças nos modelos organizacionais, nos modelos de gestão do trabalho e da produção como um todo. Essa reestruturação produtiva do capitalismo é caracterizada, na doutrina de Alves (2008, p. 109), pelo toyotismo. Enquanto no fordismo-taylorismo, conforme ressalta o referido autor, o trabalhador era apêndice da máquina, robotizado e despersonalizado, no toyotismo, ele não é apenas vigia da máquina, mas dador de inteligência viva (ALVES, 2008, p. 109). O que significa não apenas máquinas inteligentes, mas operadores inteligentes, trabalhando em equipe, com habilidade polivalente,4 capacidade de iniciativa e engajamento no processo de produção.

Eis o ponto frágil do fordismo-taylorismo: a intensificação do trabalho, por meio da parcelização e imposição de microtempos, voltava-se apenas ao aspecto físico da atividade laboral, deixando livre o cérebro do empregado-macaco5 para outras ocupações, inclusive para pensamentos pouco conformistas. Ao separar, radicalmente, o trabalho intelectual do trabalho manual, o sistema anterior neutralizava a atividade mental dos empregados. Nesse sistema, não era o aparelho psíquico que aparecia como primeira vítima, “mas, sobretudo, o corpo dócil e disciplinado, entregue, sem obstáculos, à injunção da organização do trabalho. Corpo sem defesa, corpo explorado, corpo fragilizado pela privação do seu protetor natural, que é o aparelho mental.” (DEJOURS, 1992, p. 19)

Foi exatamente essa falha que o novo modelo de organização do trabalho, após a reestruturação produtiva do capitalismo, procurou contornar por intermédio de estratégias de captura da subjetividade do trabalhador. Trata-se de uma estratégia do capitalismo reestruturado para mascarar os conflitos de classe e anular a possibilidade de desenvolver uma consciência de classe em si e para si,6 conformando a classe trabalhadora aos ideais do capital, a ponto de o trabalhador identificar-se com o capital e ceder ao atual modo de existência capitalista, do fetichismo do consumo. O trabalhador é colocado em uma posição esquizofrênica, pois ao mesmo tempo em que vende seu trabalho (em uma relação de emprego cada vez mais precária e flexível, reduzido, portanto, à mera força de trabalho desvalorizada) para a produção de bens que dificilmente, ou a muito custo, poderá adquirir, é cooptado para se identificar com o outro que lhe é totalmente estranho, o capitalista, transferindo seu anseio de reconhecimento aos signos do consumo, momento em que se torna precioso capital humano.

Assim, não basta mais para o capitalismo contemporâneo a imposição de jornadas extenuantes, exigindo do corpo do trabalhador até o limite da exaustão.

O novo modelo produtivo quer, além dessa dimensão do trabalho, o comprometimento psicológico dos obreiros, que devem vestir a camisa da empresa, trabalhar durante toda a jornada sem tempos mortos, num ritmo intenso, comprometer-se com os resultados, fiscalizar a si e aos demais colegas. (DUTRA, 2012).

Nesse processo, o trabalhador torna-se um homem clivado entre o trabalho vivo7 e a redução da força de trabalho como mercadoria. Essa abstração se consagra mediante a ficção da possibilidade de separação da força de trabalho da pessoa do trabalhador, o trabalho vivo (WANDELLI, 2012, p. 44).

Os estudos sobre a organização do trabalho, após a reestruturação produtiva, revelam que se adotou um novo discurso a fim de dissimular a estrutura de classes e conquistar o corpo e a alma dos trabalhadores: os empregados tornam-se colaboradores. Não se trata apenas de administrar recursos humanos, mas de manipular talentos humanos, no sentido de cultivar o envolvimento de cada um com os ideais da empresa.

Dissemina-se a ideologia do empreendedorismo, destinada a fomentar nos trabalhadores as qualidades autônomas, criativas e flexíveis, como se fossem verdadeiros empresários. No entanto, consoante esclarece Wandelli (2012, p. 184), “a finalidade desse reconhecimento ideologicamente direcionado é motivar à aceitação de cargas de trabalho elevadas, condições de trabalho precárias, instabilidade e assunção de riscos próprios à empresa que são necessárias às mudanças estruturais neoliberais.”

No discurso do empregado colaborador o processo de reconhecimento e autorrealização pelo trabalho torna-se cada vez mais fluído, pois a construção da identidade passa a ser buscada em uma falsa identificação com o outro, que lhe é estranho (o capital), bem como no reino do prazer e do consumo, aniquilando o operário-padrão em prol do operário-patrão. A tentativa é de que o trabalhador se assuma subjetivamente como próprio capital. “Se sente colaborador, é tão o outro em si mesmo que sequer consegue perceber.” (COUTINHO, 2007, p. 100). Essas estratégias de cooptação do trabalhador buscam ocultar a conflituosidade entre capital e trabalho e, consequentemente, comprometer o desenvolvimento de uma consciência de classe, transferindo a conflituosidade entre os próprios trabalhadores, pois o quadro que se vivencia é dramático: ânsia pelo cumprimento de metas, medo do desemprego, práticas de assédio moral organizacional, vínculos de emprego precários, remuneração e jornada flexíveis, entre outros.

A fim de promover a identidade do trabalhador com a empresa, dissemina-se a cultura empresarial por diversas estratégias, como cânticos e exercícios motivacionais, repetição diária de refrãos, slogans e palavras de ordem aos trabalhadores. Trata-se de disseminar uma determinada visão de mundo para o conjunto dos trabalhadores de uma empresa. A idéia da empresa como uma grande família demonstra a produção de uma ideologia no local de trabalho que, além de mascarar as relações sociais de produção, reforma a dominação para conseguir a exploração dos trabalhadores.

O processo de reestruturação produtiva necessitou de um novo perfil de empregado, deixando de lado o paradigma do empregado subordinado, apenas destinatário do poder de comando e direção, para adotar o trabalhador produtivo, criativo, polivalente, que assume responsabilidades e age independentemente do comando do capital, em uma estrutura de organização flexível (COUTINHO, 2007, p. 102). Trata-se apenas de uma estratégia de dominação e disciplina por meio de poder condicionado; alerta-se que tal não significa, entretanto, que a sujeição ao poder do empregador tenha sido superada. Ao contrário, encontra-se dissimulada, oculta, mascarada.

A adoção da remuneração flexível (como a participação nos lucros ou resultados - PLR) é uma estratégia exemplar implementada pelo capitalismo reestruturado para moldar a classe trabalhadora ao novo modelo produtivo, uma vez que condiciona a remuneração do trabalhador ao seu desempenho e ao da empresa. O empregador, com o discurso de maior liberdade e com promessas de maior ganho, instala a dominação por incentivo, por meio de salários variáveis por metas e participação nos resultados ou lucros, obtendo uma dominação compensatória, dentro dos novos parâmetros de eficiência, produtividade e habilidade. Pressionado pela remuneração flexível e o plano de metas, o trabalhador torna-se seu próprio carrasco, pressionando também seus pares.

