RESENHA CRÍTICA DO FILME SI PÚO FARE (DÁ PRA FAZER)
Resumo
A resenha crítica se construiu diante do trabalho do componente curricular Psicologia institucional, ministrada pela professora Ana Paula Risson, e compreende a luta antimanicomial como diretriz da resenha, que tem a data de 18 de maio como marca para o dia nacional da luta antimanicomial e foi introduzida a partir da exposição e debate do filme. A trama Si Può Fare (tradução: Dá Pra Fazer), de 2008, dirigido por Giulio Manfredonia, conta a história de Nello, um sindicalista que após ser demitido, começa a trabalhar como diretor em uma cooperativa formada por pacientes de extintos manicômios. A partir do momento que Nello percebe a potencialidade de cada um, transforma eles em sócios, que passam a receber um salário, transformando a fonte de renda em trabalho com parquet (peças, geralmente de madeira que se montam para servirem de assoalho). Juntos aprendem a administrar o negócio e a vendê-lo. Passam a se tornar reconhecidos e aclamado por pessoas importantes da sociedade, assim como, desenvolver relações com essa, que antes os estigmatizava. No decorrer do filme, acompanha-se o desenvolvimento e melhora do quadro clínico de cada personagem, contrapondo a ideia de serem doentes mentais. Na direção dessa Cooperativa, Nello se depara com uma realidade ainda fortemente instituída de manicômio, na qual os indivíduos eram reduzidos a doentes mentais, medicados, vivendo, cotidianamente, sob efeito de drogas psicoativas farmacológicas. Nello, discordando dessas medidas, toma iniciativa de promover uma reinserção social dos pacientes. Com estímulos cautelosos, ele provoca nos indivíduos autonomia, tomando suas próprias decisões, tendo relações afetivas, ambições e principalmente sentindo o mundo da maneira que há tempos não sentiam devido ao uso exacerbado de medicamentos. O processo de inclusão promove aos telespectadores um novo olhar a respeito dos efeitos da medicalização da vida e um foco nas potencialidades de cada um. Os extintos manicômios foram abolidos devido a Lei 180, conhecida como lei Basaglia, aprovada na década de 70, que propunha reforma no sistema de saúde e do tratamento psiquiátrico dos indivíduos, tornando-o mais humanizado. Essa Lei foi sancionada 10 anos depois aqui no Brasil, o que delimitou um marco histórico na Luta Antimanicomial, que completa 30 anos no país. Contudo, por mais que a lei vigente reformulou as organizações e instituições que atuavam com os doentes mentais, as lógicas instituídas na época não permitiram um olhar humanizado a esses indivíduos, já que continuavam com pensamentos segregativos e de superioridade, atuando com excessiva medicação e péssimos cuidados, mantendo-os sedados e privados de liberdade, mascarando sua existência. As instituições, segundo Baremblitt, são apresentadas como lógicas de funcionamento, e são materializadas em organizações. Na sociedade descrita no filme observa-se agentes instituídos e instituintes, como o movimento da cooperativa em si, quando Nello assume a diretoria, que é uma ordem instituinte já que a diretriz vigente da cooperativa era o trabalho passivo e altamente medicamentoso que relatava e reproduzia os valores morais do país na época sobre a saúde mental e tratamento de doentes mentais. A Lei Basaglia, instituída nos anos 70, na Itália, juntamente com o movimento instituinte da Cooperativa, tendo como equipamento o trabalho que eles exercem, propõem uma análise de implicação, já que toda essa construção expõem a mudança de visão sobre saúde mental como uma compreensão da interação das organizações, com ênfase na lógica de funcionamento intervinda (LOURAU, 1993). Acompanhando um dos personagens, em um dos trabalhos realizados, Sérgio se apaixona pela moça que contrata seus serviços e se declara a ela. Os dois saem juntos ao cinema, após a sessão, se beijam. Em uma festa na casa da moça, Sérgio e seu amigo e colega de trabalho, Luca são convidados e são alvo de chacota, pelo jeito de ser. Quando um dos convidados pergunta quem fez a torta e a moça responde que foi feita em casa, Sérgio a cospe e afirma que comida feita em casa é envenenada (crença que carrega há muitos anos). Após o acontecimento, as brincadeiras aumentam irritando Luca, que agride um dos