A FALTA PARA A CRIANÇA: POR QUE VOU CONFIAR EM VOCÊ, SE VOCÊ PODE ME ABANDONAR?
Resumo
INTRODUÇÃO: O presente estudo foi realizado após observação, entrevistas e atendimento clínico psicoterapêutico de 8 meses da criança K., de 6 anos. O objetivo geral foi de analisar como a história de vida pode afetar a constituição e formação psicológica do sujeito. Como objetivos específicos, tem-se, observar as evoluções do paciente ao longo do processo psicoterapêutico e detectar os principais sintomas gerados pelo abandono e não substituição simbólica das figuras materna e paterna. Desse modo, o acompanhamento psicoterapêutico abrangeu atividades lúdicas e interações diversas com K., buscando oferecer um espaço acolhedor e seguro para o melhor decurso possível do processo.
DESENVOLVIMENTO: O paciente identificado como K., criança de 6 anos, esteve imerso em um contexto complexo desde que estava sendo gestado por sua mãe. Após processo judicial, foi determinado que a guarda do paciente e da irmã ficariam para os avós maternos, que estão como responsáveis pela criação dos irmãos. O paciente possui contato com os pais, que os visitam uma vez por semana. Por meio de relatos, observa-se que o pai brinca mais com as crianças, enquanto a mãe possui uma postura de afastamento maior, evitando brincar e, sendo dito que, por vezes, parece não amar os filhos. Diante disso, percebeu-se que K. é altamente apegado à avó, apesar de isso parecer haver diminuído com o passar das sessões. Inicialmente, o paciente mostrou-se mais fechado, por vezes, optando por brincar sozinho. Ao longo dos atendimentos, foi incluindo a estagiária nas brincadeiras. Nota-se que ele parece apresentar uma dificuldade de confiança, sendo que demorou a aceitar a construção do vínculo terapêutico, e, com outros profissionais, como neuropsicopedagoga e fonoaudióloga, ele apresenta resistência em abrir-se e participar de atividades. Essa resistência começou a aparecer na escola e, por isso, iniciou-se o trabalho multiprofissional, visto que a falta de abertura dele é comumente interpretada como dificuldades no desenvolvimento de aprendizagem da criança. Entretanto, destaca-se que, através da observação no contexto clínico, compreende-se que o paciente não realiza atividades que ele não tem interesse, ao invés disso, desempenha bem as tarefas que ele opta por fazer, criando suas formas de jogar, denotando criatividade e altos níveis de organização nos jogos que desenvolve. Nota-se que ele gosta de criar as formas que as brincadeiras devem acontecer e não reage bem quando se sente pressionado a fazer algo, o que levanta a hipótese do que pode estar acontecendo no contexto escolar. Visto que, por muito tempo, a professora fez comparações colocando-o como inferior em relação aos outros alunos, ele ouviu isso ser dito e teve isso repetido pela avó inúmeras vezes, que se sentiu cobrada e insuficientemente boa em cria-lo, transferindo a pressão para ele, colocando uma certa presa em seu processo de desenvolvimento. Após conversas com a avó, construiu-se que ele estar ouvindo essas falas poderia acabar gerando insegurança e sentimentos de inferioridade no paciente, observou-se mudança contundente. A criança passou a desenvolver suas atividades de forma mais livre e parecer mais feliz ao longo das sessões. Também, uma das professoras, o elogiou, dizendo que havia se transformado, que estavam surpresos com ele na escola. Com isso, percebe-se como o ambiente em que a criança se insere pode gerar efeitos tanto positivos, quanto negativos. Apesar da grande evolução observada no contexto escolar, o retraimento e timidez dele acabaram por ser associados a sintomas de autismo. Foi citada dificuldades de fala, de socialização, comunicação com os colegas e com os professores. A avó observa que ele não possui dificuldades de fala, enquanto ao isolamento social e timidez, ela diz perceber em diversos ambientes. A partir disso, foi solicitado que K. passasse por processo de avaliação neuropsicológica. A partir da observação de K., levanta-se a questão de que, como defendido pela avó, ele não apresenta dificuldades de fala, mas sim, de confiança. Isso faz com que ele fale baixo ou não profira som algum quando se dirigem a ele. Em relação à timidez e retraimento, aponta-se para a história familiar como componente de extrema importância de ser considerado. Mesmo que não tenha havido um abandono, de fato, houve uma espécie de perda e existe uma falta na vida da criança, cuja gera