Além da remuneração flexível, a imposição de metas é outro exemplo significativo da reestruturação produtiva. Os trabalhadores são autônomos para alcançar as metas da melhor forma possível, independentemente da provisão de meios, assumindo, inclusive, os riscos pelas escolhas feitas. Nesse cenário, práticas de assédio moral, utilização de meios ilícitos e violação das normas de segurança tornam-se irrelevantes para a organização, desde que alcançadas as metas. Trata-se da gestão do trabalho pelo estresse: plano de metas, assunção de riscos, assédio moral organizacional, medo do desemprego, remuneração e jornada flexíveis, exaustão física e psíquica, entre outros.

Um exemplo paradigmático dessa gestão do trabalho pelo estresse ocorre nas montadoras de veículos, onde o ritmo de trabalho é intensificado conforme as metas diárias de produção expressas em painéis luminosos nos locais de trabalho, consoante análise empírica realizada por Bridi (2009, p. 27) em montadoras do Estado do Paraná:

O ritmo de trabalho é dado por mecanismos de controle da produção externos aos trabalhadores na linha de montagem. O supervisor controla o ritmo via programação. A produção é organizada em times, células ou equipes autogerenciáveis, compostos de dez a doze trabalhadores, com um líder que, a priori, deveria ser escolhido pelos trabalhadores, não é, porém, o que ocorre em todas as plantas no exemplo empírico das montadoras do Paraná. A máquina determina os ritmos e os trabalhadores devem acompanhá-los. Por meio de painéis luminosos, os trabalhadores visualizam as metas e o ritmo da produção desde o início do seu turno de trabalho.

As metas nessas montadoras de veículos não são reduzidas mesmo na ausência de algum trabalhador da equipe. As conseqüências dessa intensificação do trabalho para o cumprimento das metas diárias de produção, bem como para compensar a ausência de trabalhadores na equipe, é nefasta para a saúde do trabalhador, fato que não é ignorado pelos empregados, consoante demonstra o seguinte relato (BRIDI, 2009, p. 93):

[...] Você avalia que de três mil e setecentos, três mil e oitocentos funcionários hoje, sendo esses três mil e duzentos de produção, nós temos mais de quatrocentos trabalhadores afastados pelo INSS, e isso é excesso de trabalho. Boa parte deles está com LER. Eu estou na comissão de fábrica há três anos, e tenho artrose nos dois ombros, com 34 anos. É um problema comum dentro da Volks, e isso é em decorrência do que? De uma carga de trabalho, uma jornada de trabalho [...] por conta do banco de horas, nós chegamos a fazer 60 horas na semana, então era um ritmo alucinante mesmo. E aí o trabalhador não agüenta. Não existe trabalho pesado na Volks [...] é um trabalho repetitivo, você levanta essa garrafa de água uma vez ela tem dois quilos, mas você levanta cem vezes no dia e aí você não consegue fazer com que o seu corpo se recupere desse esforço. (Trabalhador, informação verbal).

A intensificação do trabalho e o aumento extremo da mais-valia nesse novo modelo de organização do trabalho fica evidente nos dados apresentados pelo DIEESE/PR em relação à produção da montadora Volkswagen-Audi. A análise desses dados demonstra claramente que, após a reestruturação produtiva, houve um aumento significativo na produção, contudo, sem o aumento correspondente de empregados, haja vista a intensificação do trabalho:

Em 2001, produziu 98.333 carros com 2.794 trabalhadores, ou seja, 35,19 veículos por trabalhador; em 2004, a produção saltou para 132.034, com 3.148 trabalhadores, significando aumento do número de veículos por trabalhador para 41,94. A partir de 2005, a empresa deixa de fornecer o número de empregados; de acordo, porém, com o número de empregados concedidos pelo Sindicato da categoria (3.500), o volume de produção salta para 244.227 veículos, o que representa 69,77 veículos/trabalhador. (BRIDI, 2009, p. 29).

A intensificação do trabalho nas empresas reestruturadas repercute na vida dos trabalhadores fora do ambiente de trabalho. Na pesquisa empírica realizada por Beaud e Pialoux (2009, p. 46), em montadoras de veículos da Peugeot, na França, muitos trabalhadores reclamaram que se tornaram mais irritáveis não apenas no local de trabalho, mas também em casa, e que não têm mais ânimo de sair nos finais de semana, ou de viajar nas férias, pois se sentem extremamente cansados e, pouco a pouco, parecem ter pedido o gosto de conviver com outras pessoas. “Eles se sentem esgotados, e o cansaço, que é coletivo, se lê nos rostos, se embrenha nos corpos, no andar, que com o tempo se tornou mais lento e pesado. Muitos chegaram a um ponto em que têm a impressão de não poder mais lutar contra o cansaço, contra a vontade de desistir.” (BEAUD; PIALOUX, 2009, p. 46).

A análise atenta do quadro retratado nessas pesquisas empíricas deixa evidente que o aparente consentimento dos empregados a esse novo modelo de gestão não é forjado integralmente em um espírito de comprometimento com os ideais do capital, mas pelo medo de perder a principal fonte de subsistência, que é o trabalho alienado e estranhado no sistema capitalista. Além disso, percebe-se que o trabalhador não é inconsciente da desvalorização do seu trabalho e das conseqüências nefastas à sua saúde, o que permite verificar espaços de lutas dos trabalhadores para reconhecimento da contribuição do seu trabalho, essencial para a construção e estabilização da identidade do sujeito, consoante será abordado na próxima seção.

2 A falta de reconhecimento no trabalho e o sofrimento patológico do trabalhador

Ao mesmo tempo em que o trabalho se apresenta como um importante meio de emancipação e autorrealização do homem que trabalha, também pode apresentar um enorme potencial deletério para a saúde física e psíquica, principalmente em face dos novos modelos de organização do trabalho introduzidos pelo paradigma da produção flexível. Tais práticas organizacionais, consoante ressalta Wandelli (2012, p. 63), solapam os mecanismos de confiança e solidariedade entre os trabalhadores e as perspectivas de construção da identidade e autorrealização por meio do reconhecimento da contribuição laborativa de cada um. Suicídios e o adoecimento psíquico do trabalhador são os sintomas nefastos de uma organização do trabalho que dilui a solidariedade, exacerba o individualismo e não leva em consideração as expectativas do trabalhador em relação à contribuição de sua atividade laboral no contexto social.