convidados. Todos são levados à delegacia e Sérgio ouve sua amada pedir ao delegado que não o levem para o manicômio, a mesma fala que foi culpa dela e que foi um beijo sem importância, que ele é um coitado doente. Essas palavras atingem profundamente Sérgio que, no dia seguinte é encontrado morto. Suicidou-se. Uma das causas do suicídio se dá pela falta de suporte psicológico. Não há como ignorar uma patologia existente, no entanto, não se pode reduzir o indivíduo a isso. Assim, o tratamento e ações de políticas públicas e de saúde com o público que possuem transtornos mentais devem atuar em todas as áreas da vida do ser humano, a biológica (há doenças no qual o medicamento é de grande importância no tratamento), a psíquica (a necessidade de suporte psicológico e a relevância da saúde mental é um aspecto chave para um tratamento funcional e eficiente) e outras como a social, a espiritual, transpassando um implicância múltipla e variada na construção do ser humano. Conseguinte, a cena demostra carência de um suporte psicológico, tanto para os reduzidos doentes mentais quanto para o Nello. Isto é, o suicídio nos remete a disfuncionalidade na cooperativa e também demostra que a doença mental é algo relevante para a discussão e forma de funcionamento psíquico dos indivíduos, que são diferentes, e lidam com a perda de forma diferente, necessitando suporte para o autoconhecimento e para entender como seu funcionamento opera e assim desenvolver sua capacidade inata de resiliência. O instituído, o status quo, atua com um jogo de forças extremamente violento para produzir uma certa imobilidade (LOURAU, 1993, p. 11-12). Casos como a cena descrita a cima, ainda estão presentes em nossa sociedade, devido a forma como nos foi imbuído a concepção da pessoa com transtorno mental. É disso que se trata a luta antimanicomial, pois mesmo que exista a extinção dos manicômios, ainda se tem instituído em nosso comportamento a visão do ‘louco’ como um indivíduo incapacitado e/ou perigoso. Nos diálogos diários que se estabelece com as pessoas, ainda se usa pensamentos manicomiais e ações que visam reprimir e reeducar indivíduos que possuem um desvio comportamental fora de um padrão inventado pelos homens para classificar e segregar nossa sociedade. Portanto, segundo Bauman (1991, p.20) “a modernidade orgulha-se da fragmentação do mundo como sua maior realização. A fragmentação é a fonte primária de sua força. [...] uma vez que os problemas são manejáveis, a questão da governabilidade do mundo pode jamais aparecer na agenda ou pelo menos ser adiada indefinidamente. A autonomia territorial e funcional produzida pela fragmentação dos poderes consiste primeiro e acima de tudo no direito de não olhar para além da cerca e de não ser olhado de fora da cerca. Autonomia é o direito de decidir quando manter os olhos abertos e quando fechá-los, o direito de separar, de discriminar, de descascar e aparar.” Portanto, negar o padrão pré-ordenado e orquestrado pela sociedade, não é ser louco, transtornado ou doente mental, mas sim, um movimento instituinte para alterar a visão que ainda se tem a respeito das pessoas que ‘não se encaixam’ em nossa sociedade. Deve-se levar em consideração de que sim, doenças mentais existem e precisam de tratamentos e intervenções, muitas vezes medicamentosas, porém, esta não deve ser a única forma de intervenção, nem a única forma de ver os indivíduos. Todos possuem características e potencialidades únicas que devem ser consideradas em qualquer tipo de intervenção.
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Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
ITÁLIA. Constituição (1947). Lei nº 180, de 13 de maio de 1978. Controles e Tratamentos Sanitários Voluntários e Obrigatórios. Itália, 13 maio 1978. Disponível em: <http://www.ifb.org.br/legislacao/Lei 180 - Italia.pdf>. Acesso em: 04 jun. 2017.
LOURAU, René. René Lourau na UERJ: análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1993.
SIPUÓ Fare. Direção de Giulio Manfredonia. Produção de Angelo Rizzoli Jr e Andrea Rizzoli Jr.. Roteiro: Fabio Bonifacci e Giulio Manfredonia. Música: Pivio e Aldo de Scalzi. Itália: Warner Bross, 2008. (111 min.), son., color. Legendado.
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