EXPLORANDO O EU: O PAPEL DOS PERSONAGENS FICTÍCIOS NO PROCESSO TERAPÊUTICO SOB O OLHAR DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA
Resumo
A adolescência é um período repleto de mudanças significativas na vida de uma pessoa. Durante esses anos, ocorrem diversas dificuldades devido à transição de uma fase relativamente estável para um estágio marcado por transformações físicas e emocionais profundas e essas transições são, frequentemente, associadas a conflitos relacionados à formação da identidade.
De acordo com Tiba (2005), as crianças atualmente estão entrando na adolescência cada vez mais cedo e alcançando a fase de jovem-adulto ainda mais tarde. Essas mudanças no início e no fim da adolescência representam novas tendências psicológicas, familiares, culturais e sociais. Hall (2006) argumenta que, no passado, as identidades eram mais estáveis e fixas, geralmente fundamentadas em tradições culturais e sociais e com a chegada da modernidade e da globalização, a noção de identidade tornou-se mais fragmentada e as pessoas passaram a adotar múltiplas identidades, que podem mudar conforme o contexto em que se encontram. Ainda segundo o autor, isso reflete a complexidade e a fluidez das identidades contemporâneas, onde os indivíduos podem se identificar com diferentes grupos e culturas.
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Ao discorrer sobre a chegada da modernização, observa-se que os meios de comunicação desempenham um papel crucial na formação da identidade dos jovens. A televisão, a literatura, o cinema e, mais recentemente, as redes sociais, apresentam uma ampla gama de personagens com os quais os adolescentes podem se identificar. Esses personagens, por vezes, atuam como modelo de conduta e fontes de inspiração, possibilitando que os jovens investiguem diversos aspectos de suas identidades. Moraes e Pacheco (2023) pontuam que atribuir significado ao que se vê ou lê só ocorre quando há uma associação com as experiências vividas. Dessa maneira, é possível reconhecer momentos em que essas formas de mídia transcendem o mero entretenimento.
Na dimensão clínica, a fragmentação da identidade pode aparecer de forma notável. Os desafios da identidade, particularmente em jovens, frequentemente emergem como temas centrais durante as sessões terapêuticas. A modernização e a vasta gama de influências midiáticas contribuem para a complexidade da construção identitária, levando a questionamentos sobre a integração dessas influências no autoconhecimento e na autoexpressão dos indivíduos. O texto a seguir discorre sobre um caso específico atendido no contexto de estágio e para preservar a identidade da cliente, utilizaremos o nome fictício "Aline" e descreveremos o caso de maneira geral.
Durante o estágio clínico, foi observado que Aline, de 13 anos, utilizava personagens fictícios para falar sobre si mesma. Essa percepção suscitou indagações acerca da identificação com personagens no processo terapêutico da cliente. Com o intuito de uma compreensão mais aprofundada desse fenômeno, o presente estudo de caso tem como objetivo entender a importância dessa identificação no contexto da expressão dos próprios sentimentos, bem como compreender por que é mais acessível para ela comunicar-se por meio dos personagens. Para isso, buscamos suporte na Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), aplicada durante o estágio.
Durante os atendimentos, Aline frequentemente fazia referência a personagens fictícios (existentes ou criados por ela), com os quais se identificava.
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Observou-se que, além dessa identificação, ela atribuía aos personagens aspectos que sentia faltar em si mesma. Essas falas foram acolhidas e os elementos presentes nos discursos foram usados como facilitadores para a formação do vínculo terapêutico e para a compreensão da experiência da cliente. Durante o processo terapêutico, percebeu-se que, ao discutir a identificação com personagens, Aline conseguia se conectar mais facilmente com aspectos que integravam sua própria concepção de identidade.
Aline demonstrou um interesse significativo por personagens fictícios e, desde as primeiras sessões, mencionava-os com frequência, mas sem atribuir aspectos de sua vida. Rogers (2017) observou que, nos primeiros encontros terapêuticos, é comum os clientes perceberem seus problemas como algo externo, discutindo-os como se não lhes pertencessem diretamente. Nesse contexto, o relato sobre personagens fictícios oferece ao cliente uma maneira de abordar questões pessoais de forma indireta, menos ameaçadora à sua noção de identidade.
À medida que o processo terapêutico avançava, tornou-se evidente que ela utilizava esses personagens como um meio para revelar aspectos de suas próprias vivências e identidade. Essa percepção se tornou ainda mais clara quando Aline descreveu os personagens criados por ela, nos quais projetava características que percebia ausentes em si mesma. Moraes e Pacheco (2023) apresenta que a utilização da identificação, faz com que a cliente gradualmente reconheça que o significado que atribui aos personagens reflete aspectos de si mesma e percebe que usa os personagens "emprestados" para expressar suas próprias experiências, o que o aproxima de seu centro de referência pessoal.
Como uma das formas de intervenção, observou-se que a referência a determinados personagens poderia ser um recurso muito interessante para ser utilizado nas sessões. Assim, o processo de personagem-identificação tornou-se uma maneira de potencializar o manejo das condições facilitadoras descritas por Carl Rogers, auxiliando a cliente a verbalizar suas demandas. Rogers (1987) aponta que, quando os indivíduos são compreendidos e aceitos, eles desenvolvem uma atitude
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de maior consideração por si mesmos. Além disso, quando a escuta é realizada com uma postura empática, possibilita que a pessoa se conecte mais profundamente com suas experiências internas.
Nesse contexto, o uso da ACP promoveu a aceitação da linguagem da cliente, visto que a força dessa abordagem reside na aceitação incondicional e na percepção de que os recursos necessários para a autoexpressão e autocompreensão estão presentes na própria forma de comunicação do cliente, conforme a teoria da tendência atualizante de Rogers. Todo organismo é movido por uma tendência inerente para desenvolver todas as suas potencialidades e para desenvolvê-las de maneira a favorecer sua conservação e seu enriquecimento (ROGERS E KINGET, 1979). Quando a linguagem da cliente é aceita como é, sem exigir conformidade a normas, cria-se um ambiente seguro e acolhedor. É dentro desse contexto que a cliente pode descobrir e utilizar seus próprios recursos internos para explorar e expressar sua identidade.
Essa identificação com personagens mostrou-se ser um movimento que auxiliou Aline a se compreender melhor e reconhecer as questões que precisam ser desenvolvidas. Foi possível perceber que essa identificação inicial é um meio para que os clientes expressarem questões pessoais de forma indireta, permitindo-lhes abordar assuntos delicados sem lidar diretamente com o próprio eu. Contudo, à medida que o processo terapêutico avança e o cliente se familiariza com o ambiente terapêutico, é comum observar que, gradualmente, ele tende a abandonar o uso dos personagens fictícios, passando a fazer referências mais diretas à sua própria vida e experiências.
Através do estudo do caso de Aline, podemos concluir que o uso de personagens fictícios como recurso terapêutico, pode ser uma estratégia valiosa para facilitar a expressão e compreensão das experiências pessoais dos adolescentes. Aline encontrou nos personagens uma forma de explorar sua própria identidade e expressar seus sentimentos de maneira indireta e menos ameaçadora.
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