A fim de verificar os impactos dessas novas formas de gestão do trabalho sobre a saúde do trabalhador, a presente pesquisa busca apoio nos estudos desenvolvidos pela Psicodinâmica do Trabalho, disciplina que analisa a relação entre subjetividade, trabalho e saúde, porquanto

A psicodinâmica do trabalho é antes uma disciplina clínica que se sustenta na descrição e no conhecimento das relações entre trabalho e saúde mental. É, em seguida, uma disciplina teórica que se esforça por inscrever os resultados da pesquisa clínica da relação com o trabalho em uma teoria do sujeito que observe, a um só tempo, a psicanálise e a teoria social. (DEJOURS, 2012, p. 23).

Segundo essa disciplina, os atuais modelos de organização do trabalho acarretam o sofrimento patológico do trabalhador, uma vez que impedem a autorrealização pelo trabalho. A forma de que se reveste o sofrimento patológico varia com o tipo de organização do trabalho, cujo impacto é o aparelho psíquico. Nesse ponto é necessário fazer uma distinção apontada por Dejours: enquanto as condições de trabalho (ambiente físico, químico, biológico, condições de higiene, de segurança e as características antropocêntricas do posto de trabalho) podem gerar o adoecimento físico dos trabalhadores, a organização do trabalho (divisão do trabalho, conteúdo da tarefa, sistema hierárquico, modalidade de comando, relações de poder, responsabilidades etc.) pode desencadear o adoecimento psíquico do trabalhador (DEJOURS, 1992, p. 25). Contudo, precisamos acrescentar que as más condições de trabalho trazem prejuízos não somente para o corpo, como também para o espírito, pois é de natureza mental a ansiedade resultante das ameaças à integridade física do trabalhador.

O sofrimento e adoecimento psíquico no trabalho surgem quando há um contraste entre a história individual do trabalhador, carregada de projetos e esperanças, e uma organização do trabalho que os ignora. Esse sofrimento, de natureza mental, começa quando o trabalhador não pode fazer nenhuma modificação na sua tarefa para torná-la mais conforme às suas necessidades fisiológicas e a seus desejos psicológicos (DEJOURS, 1992, p. 133).

O trabalho humano consiste e uma atividade de transformação do real no curso da qual se dá a descoberta e o desenvolvimento das potencialidades humanas. Assim, o trabalho é um fator essencial para a construção da identidade do homem. Conforme os estudos de Christophe Dejours, a identidade, considerada a armadura da saúde mental, é constituída por um processo contínuo que se sustenta a partir do olhar do outro em dois campos das relações cotidianas. O primeiro é o campo sexual, que passa pelo amor, na história singular de cada um. O outro aspecto da identidade é constituído pela autorrealização no campo social, que passa pelo trabalho. Nesse sentido, o trabalho apresenta-se como mediador da saúde mental, uma vez que consiste em uma nova oportunidade para os indivíduos superarem as falhas de formação da subjetividade na sua história pessoal. O trabalho, nesses termos, é visto como experiência privilegiada para a construção e estabilização da identidade, abrindo caminhos de emancipação do sujeito.

O mecanismo essencial que viabiliza ganhos em termos da construção e estabilização da identidade consiste na dinâmica da transformação do sofrimento inerente à realidade do trabalho pelo reconhecimento da contribuição da atividade laboral. Diz-se que o sofrimento é inerente ao trabalho, pois as contradições entre a possibilidade de fracasso frente à resistência que o real do trabalho impõe à subjetividade do trabalhador, bem como as constrições da organização do trabalho, são fontes de sofrimento que impõem ao trabalhador superar os riscos que recaem sobre seu corpo, como acidentes, o desenvolvimento de doenças, além do estresse ínsitos à gestão do trabalho após a reestruturação produtiva.

Mas, é preciso sublinhar que esse sofrimento não é necessariamente uma experiência passiva infeliz, pois pode ser transformado em uma experiência de autorrealização no trabalho à medida que se transforma em sentimento de superação e reconhecimento. Consoante explica Dejours (2012, p. 26), o sofrimento no trabalho não é apenas uma conseqüência da relação com o real, é também proteção da subjetividade em busca de meios para agir sobre o mundo e superar a resistência do real. Assim, o sofrimento será, concomitantemente, impressão subjetiva do mundo e origem do movimento de conquista do mundo.

Dessa forma, verifica-se que trabalhar consiste em mobilizar os recursos da subjetividade para suprir a distância entre as prescrições da organização do trabalho e aquilo que a realidade impõe para a atividade se concretizar. A realização dos objetivos da organização depende, no plano singular, da contribuição da subjetividade de cada empregado e, no plano coletivo, da cooperação entre os trabalhadores, a fim de organizar as distintas contribuições singulares para a realização de uma obra comum.

Isso porque, sem o zelo individual e a cooperação coletiva dos trabalhadores, adicionando à organização sua própria inteligência e capacidade de convivência, por vezes até contrariando as prescrições da organização do trabalho, a tarefa não se realizaria (WANDELLI, 2012, p. 65). Cumprir à risca as prescrições da organização do trabalho levaria à paralisação da produção, normalmente conhecido como greve de zelo ou operação padrão.

É a busca pelo reconhecimento que explica a mobilização do trabalhador para enfrentar o sofrimento do trabalho real e superá-lo. O reconhecimento no trabalho ao qual nos referimos abrange um duplo sentido: “gratidão e reconhecimento da realidade da contribuição do sujeito que trabalha; realidade do que, no trabalho, não é visível, mas é, ao cabo, o que é imprescindível a toda organização.” (DEJOURS, 2012, p. 39). Consoante ressalta Wandelli (2012, p. 169), “é justamente porque o trabalho pode atribuir ganhos importantes no registro da identidade que se pode obter a mobilização subjetiva da inteligência e do zelo daqueles que trabalham.” Diante disso, os novos modelos de organização do trabalho se debruçam especificamente sobre a manipulação da demanda por reconhecimento. Mas, uma vez que esses modelos não podem conferir o reconhecimento necessário ao trabalhador, adotam outros mecanismos para a mobilização subjetiva do empregado, como a cultura de empresa, estágios de formação sem limites, slogans e palavras motivacionais, manipulação de processos de gratificação e as ameaças de punição e demissão.