efeitos na forma como o paciente se percebe e se constitui como sujeito (LEFEBVRE, 2006). Bem como, a confiança que foi quebrada da forma como ele percebe que deveria ter sido amado e não foi. A avó e o avô cumprem seus papéis de tutores e oferecem a melhor vida possível, entretanto, ele convive com os pais e, pelo comportamento da mãe, pode-se apontar que talvez não se sinta amado ou desejado pela figura materna, visto que ele atribui a ela esse papel, não tendo transferindo-o para a avó. Desse modo, ocorre a ausência de uma mãe suficientemente boa, sendo que a figura materna é observada como ausente, bem como as emoções de valia, de amor e cuidado que seriam associados a tal (WINNICOT, 2006). A partir de outros relatos, levanta-se a hipótese de haver uma possível fixação na fase anal, cuja relaciona-se às questões de controle, ordem e resistência. Além disso, o paciente possui um atraso no sentido de controle dos esfíncteres, o que se aponta como a fixação. Entende-se que ele pode estar preso nessa fase, não conseguindo adentrar a fase fálica. O desenvolvimento da fixação em uma das fases do desenvolvimento psicossexual aponta que necessidades do indivíduo não foram supridas adequadamente, acarretando frustração. O conceito de fixação denota ao investimento de libido sendo permanentemente direcionada à quesitos relacionados a esse estágio em que houve a fixação (FARIAS; NANTES; AGUIAR, 2015). Em relação a isso, observa-se que, na fase fálica é o ponto em que ocorre o Complexo de Édipo, a identificação com um dos pais e a castração por meio do outro. Esse processo não está ocorrendo devido à falta dos pais na vida da criança, o que pode estar fazendo com que permaneça no estágio anal. Como citado previamente, nota-se extremo cuidado em relação à organização, o que é apresentado na literatura como característico dessa fase (MATOS, 1983). Não se descarta a possibilidade do autismo, visto que são observados alguns sinais e sintomas, como estereotipias, a questão do isolamento e dificuldades em comunicação e interação social e repetição de brincadeiras específicas, que são citados no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5-TR) (2023).
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A partir do acompanhamento clínico durante 8 meses e do estudo aprofundado do caso, infere-se que é de extrema importância que a criança siga inserida em psicoterapia individual, tendo seu processo e subjetividade respeitados. Visto que, com ou sem diagnóstico, seu modo de funcionamento é de uma pessoa introvertida e tímida. Nota-se que o desenvolvimento de laços sociais e vínculos interpessoais é importante, mas que isso deve ser trabalhado de acordo com a forma que ele significa esses aspectos, sem comparações ou generalizações por parte de quaisquer instituições, em especial a escola, que deve ser o local de acolhimento da diversidade, não de julgamentos. Também, nota-se que, para seu melhor desenvolvimento, seria importante a realização de uma Avaliação Psicológica, conduzida de forma ética e cuidadosa, para obter resultados fidedignos. Assim, demonstrando positividade na ampliação do conhecimento acerca do modo de funcionamento psíquico, de personalidade e características de K., para melhor poder abranger suas necessidades, sendo atestado um diagnóstico ou não. Urge salientar que as hipóteses levantadas não buscam ser conclusivas, tendo em vista que o paciente está em pleno desenvolvimento, e as inferências feitas são fundamentadas pela ciência psicológica, especificamente, baseando-se na teoria psicanalítica.
REFERÊNCIAS
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5ª edição, texto revisado. DSM-5-TR. Artmed: Porto Alegre, 2023.
FARIAS, T. M.; NANTES, E. S.; AGUIAR, S. M. Fases Psicossexuais Freudianas. Simpósio Internacional de Educação Sexual: Feminismos, identidades de gênero e políticas públicas. http://www.sies.uem.br/trabalhos/2015/698.pdf. Acesso em: 28 de outubro de 2024.
LEFEBVRE, H. La presencia y la ausencia: contribución a la teoría de las representaciones. Fundo de Cultura Econômica: México, 2006.
MATOS, A. C. O desenvolvimento infantil na perspectiva psicanalítica. Análise Psicológica, v. 4, n. 3, p. 477-486, 1983. https://repositorio.ispa.pt/bitstream/10400.12/1702/1/AP%203(4)%20477-482.pdf. Acesso em: 28 de outubro de 2024.
WINNICOTT, D. W. O recém-nascido e sua mãe (1964). Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
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