Para compreender o processo de reconhecimento no trabalho, adota-se a tese notabilizada por Honneth (2003, p. 59) na obra Luta por Reconhecimento, no sentido de que todas as relações intersubjetivas carregam expectativas de reconhecimento, expressadas, basicamente, em lutas sociais em três esferas: a) relações íntimas e familiares, nas quais o reconhecimento pelo amor permite o desenvolvimento da autoconfiança; b) relações jurídicas, nas quais o reconhecimento de direitos permite o desenvolvimento do autorrespeito; c) relações sociais por meio da contribuição e reconhecimento do trabalho, que permite a constituição da autoestima. Dessa forma, para Honneth, o trabalho, ao lado da família e do direito, é uma das esferas da luta por reconhecimento. Uma vez que o sujeito é constituído intersubjetivamente, a ausência de reconhecimento em qualquer das esferas referidas acarreta o desmoronamento da sua identidade.

Nos estudos de Honneth verificamos a importância do reconhecimento da contribuição dada pelo sujeito com o seu trabalho à comunidade para a formação da sua identidade:

[...] a medida de reconhecimento demonstrada a um sujeito, que cumpre ‘bem’ a função atribuída a ele no quadro da divisão social do trabalho, basta para lhe proporcionar uma consciência de sua particularidade individual. [...] Resulta daí que um indivíduo só é capaz de respeitar-se a si mesmo de um modo integral quando, no quadro da distribuição objetivamente dada de funções, pode identificar a contribuição positiva que ele traz para a reprodução da coletividade. (HONNETH, 2003, p. 150).

Em face dos marcos teóricos adotados na presente pesquisa, cumpre ressaltar que Karl Marx, na análise científica sobre o capital, em sua fase madura, não verifica a possibilidade de relações de reconhecimento no sistema capitalista de produção, uma vez que adota um conceito utilitarista de conflito social. A luta de classes no capitalismo não mais se apresentaria como uma luta por reconhecimento, mas como uma luta por autoafirmação (econômica) (HONNETH, 2003, p. 235). O embate entre as diversas classes é determinado pelo antagonismo de interesses econômicos, com uma carga ideológica de autoafirmação.

Da forma como Marx construiu sua teoria sobre o sistema capitalista, o trabalho, caracterizado pela alienação e estranhamento, não seria motivado pelo reconhecimento, mas pela mera necessidade de subsistência. Contudo, se a conseqüência da organização capitalista da sociedade é a destruição das relações de reconhecimento mediadas pelo trabalho, então esse conflito, necessariamente, também tem de ser concebido como uma luta por reconhecimento. Embora, como visto, o trabalho não seja a única esfera de reconhecimento intersubjetivo e de construção e estabilização da identidade, é um dos mecanismos para sua efetivação, de modo que carregará sempre essa busca por autorrealização e emancipação do homem que trabalha.

No atual estágio do capitalismo, após as inovações na organização do trabalho que, como visto, buscam cooptar o trabalhador ao modo de existência capitalista, poderíamos ser compelidos a concluir que o trabalho não seria mais motivado por uma necessidade de subsistência (na doutrina de Marx), ou por uma luta por reconhecimento da contribuição da atividade laboral, mas para realizar o fetichismo da sociedade do consumo. Contudo, o reconhecimento abordado na presente pesquisa refere-se ao trabalho vivo que, como visto, é irredutível de forma absoluta ao capital. É esse trabalho vivo que resiste à subsunção integral ao capital e expressa valores que ainda mobilizam a atividade laboral e possibilitam a autorrealização do homem que trabalha.

O reconhecimento não se trata de uma reivindicação marginal no trabalho, antes, é uma peça chave da psicodinâmica da cooperação. Dejours observa que a dinâmica da identidade é construída a partir de uma relação de mediação entre a relação com o real que constitui o trabalho e o julgamento de reconhecimento. O sentido que dá acesso a esse julgamento de reconhecimento é o sentido do sofrimento no trabalho, o qual é originário e consubstanciado em toda situação de trabalho por ser, em primeira instância, confrontação aos constrangimentos em relação aos sistemas e às técnicas e, de forma geral, em relação à capacitação para a execução de um trabalho. O julgamento de reconhecimento da contribuição do trabalho, oferecendo uma gratificação ao sujeito em relação a suas expectativas (edificação da identidade no campo social), pode transformar o sofrimento, inerente ao real do trabalho, em prazer.

A maioria dos sujeitos esperam a oportunidade de construir sua identidade no campo social pela contribuição do seu trabalho. A interrupção dessa dinâmica de trabalho-reconhecimento, leva à cessação da mobilização subjetiva. A partir daí, o trabalho perde seu sentido para a subjetividade, acumulando-se o sofrimento, que se torna um fator patogênico. É o que ocorre com os modelos de organização do trabalho que se tornaram hegemônicos sob a égide neoliberal, pois retiram o julgamento de reconhecimento, ao cortarem o vínculo com o trabalho bem feito, com a avaliação pelos pares, com as regras técnicas e éticas do ofício, degradando a solidariedade no ambiente de trabalho, ao promoverem a competição desleal entre os empregados.

Percebe-se que os atuais métodos de avaliação individualizada do trabalho e da qualidade total desconsideram inteiramente a realidade do trabalho, ou seja, o sofrimento, o zelo e a cooperação dedicados pelo trabalhador, pois recaem apenas sobre o resultado do trabalho. O trabalho, no que ele tem de essencial (o engajamento do trabalhador e a superação do sofrimento do trabalho em face do hiato entre o prescrito e o real do trabalho), não pertence ao mundo visível e, portanto, não pode ser objeto de uma apreciação objetiva.

A introdução de métodos de avaliação individual de desempenho também dissolve a solidariedade no ambiente de trabalho, uma vez que elimina os espaços de deliberação coletiva em face dos efeitos devastadores da concorrência generalizada que chega aos limites da deslealdade entre colegas de trabalho (DEJOURS, ٢٠١٢, p. ٨٦). A cooperação passa a ser reduzida: cada agente esforça-se em identificar a zona de atividade mais individualizada possível, em diálogo exclusivo com os objetos técnicos, enquanto as relações humanas se empobrecem e se tornam rarefeitas. As relações e as comunicações com os colegas são reduzidas ao mínimo possível e, quando ocorrem, resumem-se a uma transferência de informações ou a questões em linguagem eletrônica (DEJOURS, ٢٠١٢, p. ٩٠).

Quando a dinâmica do reconhecimento no trabalho é bloqueada por muito tempo, o sofrimento, inerente à realidade do trabalho, torna-se patogênico, trazendo o risco de adoecimento psíquico ou somático. Cumpre ressaltar que a psicodinâmica do trabalho não reconhece psicoses e neuroses do trabalho, pois considera que essas descompensações dependem, em última instância, da estrutura das personalidades, portanto, adquiridas muito antes da relação laboral (DEJOURS, ١٩٩٢, p. ١٢٢). Contudo, não se pode negar que falhas na estrutura da personalidade do sujeito somadas a uma organização do trabalho nos moldes pós-fordista favorecem o desenvolvimento de descompensações psiconeuróticas. De fato, as descompensações psiconeuróticas dependem da interação entre os constrangimentos da organização do trabalho e a estrutura psíquica dos trabalhadores; entretanto, consoante ressalta Wandelli (2012), “não se pode imputar o adoecimento do trabalhador à sua fragilidade psicológica, já que em todos os sujeitos, na formação de sua identidade, ocorrem falhas que algum dia, por algum mecanismo desencadeador, podem gerar descompensações, sendo impossível precisar a causa em si.”

Na verdade, muitas vezes os trabalhadores tentam esconder ou disfarçar, até mesmo de si próprios, o sofrimento no trabalho, que lhes parece vergonhoso em uma sociedade estruturada na divisão social do trabalho. O sofrimento mental e a fadiga são proibidos de se manifestarem numa empresa. Somente a doença é admissível. Por essa razão, Dejours (1992, p. 121) destaca que o trabalhador é compelido a apresentar um atestado médico, geralmente acompanhado de uma receita, que termina por disfarçar o sofrimento mental, na medida que desloca o conflito homem-trabalho para um terreno mais neutro, desqualificando o sofrimento, no que este pode ter de mental.

Por isso que na maioria dos casos, as descompensações psiconeuróticas não são diagnosticadas como doenças ocupacionais. Para os médicos e peritos, que não vivenciam a realidade do trabalho na empresa, a cristalização de todos os conflitos familiares, financeiros e sociais, confere um caráter pessoal à patologia. O que se ignora é que as relações sociais e familiares é que são contaminadas por esse sofrimento no trabalho. Muitas vezes o recurso às bebidas alcoólicas e psicotrópicos constitui um último recurso para o alívio da tensão no trabalho.

Embora a resposta corporal dependa da singularidade de cada trabalhador, é inegável o nexo que se estabelece entre o adoecimento psíquico e o trabalho, se considerarmos que os autuais modelos de organização do trabalho são estruturados no estresse e no medo e afastam o reconhecimento da contribuição do trabalho. O sofrimento tornou-se um instrumento de exploração e de rendimento para o capitalismo. Na maioria das atividades laborais, mesmo as menos qualificadas, a exploração passa também pela profundeza do aparelho mental. Consoante explica Dejours (1992, p. 104), o que é explorado pela organização do trabalho não é o sofrimento, em si, mas principalmente os mecanismos de defesa utilizados contra esse sofrimento, uma vez que o sujeito tende a se alienar e produzir mais. Na impossibilidade de encontrar uma saída direta para esse sofrimento, a estratégia de defesa do indivíduo é de voltar-se contra si mesmo por intermédio de um processo que transforma o sofrimento em culpa, implantando um círculo vicioso, onde a frustração alimenta a disciplina (DEJOURS, 1992, p. 102).

3 O trabalhador consciente das estratégias do capital: a luta ainda está latente

Os constrangimentos organizacionais que acarretam o sofrimento patológico no trabalho não decorrem de mera fatalidade. São determinados pelas relações de dominação, pois é também pelo viés da organização do trabalho que as relações sociais se estabelecem. As ligações que se estabelecem entre os trabalhadores no processo de produção não revelam apenas vínculos sociais, mas, sobretudo, ligações de classe estabelecidas e conquistadas na luta. As estratégias de cooptação do trabalhador e dessubjetivação das individualidades coletivas buscam restringir justamente o desenvolvimento da consciência de classe e mascarar a luta de classes e, desta forma, a própria memória histórica.

Portanto, as estratégias de captura da subjetividade ocultam uma dimensão mais profunda, isto é, elas não são apenas controle e manipulação das instâncias psíquicas do trabalhador, mas a corrosão do homem como ser social. O processo de reestruturação da empresa, desde o início dos anos 1980, teve um impacto importante na história das relações de classe. “Significa que os diques construídos ao longo dos anos pelo movimento operário com intuito de opor-se à exploração, de dotar o grupo de uma consciência de classe e de resistir à dominação, simbólica romperam-se largamente.” (BEAUD; PIALOUX, 2009, p. 11).

Diante dos modelos de organização que buscam capturar a subjetividade do trabalhador, a classe trabalhadora pode ou não negar a si mesma e enxergar-se pelos olhos do capital. Os trabalhadores podem absorver o discurso de identidade de interesses entre o capital e o trabalho, como também podem afirmar sua condição de classe subordinada, organizando-se para a defesa de seus interesses. Para romper essa clausura negadora do trabalho humano, Wandelli (2012, p. 48) esclarece que não basta negar a opressão sofrida sob o capital. É preciso ser capaz se afirmar, desde o ponto de vista das pessoas que vivem do trabalho, a sua própria diferença frente ao capital, desenvolvendo suas possibilidade e capacidade de relacionar-se com o trabalho para além da específica relação que lhe impõe o capital. O trabalho vivo é irredutível absolutamente ao capital e, partir da sua força criadora, abrem-se espaços de luta pela afirmação do trabalho desde uma outra perspectiva.

A ampliação dos contratos por prazo determinado, flexível e de outras formas precárias de contratação, características do capitalismo reestruturado, sem dúvida, dificulta a criação de laços de solidariedade entre os trabalhadores e, portanto, é um grande empecilho para o desenvolvimento da consciência e luta de classes. Nesse sistema de produção flexível não existe uma vinculação espaço-temporal com o empregador ou com o tomador final dos serviços, nem com os próprios colegas de trabalho. A conjectura de existir trabalhadores efetivos, temporários e terceirizados gera a hierarquização e o desmerecimento entre os empregados. Revela-se de grande dificuldade a percepção de uma identidade coletiva diante da diversidade instalada no mundo do trabalho entre trabalhadores da centralidade e da periferia da organização produtiva.

Diante da evidente precarização do trabalho no atual modelo de acumulação flexível, muitos doutrinadores são céticos em visualizar qualquer possibilidade de autorrealização e emancipação do homem pelo trabalho. “Os laços estabelecidos a partir do trabalho são frouxos demais para a vinculação subjetiva do obreiro, no sentido de vivenciar ali uma metanarrativa para sua vida. As condições materiais e de reconhecimento simbólico oferecidas por aquele trabalho são insuficientes à afirmação identitária.” (DUTRA, 2012).

A posição defendida na presente pesquisa é no sentido de que, embora todas as estratégias desenvolvidas após a reestruturação produtiva para enfraquecer os coletivos de trabalho e cooptar a subjetividade do trabalhador, existe uma plena consciência dos trabalhadores quanto à precarização da sua atividade laboral e das estratégias de dessubjetivação. A luta de classes e a luta por reconhecimento da contribuição do trabalho ainda está latente no imaginário dos trabalhadores, pois um olhar atento à realidade vivenciada pelos empregados no ambiente de trabalho demonstra claramente o desenvolvimento de ações individuais e coletivas de resistência à completa objetivação do trabalho. “Os dominados têm sempre diversas possibilidades - dignas ou indignas - de reagir à dominação, que eles têm recursos, possuem margens de manobra para reagir ao destino que se constrói para eles.” (BEAUD; PIALOUX, 2009, p. 52).

A análise do mundo real, do chão de fábrica, dos sentimentos vivenciados cotidianamente pelos trabalhadores no ambiente de trabalho, revela que eles têm consciência e resistem às estratégias do capital. Nesse sentido são emblemáticos alguns relatos de trabalhadores de montadoras de veículos, haja vista que é um dos setores que mais sofreu os impactos da reestruturação produtiva.

Corrobora a posição defendida na presente pesquisa as entrevistas realizadas com empregados de montadoras de veículos do Paraná, na obra de Bridi (2009, p. 76), como, por exemplo, o seguinte relato de um trabalhador da Renault, no qual fica nítida a consciência do empregado quanto à precarização da sua atividade laboral e quanto ao pertencimento a uma classe subordinada na estrutura social capitalista:

“Não, não, o capital não trata coletivamente nada, ele não é bobo, ele pega a ovelha, tira do rebanho e mata, entendeu? Ele não vai atacar todos porque ele precisa de nós. Somos mão de obra barata pra eles, eles precisam de nós...” (Trabalhador da Renault, informação verbal).

Na seguinte entrevista também fica evidente que os trabalhadores têm plena consciência da tentativa de cooptação e da conformação que a nova organização do trabalho busca estabelecer em todos os âmbitos da vida dos empregados (BRIDI, ٢٠٠٩, p. ٨٦, grifo nosso):

[...] então o capital obriga uma situação e nós nos sentimos pressionados, nós levamos nossas angústias para dentro de casa e isso é mal que nós estamos fazendo a nós mesmo, mas não tem outra forma [...] O capital descobriu uma fórmula mágica de pressionar o trabalhador, descobriu a forma de pressionar suavemente e nos prender à situação ali. (Delegado sindical, empresa C, informação verbal).

Na pesquisa empírica realizada por Beaud e Pialoux (2009, p. 47) em uma montadora da Renault, na França, também fica evidente que os trabalhadores têm consciência de que a atual organização do trabalho utiliza o medo, o estresse e a raiva como fatores positivos na produtividade:

[...] Nessa lógica, chega uma hora que a gente age na maldade, não têm mais consciência do que faz, age conforme é influenciado pela fábrica, e isso não é nada bom, e isso não é nada bom, porque a gente acaba tendo reflexos que são todos dirigidos contra a Peugeot. A gente trabalha por raiva a trabalha bem por raiva. Eu não queria entrar nesse esquema. Porque não tem nada melhor para a Peugeot do que um operário que trabalha por raiva. (grifo nosso).

Não se nega que a estratégia de cooptação do trabalhador para se identificar com os objetivos empresariais, tomando-os como se fossem seus, bem como a gestão do trabalho pelo estresse e medo, que acirra a concorrência entre grupos de trabalhadores nas cadeias produtivas, provocam dificuldade de percepção da igualdade de situação no trabalho e enfraquecem a ação coletiva. Contudo, essas estratégias não conseguem apagar a relação de classe ínsita ao sistema capitalista, bem como mascarar as contradições e frustrações vivenciadas no trabalho gerido pelo paradigma da flexibilidade, situação que, sem dúvida, é um móvel para a ação individual e coletiva dos trabalhadores.

No que tange à ação coletiva, esta ocorre quando os homens, conscientes das dificuldades de enfrentamento no âmbito individual, unem-se uns aos outros e organizam-se para modificar uma estrutura (BRIDI, 2009, p. 24). Consoante explica Dejours (2012, p. 64), as estratégias coletivas de defesa construídas em uma comunidade de trabalho reúnem os esforços de todos para a proteção dos efeitos desestabilizadores, para cada um, do confronto com os riscos que são, em uma primeira abordagem, os mesmos para todos os membros do coletivo de trabalho.

Observe-se que no relato de um empregado temporário na montadora de veículos da Peugeot, na França, fica evidente o sofrimento patológico experimentado pelos trabalhadores, como um todo, ao se depararem com o esvaziamento do reconhecimento da sua atividade laboral, lançando mão de estratégias defensivas, às vezes, autodestrutivas (BEAUD; PIALOUX, 2009, p. 39, grifo nosso):

Eu não acho que aquilo seja trabalho! É um trabalho de cão! Não é trabalho. [...] Eles enchiam a cara no meu setor! Não sei como conseguiam ficar de pé... Quando tem um buraco na cadeia, um motor atrasado... o pessoal bebe uma [...] É isso! Pelo menos, fazer alguma coisa que a gente mais ou menos goste, que tenha respeito pela pessoa. Porque trabalhar assim, eu digo que é escravidão! É horrível! Ah, não! Para ficar doente o tempo todo... Eu acho que não se tem mais vida. Não se vive, a gente trabalha, dorme, acorda, trabalha. É dormir, trabalhar, dormir. Só isso.

Ao se referir a uma pesquisa empírica realizada em uma montadora de veículos da Renault, na França, Dejours (1992, p. 121) evidencia o uso da agressividade como estratégia de defesa desenvolvida pelos trabalhadores, na tentativa de contornar o estresse no trabalho e de resistir à pressão do ritmo de produção:

[...] Nos fins de semana, quase que regularmente, o ambiente da seção fica especial. Explode, diretamente, a agressividade contra as chefias. É geralmente nesses momentos que se vê também algumas brigas de socos. Com a desordem instalada, muitas vezes a linha de produção pára; qualquer anomalia ou irregularidade, até mesmo a parada da produção, provocam irrupções coletivas de agressividade. No fim, os carros que saem da fábrica naqueles dias têm muito mais defeitos do que os que saem no começo da semana. Os carros do começo da semana e do fim de semana, são, via de regra, muito mais defeituosos do que os carros do meio da semana. (grifo nosso).

No exemplo empírico sobre a ação coletiva em montadoras do Paraná, verifica-se que os trabalhadores tendem a desenvolver uma consciência que permite a mobilização. A consciência diz respeito ao conhecimento adquirido no relacionamento com empregador e experiências acumuladas nessa relação, que possibilitam aos trabalhadores alguma clareza quanto à posição que ocupam na estrutura social (BRIDI, 2009, p. 109, grifo nosso):

Foi uma vitória enorme? Nós conseguimos reverter uma demissão [...] para nós é uma vitória, e não e a primeira demissão. Conseguimos reverter outra demissão [...] Paramos a fábrica: não vai rodar enquanto não for readmitido esse funcionário. Aí veio o dirigente: vamos conversar. Então e o seguinte: vamos conversar segunda-feira, certo, vamos fazer uma assembléia, na sexta e explicar para o trabalhador e dizer que se não readmitir esse trabalhador nós vamos parar a fábrica (Delegado sindical, empresa C, informação verbal).

O impacto da reestruturação produtiva introduzida em fábricas de veículos da Peugeot, na França foi analisado por Beaud e Pialoux, os quais identificaram formas individuais, um tanto desesperadas, de resistência ao novo modelo de organização do trabalho. Por exemplo, como forma de resistir à intensificação do ritmo de trabalho nas montadoras, alguns empregados, de propósito, produzem carros com defeitos (BEAUD; PIALOUX, 2009, p. 34, grifo nosso):

É incrível, agora tudo é anotado. Eles vigiam cada vez mais as pessoas individualmente... Por exemplo, em relação aos defeitos, o chefe tem um gráfico... Na sexta-feira, justamente, fui convocado, a gente discutiu porque ele não acha normas que os defeitos aumentem na minha ficha: “Janeiro foi tanto, depois tanto..” Aí eu disse: “É trabalho demais, chefe, é trabalho demais...””Ah! Pode ter certeza de que não, mas vamos ter que encontrar uma solução...” Eles ficam observando a gente, é insano... Porque, na minha cabeça, se você não produz defeitos, é porque trabalha bem e, se trabalha bem, eles vão passar mais trabalho para você no outro mês... Então eu penso: “Bom, hoje eu não esqueci nada”, porque em geral, como faço sempre o mesmo serviço, é raro, acontece, mas é raro eu esquecer alguma coisa, então penso: “Bom, hoje eu também não esqueci nada...” Aí eu esqueço de propósito alguma coisa para manter a minha linha, a minha mediazinha de defeitos, porque senão... [...] Mas eles dizem o tempo todo que não é para produzir defeito nenhum, mas, numa equipe de trinta caras, chega a ter cinco ou seis caras que produzem defeitos, bom, sem querer, ou talvez dois que fazem de propósito, como eu. Mas os outros, não fazer defeito nenhum, é insano. Mesmo nos postos mais duros que o meu, isso significa que eles estão fazendo o jogo deles, enquanto se todo mundo deixasse um pouco de defeito... Bom, eles fariam alguma coisa, mas os outros seguem mesmo a ótica do patrão. A gente não tem mais tempo de conversar, não sobra tempo nenhum...

Uma vez que os trabalhadores estão vivendo um processo de descontinuidade permanente em razão da rotatividade no emprego, oscilação entre empregados formais e informais, bem como em face das estratégias de captura da subjetividade, a organização dos trabalhadores aparece também fragmentada e transitória, mas ainda assim, há espaços de luta. No seguinte relato fica notório que alguns trabalhadores procuram a ação coletiva para tentar modificar essas formas de exploração do trabalho (BRIDI, 2009, p. 13):

O trabalho dessas montadoras ele é causticante, ele é uma carga psicológica e física muito grande. E com o passar do tempo você começa a ver que muita coisa ali, sabe, é uma coisa viciante, é uma coisa que vem de fábrica, e fábrica, não muda muito de uma fábrica pra outras. Às vezes você não consegue ficar calado perante esse tipo de abuso, a essa rotina. É como se as pessoas entendessem que isso é normal, eles entendem que isso é normal. E por não entender que isso seja uma coisa normal é que eu acabei impelido a procurar a luta, como a gente chama, né!

Essas pesquisas empíricas realizadas em montadoras de veículos demonstram a existência de ações defensivas no âmbito individual e coletivo que são um obstáculo à tentativa de completa objetivação do trabalho pelo capital. Ainda, é importante frisar que, nesses relatos, fica evidente que a consciência dos trabalhadores, acerca das estratégias de cooptação e do sofrimento vivenciado pelo esvaziamento do sentido do trabalho nos atuais modelos organizacionais, está latente tanto em empregados de montadoras situadas em países de capitalismo central (como a França) e de capitalismo periférico (como o Brasil). Guardadas as devidas particularidades econômicas, políticas e sociais desses países, é certo que, se no atual estágio do capitalismo globalizado a precarização do trabalho parece não encontrar fronteiras, a consciência, a insatisfação e a luta dos trabalhadores também se faz sentir de forma global.

A análise dos relatos dos trabalhadores acima destacados demonstra como a classe trabalhadora tem buscado enfrentar uma situação que, sob muitos aspectos, lhe é desfavorável. “É claro que tal postura se dá com certa aflição e hesitação, com uma consciência cada vez mais aguda da erosão de suas antigas estratégias e do problema da sucessão das gerações no interior do grupo.” (BEAUD; PIALOUX, 2009, p. 15).

As contradições acirradas no trabalho decorrentes dos atuais modelos de organização do trabalho abrem brechas para a resistência dos trabalhadores. A tentativa de cooptação do trabalhador aos interesses do capital não se sustenta, haja vista que os empregados se deparam cotidianamente com as promessas irrealizadas e com condições de trabalho precárias. Mesmo no atual estágio de organização do trabalho, que suprime o reconhecimento e o substitui por outras estratégias, verificamos, nos exemplos empíricos acima, que os trabalhadores desenvolvem estratégias de resistência e têm consciência da tentativa de cooptação, mesmo que muitas vezes essa resistência seja frustrada e alguns trabalhadores acabem sucumbindo à descompensações psiconeuróticas decorrentes do sofrimento patológico no trabalho.

Se a resistência à organização do trabalho após a reestruturação produtiva não pode ser efetivada à moda antiga, ou seja, organizada e mantida por uma perspectiva estratégia, em face do enfraquecimento da representação sindical, o quadro encontrado também não é de total alienação dos operários em relação às estratégias do capital para conformá-los. Ainda que seja uma resistência surda, passiva, às vezes inconsistente e incoerente quanto à maneira certa de lutar, marcada pelo medo e estresse, ela está viva e latente.

Considerações Finais

Verifica-se que o aumento extraordinário da produtividade e da extração da mais-valia por intermédio dos novos modelos de organização do trabalho, implementados após a introdução de novas formas de reestruturação produtiva, se deu a custas da erosão do lugar acordado à subjetividade e à vida no trabalho. Essas novas modalidades de organização do trabalho, pautadas em estratégias de cooptação dos trabalhadores e na gestão pelo estresse e medo, obstam o processo de reconhecimento da contribuição da atividade laboral e, consequentemente, dificultam a autorrealização pelo trabalho, dando ensejo ou abrindo campo ao sofrimento patológico no trabalho.

Conforme esclarecem os estudos da psicodinâmica do trabalho, as frustrações resultantes de um conteúdo significativo inadequado às potencialidades e às necessidades da personalidade podem ser uma fonte de grande sofrimento. Isso ocorre porque o reconhecimento no trabalho não se consubstancia em uma reivindicação marginal, uma vez que a dinâmica da identidade é construída a partir de uma relação de mediação entre a realidade do trabalho e o julgamento de reconhecimento. Embora toda atividade laboral implique em alguma medida algum tipo de sofrimento, em face da confrontação entre o prescrito e o real, a construção do sentido do trabalho pelo reconhecimento oferece uma gratificação ao sujeito em relação a suas expectativas, transformando o sofrimento em prazer; sempre presente o gozo, no sentido psicanalítico. Por isso, entende-se que não basta proteger as pessoas dos efeitos deletérios do trabalho, antes, é preciso assegurar as condições pelas quais o trabalho possa desempenhar seu papel constitutivo para a identidade o sujeito que trabalha.

Não obstante as estratégias do capital, de capturar a subjetividade do trabalhador, transferindo o processo de reconhecimento para outros signos, como o fetichismo do consumo,é de se considerarque o trabalho vivo é irredutível absolutamente ao capital e, portanto, o trabalho ainda permanece como a chave na formação da identidade pessoal e social do indivíduo. Embora, como visto, o trabalho não seja a única esfera de reconhecimento intersubjetivo e de construção e estabilização da identidade, é um dos mecanismos para sua efetivação, de modo que carregará sempre essa busca por autorrealização e emancipação do homem que trabalha.

Como uma espécie de vitória à violência da organização do trabalho, verifica-se nos relatos das entrevistas realizadas com empregados de montadoras de veículos que o discurso de captura da subjetividade do trabalhador não subsiste e é desconectado da realidade vivenciada no ambiente de trabalho, uma vez que foram constatadas estratégias de resistência e plena consciência dos trabalhadores quanto à precarização da atividade laboral e a tentativa de cooptação. Embora se não tenhacondições de admitir que essas estratégias sejam suficientes na luta contra o sofrimento patológico no trabalho, permitem todavia concluir que os trabalhadores não se entregam totalmente ao lado do capital. A luta de classe e a luta por reconhecimento da contribuição do trabalho estão latentes na mente dos trabalhadores. Ou seja, os trabalhadores têm a plena consciência do que nunca deixaram de ser para o sistema capitalista: mera força de trabalho à disposição da exploração do capital que vive do trabalho não pago (mais-valia). Essas estratégias de resistência também demonstram que há ainda espaço para a solidariedade nas relações de trabalho capaz de mobilizar uma ação coletiva para fazer frente à degradação física e mental. Há sempre espaço para luta política.

REFERÊNCIAS

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1 Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná; Professora na Universidade Federal do Paraná; aldacycoutinho@gmail.com; https://orcid.org/0000-0002-0334-3346

2 Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina; doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná, na linha de pesquisa de Direitos Humanos e Democracia; samiamoda@hotmail.com; https://orcid.org/0000-0003-4209-0350

3 No período subseqüente ao término da Segunda Guerra Mundial, o fortalecimento dos movimentos sociais implicou uma mudança ideológica para a legitimação do capitalismo, quando, então, foram reconhecidos alguns direitos trabalhistas, com o fim de conter a insurreição da classe operária e conformá-la ao modo de vida capitalista. Para essa proposta, Ramos Filho (2012, p. 43) aponta duas estratégias básicas do capitalismo, nos países de capitalismo central: “o estabelecimento de mecanismos de disciplina e controle da subjetividade da classe trabalhadora nos locais de produção e, por outro lado, o reconhecimento de direitos de amplitude geral visando diminuir a cólera e o ímpeto das classes dominadas. A disciplina restava assegurada pelo controle parcelar do tempo e das atividades obreiras pelo taylorismo e pela inculcação ideológica do espírito capitalista que pregava o progresso social e do acúmulo de bens, papel identificado com a ideologia do fordismo.”

4 Tabalhador polivalente no sentido de capacidade de desempenhar diversas funções. Embora possa aparentar uma maior qualificação do trabalhador, na realidade, trata-se mais de procedimentos de ampliação e acumulação de funções do que de um verdadeiro enriquecimento que afete a divisão vertical de trabalho e das funções. Consoante ressalta Alves (2008, p. 115), “o trabalho ampliado dos operários pluri-especialistas resulta tão vazio e tão reduzido à pura duração, como trabalho fragmentado.”

5 A expressão empregado-macaco advém da justificativa apresentada por Taylor ao seu sistema de organização do trabalho, perante a Corte Suprema dos Estados Unidos, quando comparou o novo modelo de trabalhador ao chipanzé.

6 A partir da análise de categoria apresentada por Marx, classe em si seria a consciência dos empregados de pertencimento a uma condição de classe social, inserta objetivamente em determinadas posições nas relações sociais de produção, por intermédio das quais participam tanto da produção quanto da distribuição dos bens materiais e simbólicos. Entende-se que essa forma de consciência é mais estrita, pois as ações coletivas são voltadas a interesses mais imediatos e pontuais dos trabalhadores. Já a consciência de classe para si ocorre quando há um desenvolvimento dessa consciência de classe em si para focalizar a luta de forma universal, implementando ações voltadas a subverter as relações sociais de produção em que estão inseridos.

7 Trabalho vivo é a própria materialidade viva que se põe como categoria de exterioridade a todo processo de subsunção pelo capital. O trabalho vivo é a subjetividade sem valor para o capital, não subsumido na forma de força de trabalho. A subsunção do trabalho vivo ao capital é sempre presente, na medida em que é constitutiva do sistema capitalista, mas nunca é absoluta. O trabalho vivo trata-se de uma dimensão positiva, fonte viva de valor, capaz de criar o valor desde o não ser, ou seja, exterioridade irredutível à completa objetivação no capital. Sobre o trabalho vivo é pertinente ressaltar as seguintes considerações de Marx (2011, p. 230): “O trabalho não como objeto, mas como atividade; não como valor ele mesmo, mas como a fonte viva de valor. [...] Portanto, de nenhuma maneira se contradiz a proposição de que o trabalho é, por um lado, a pobreza absoluta como objeto e, por outro, a possibilidade universal da riqueza como sujeito e como atividade, ou melhor dizendo, essas proposições inteiramente contraditórias condicionam-se mutuamente e resultam da essência do trabalho, pois é pressuposto pelo capital como antítese, como existência antitética do capital e, de outro lado, por sua vez, pressupõe o capital.”